Martelo Narrando
Depois do almoço na minha casa, eu e o Riba descemos juntos pra boca. A Laila ficou com a minha mãe, ajudando na cozinha e rindo das histórias antigas, enquanto a gente seguia pro corre. O sol já estava alto, o calor batia forte no asfalto quebrado da ladeira, e o movimento na boca tava normal: vapores no pique, cada um na sua função, e os olheiros sempre de olho no rádio.
Encostei na parede, tirei o isqueiro do bolso e acendi um cigarro, observando o vai e vem. Riba ficou do meu lado, aquele jeito dele calmo, sempre com o olhar calculando tudo. Eu já estava com isso na cabeça há dias, mas precisava trocar com ele.
— Riba… tô pensando em botar o Liso na gerência das boca. — soltei de uma vez, soltando a fumaça devagar.
Ele virou o rosto pra mim, semicerrando os olhos, pensativo.
— O Liso? — perguntou, como se quisesse confirmar. — Tá falando sério, Martelo?
— Tô. — respondi firme. — Ele é esperto, tem visão. O bicho é organizado, bom de conta, não se perde no movimento. Eu tô puxado, tu também, e a gente precisa de alguém de confiança para segurar o trampo.
Riba ficou em silêncio por uns segundos, olhando os vapores lá na frente, como se pesasse cada palavra.
— Eu vejo isso nele também, não vou mentir… mas o Liso é novo, Martelo. Ser bom de matemática e ter disposição é uma coisa, segurar pressão de gerente é outra. Você sabe como é: polícia aperta, inimigo tenta invadir, dinheiro rola… não é todo mundo que aguenta.
Bati a cinza do cigarro no chão e encarei ele de lado.
— Justamente por isso que quero botar ele. Se a gente não der oportunidade, nunca vai saber se o moleque segura a bronca. Ele não é só bom de conta, Riba. O Liso tem respeito entre os outros, os vapores ouvem ele. Já reparou? Quando ele fala, os vapores prestam atenção.
Riba respirou fundo, passando a mão na cabeça raspada.
— É… já vi isso. Ele tem liderança natural, isso não dá pra negar. Mas, Martelo, botar alguém novo na gerência também chama o olho. O chefe pode não gostar da gente decidir isso sozinho.
Dei um meio sorriso, aquele de quem já pensou em tudo.
— O chefe confia na gente, Riba. E eu confio no Liso. Se ele vacilar, é nossa cara que vai tá em jogo, eu sei. Mas eu boto fé que o moleque não vai falhar.
Riba me olhou firme, e por um instante vi ele lembrando da gente quando era moleque, sem nada, correndo nas vielas.
— Tá certo… se tu acredita, eu vou junto. Mas a gente tem que preparar o Liso, Martelo. Mostrar pra ele que gerência não é só contar dinheiro e mandar nos vapores. Tem que ter sangue frio, disciplina, e acima de tudo, lealdade.
Soltei o cigarro no chão e pisei com força, dando um tapa no ombro dele.
— Então é isso. Hoje à noite eu chamo o Liso pra trocar uma ideia. Quero ver se ele tá pronto.
Riba assentiu, mas não sem antes me soltar aquele olhar sério:
— Só não esquece, Martelo… no morro, cada escolha que a gente faz pode ser a última.
Assenti também, porque eu sabia que ele tinha razão. Mas, no fundo, sentia que estava certo: o Liso ia ser o próximo a carregar o peso da gerência.
O sol já tinha se escondido atrás dos barracos, e o morro começava a ganhar aquele ar pesado de noite, quando tudo pode acontecer. Eu fiquei sentado na cadeira de plástico, em frente à boca, observando o movimento. O rádio chiava de vez em quando, trazendo a voz dos olheiros espalhados. Tudo sob controle.
De manhã, eu já tinha dado a primeira missão pro Liso: fazer recolher das bocas. Queria ver como ele se saía andando de boca em boca, trocando ideia com os vapores, fazendo conta, lidando com cada detalhe sem se enrolar. Quando ele voltou, não precisei nem perguntar: o moleque trouxe tudo certo, dinheiro contado, relatório na ponta da língua e anotado no bloquinho. Eu só assenti, mas por dentro já sabia a resposta.
Agora era a hora de chamar ele pra conversar. Fiz sinal com a mão, pra ele me acompanhar até minha sala, logo o Liso veio, ainda suado do corre, mas com o olhar atento.
— Senta aí, moleque. — falei, sentando na minha cadeira e apontei pra ele sentar na cadeira de frente pra mim.
Ele sentou, meio desconfiado, sem entender qual era. Ficou na postura, coluna ereta, olhos me encarando com respeito.
— Tu sabe que hoje eu mandei tu fazer o recolhe, né? — comecei, olhando firme.
— Sei, Patrão. Fiz como tu pediu. Tá tudo aí, redondo. — ele respondeu, direto, sem gaguejar.
Dei um sorriso de canto, acendi um cigarro e soltei a fumaça devagar.
— Eu vi. Tu não se enrolou, não deixou faltar nada. Os vapores respeitaram você, né?
— Respeitaram sim. — ele disse, sem se exaltar. — Mas não foi porque eu gritei nem nada… eu só falei o certo, do jeito que tinha que ser.
Assenti. Era isso que eu queria ouvir.
— E é exatamente aí que tu mostra que tem cabeça, Liso. Quem precisa gritar para ser respeitado, já perdeu.
Ele ficou em silêncio, absorvendo minhas palavras. Eu continuei:
— O bagulho é o seguinte, moleque. Eu e o Riba tamo vendo teu corre faz tempo. Tu é organizado, bom de conta, não se perde. Mas não é só isso. Tu sabe ouvir e sabe falar na hora certa. Isso é raro aqui.
Os olhos dele brilharam, mas ele não falou nada. Ficou esperando eu terminar.
— Eu tô pensando em botar tu na gerência das bocas. — soltei, sem rodeio. — Mas isso não é brincadeira, não. Gerente não é só contar dinheiro e mandar nos vapores. É segurar a pressão quando a polícia aperta, quando inimigo tenta invadir, quando algum vapor vacila. É ter sangue frio pra decidir em segundos o que pode salvar ou acabar com todo mundo.
O Liso respirou fundo, os dedos batucando de leve na coxa, nervoso. Mas não desviou o olhar.
— Se tu acha que eu tenho condição, Patrão, eu não vou te decepcionar. Eu sei que não é fácil. Sei que posso errar, mas também sei que vou aprender rápido. Só não quero ser mais um na estatística, eu quero crescer.
Dei uma risada curta, balancei a cabeça e bati no ombro dele.
— É disso que eu gosto, moleque. Tu não tá pedindo, tá mostrando que tá pronto. Só que lembra bem do que eu vou te falar agora: lealdade é a chave. Eu posso te ensinar a contar, a planejar, até a atirar melhor. Mas se tu não tiver lealdade com a gente, tu tá morto.
— Eu sou leal, Patrão. — ele disse firme, sem pestanejar. — Tu vai ver.
Fiquei em silêncio por um tempo, só ouvindo os rádios chiando ao fundo. Depois soltei a fumaça e falei:
— Então é isso. A partir de amanhã, você assume sua nova função. Não me faz passar vergonha, Liso. E lembra: ser gerente não é poder, é responsabilidade.
O moleque abriu um sorriso contido, mas no olhar eu vi a mistura de orgulho e peso. Ele entendeu. E eu sabia: dali em diante, a vida dele não ia ser mais a mesma.