Riba Narrando
Meu nome é Ribamar, mas todos me chamam de Riba, tenho 25 anos, e vivo no Complexo do Alemão desde que me entendo por gente. Cresci nas vielas e becos, conhecendo cada rosto, cada esquina, cada segredo que o morro guarda. Aqui, todo mundo tem um papel a cumprir, e eu não sou diferente: sou sub do chefe, mas isso não me define completamente. Tem muita coisa dentro de mim que ninguém do lado de fora do morro entende.
Meu melhor amigo é o Martelo. A gente se conhece desde moleque, correndo pelas ruas, aprontando e sobrevivendo juntos. Ele sempre foi mais impulsivo, eu mais calculista, mas juntos a gente se equilibra. Com ele, qualquer plano que parecia impossível acabava saindo, e qualquer problema tinha uma saída… quase sempre.
Minha irmã, Laila, tem 19 anos e é meu orgulho. Ela vai fazer faculdade de Direito e não tem ideia de quanto eu torço por ela. Ver a Laila estudando, sonhando com uma vida diferente, me dá esperança. Porque, mesmo vivendo nesse mundo pesado do morro, eu quero que ela tenha escolha. Que ela não precise aprender as lições da vida nas vielas como eu aprendi.
A vida aqui não é fácil. Tem o corre, tem a pressão do chefe, tem a vigilância constante dos rivais… Mas também tem a nossa lealdade, a nossa família que construímos nas ruas, e a certeza de que estamos fazendo o que precisamos para sobreviver. Cada decisão que tomo pesa não só para mim, mas para o Martelo, para minha irmã, para todos que dependem de mim.
Ainda assim, por mais que o mundo tente me endurecer, eu sei que meu coração não é totalmente de pedra. E é isso que me faz diferente. Porque aqui no morro, entre tiros, olhares desconfiados e correria, eu ainda consigo sonhar com dias melhores… para mim, para a Laila e, de certa forma, para todos que acreditam na gente.
A verdade é que eu não nasci querendo ser do crime. No começo, eu só queria sobreviver, brincar com Martelo, ajudar minha família e aproveitar a vida como qualquer moleque. Mas o morro tem suas regras, e cedo ou tarde você aprende que escolhas não existem como no asfalto. Você faz o que precisa para continuar vivo, ou alguém vai decidir por você.
Entrei no crime sem perceber. Foi quando tinha uns 15 anos. Eu e Martelo estávamos correndo pelas ruas, sem rumo, só tentando achar alguma forma de ganhar dinheiro rápido. Um dia, um conhecido do chefe nos chamou para um serviço “pequeno”: entregar um pacote, olhar uma esquina, ficar de olho em quem entrava e saía. Parecia simples, e a grana era boa para dois moleques que m*l tinham dinheiro para lanchar.
Foi assim que comecei. Primeiro, só observando, seguindo ordens. Depois, ganhando confiança, fazendo tarefas maiores, mais arriscadas. E quanto mais eu fazia, eu percebia que a vida no morro não perdoa fraqueza. Se você vacilar, alguém toma seu lugar. Se você se afastar, alguém sente falta da sua lealdade. E foi aí que eu entendi: o crime não era só uma escolha, era uma necessidade para sobreviver, para proteger os que eu amava, principalmente minha irmã Laila.
Nunca gostei do perigo pelo perigo. Sempre pensei antes de agir, calculei cada passo. Foi essa cautela que me fez subir, lentamente, até me tornar sub. Martelo sempre foi mais impulsivo, mas comigo ao lado, a gente conseguia equilibrar o corre, evitar problemas maiores e, mesmo dentro do crime, manter alguma noção de controle.
Às vezes me pergunto se teria dado certo sair do morro, tentar outra vida… mas eu sei que, no fundo, teria sentido falta disso tudo: a adrenalina, a família que construí nas ruas, a lealdade que une cada um de nós. E mesmo assim, nunca deixei que o crime me roubasse o que era mais importante: cuidar da Laila, garantir que ela pudesse sonhar com um futuro diferente.
Hoje é um dia diferente. Laila vai fazer a matrícula na faculdade de Direito, e eu estou junto com ela. Normalmente, meu mundo é viela, corre, e decisões que não podem esperar. Mas hoje, eu deixo tudo isso de lado pelo menos por algumas horas para ver minha irmã dar um passo que pode mudar a vida dela.
Enquanto descemos do morro, sinto o peso da responsabilidade sobre meus ombros. Cada rua do Alemão é familiar, cada rosto conhecido, e ainda assim, hoje meu foco está nela. Laila segura minha mão com força, um misto de ansiedade e empolgação. Ela m*l consegue esconder o sorriso nervoso.
— Mano… — ela diz baixinho, quase sem fôlego — e se eu não conseguir?
— Vai conseguir sim, Laila — respondo, firme — você estudou muito, merece estar lá. Só precisa acreditar.
No carro, enquanto descemos até o centro, penso em como a vida dela é diferente da minha. Ela pode sonhar com prédios altos, livros, advogados, tribunais… enquanto eu aprendi a sonhar com segurança, respeito e lealdade no morro. Mas, mesmo assim, cada conquista dela me dá esperança de que talvez, um dia, possamos sair desse ciclo sem precisar perder tudo pelo caminho.
Chegamos à faculdade, e Laila praticamente corre para a secretaria, ansiosa para preencher os formulários, entregar documentos, assinar tudo. Eu fico observando de longe, atento a cada detalhe, como se o mundo lá fora pudesse, de alguma forma, invadir esse momento. Mas hoje, ele não invade. Hoje, é só ela, e eu, e a sensação de que estou cumprindo meu papel de irmão, de protetor.
— Vai dar tudo certo, mano — ela sorri para mim, e eu sinto uma ponta de orgulho que não cabe no peito.
— Eu sei — respondo — e quando você estiver lá dentro, estudando, fazendo acontecer, vai lembrar que esse momento é só o começo.
Enquanto esperamos a burocracia acabar, percebo que, por algumas horas, o morro, os tiros, os inimigos, tudo isso fica distante. É só minha irmã, eu e a chance de ela conquistar um mundo que eu nunca tive, mas que quero que ela tenha.
Depois que a matrícula da Laila foi feita, senti um peso sair dos meus ombros. Era como se cada assinatura dela nos papéis fosse também uma chance a mais de a gente escapar um pouco desse destino marcado que o morro costuma impor.
Ela saiu da faculdade radiante, segurando a pastinha com os documentos como se fosse um troféu. Eu não lembrava a última vez que tinha visto minha irmã tão feliz. Talvez nunca.
— Mano, você acredita? Eu tô dentro! — ela dizia, os olhos brilhando.
— Eu sempre acreditei, Laila. Você só precisava acreditar também.
No caminho de volta, sugeri que a gente fosse direto pra casa do Martelo para almoçar. Ele já sabia da matrícula e estava animado para ver minha irmã. Martelo sempre teve esse jeito meio bruto, mas no fundo, respeita demais a Laila, quase como se fosse a irmã dele também.
Quando chegamos, o cheiro de comida caseira já tomava conta da viela. A mãe do Martelo, dona Fabiana, estava na cozinha, rindo alto, mexendo as panelas. Sempre que eu piso naquela casa, sinto um calor diferente, um tipo de aconchego que o morro não costuma dar.
— Olha quem chegou! — Dona Fabiana gritou, abraçando a Laila. — Minha futura doutora!
Laila ficou sem jeito, rindo, e eu senti meu peito se encher de orgulho mais uma vez. Martelo apareceu logo em seguida, aquele jeito sério, mas com o brilho de orgulho no olhar.
— E aí, futura advogada? — disse, abraçando de leve e dando um beijo na testa da minha irmã. — Quando tu tiver lá na frente, defendendo inocente, lembra da gente, hein?
Laila riu, mas respondeu séria:
— Eu vou lembrar sim. Eu vou lutar para que pessoas como vocês também tenham voz.
Eu e Martelo trocamos um olhar rápido, pesado. A gente sabia que essa voz da Laila talvez nunca chegasse até nós. Mas, ouvir ela falar daquele jeito, com tanta certeza, era como respirar ar puro num lugar cheio de fumaça.
Sentamos à mesa. O feijão fumegando, o arroz soltinho, a carne de panela com batata que só dona Fabiana sabia fazer. A conversa rolava solta, cheia de risadas, histórias do passado, lembranças da infância. Por um momento, parecia que o mundo lá fora tinha parado.
Mas no fundo, eu sabia: era só um respiro. A qualquer instante, o morro podia chamar de volta, com tudo que ele cobra.
Enquanto eu observava Laila e Martelo rindo juntos, prometi a mim mesmo que, custasse o que custasse, eu ia proteger essa felicidade dela. Porque ela merecia esse futuro limpo. Porque ela era a parte de mim que ainda podia ser salva.