Capítulo 2

1108 Words
Capítulo 2 Patrícia Narrando Meu nome é Patrícia, tenho 26 anos, e minha vida sempre foi tranquila até quatro anos atrás, eu morava no asfalto, numa rotina que parecia segura, mas que escondia o vazio da perda. Meus pais faleceram num acidente de carro quando eu tinha vinte e dois anos, e de repente me vi sozinha, sem família, sem chão. Foi nesse momento que decidi me mudar para o morro da Maré. Parece estranho, eu sei, alguém do asfalto escolhendo morar num lugar que muita gente teme, mas eu precisava de uma vida que tivesse propósito, que me desse algo além de lembranças e solidão. Th, é o chefe do morro, sempre foi uma sombra na minha vida. Eu o conheci uns dias depois que cheguei na Maré e sabia que cruzar o seu caminho poderia significar problema. Quando cheguei à Maré, vivia olhando por cima do ombro, sempre pronta para desaparecer na primeira esquina. Mas, aos poucos, percebi que o morro tinha outra face: crianças que corriam pelas ladeiras, risadas que pareciam desafiar a gravidade, vizinhos que cuidavam uns dos outros. Foi assim que me tornei professora infantil. Todo dia, subo as ladeiras com minha mochila cheia de livros, giz de cera, e sonhos pequenos, mas significativos. Ensinar aqui é diferente de qualquer escola do asfalto. Aqui, cada criança traz no olhar histórias que você não encontra em livro nenhum: resiliência, alegria mesmo quando a vida pesa, e uma vontade imensa de aprender, de ser mais. Quando vejo os pequenos sentados em semicírculo, atentos a cada palavra, eu sinto que pertenço a esse lugar. Talvez eu tenha fugido de algo no passado, mas encontrei no presente um motivo para ficar. Cada desenho, cada risada, cada “professora, olha o que fiz!” me dá força para continuar, mesmo com os dias pesados e o perigo que ainda ronda o morro. Hoje, como em todos os outros dias, subi a ladeira com passos rápidos, mas atentos. A mochila pesava, cheia de livros e cadernos, mas também carregava o que realmente importava: esperança. As crianças já me esperavam na pequena sala improvisada, suas vozes enchendo o espaço com uma alegria que quase me fazia esquecer o mundo lá fora. Mas o morro nunca deixa você esquecer. Enquanto desenhamos, ouvi o som distante de um carro que não pertencia a nenhum vizinho. Meu coração disparou. Tentei ignorar, me concentrando nas mãos sujas de tinta das crianças, nos lápis que riscavam o papel com cores vivas. Mas o instinto me dizia que ele estava por perto. Quando a aula acabou, decidi descer a ladeira mais devagar, observando cada sombra, cada movimento. Um vulto passou rápido atrás de uma parede, e por um instante, senti o medo antigo, aquele mesmo que me acompanhou no início. Mas agora, não estava sozinha. As crianças e os vizinhos me deram uma força silenciosa, uma sensação de pertencimento que o medo não podia apagar. No meio do caminho, ouvi uma voz conhecida, baixa e ameaçadora: Meu corpo congelou por um instante. Era Th. Mas ele não estava sozinho, e havia algo diferente no olhar dele hoje, um desafio, talvez, ou uma provocação. Respirei fundo, tentando manter a calma. Eu já não era mais a garota que morava no asfalto, perdida e vulnerável. Aprendi a observar, a perceber sinais, e acima de tudo, a proteger o que era meu. — Patrícia… — começou, com aquela voz baixa que sempre me fazia arrepiar — você sabe que não pode simplesmente me ignorar. Você vai ser minha. Senti um calafrio percorrer minha espinha, mas mantive o olhar firme, sem ceder. — Th — disse, firme, dando um passo à frente — eu já disse: não. Não quero você, não quero nada com você. Minha vida não pertence a você. Ele riu, um som curto e ameaçador, como se achasse minha resistência apenas um desafio divertido. — Não entende, né? — insistiu, aproximando-se mais. — Você vai ser minha, de uma forma ou de outra. Você não tem escolha. Segurei minha mochila com força, sentindo cada músculo tenso, mas minha voz não tremia. — Th, você está enganado. Eu escolho com quem vou ficar. Você não manda em mim, nunca mandou e nunca vai mandar. O sorriso dele se transformou em raiva. Seus olhos escuros buscavam uma fraqueza, mas não encontraram nada. — Você vai se arrepender… — disse, ameaçador, recuando alguns passos, mas mantendo a postura dominante. — Ninguém me desafia assim. — Eu não me arrependo de nada — respondi, firme. — E se você voltar, Th, vou estar pronta. Porque eu não vou ceder. Eu não sou como você acha que sou. Ele me olhou por um longo instante, o silêncio pesado preenchendo a viela. Então, sem dizer mais nada, desapareceu na viela, deixando claro que sua obsessão continuaria, mas que eu não estava mais vulnerável. Segurei firmemente minha mochila e continuei descendo, consciente de cada passo. Th podia me seguir, podia tentar me assustar, mas havia algo que ele não conseguiria: me controlar. Cheguei em casa e respirei fundo, fechei a porta de casa e me encostei nela por um instante, deixando o corpo relaxar apenas um pouco. O silêncio da minha casa no morro parecia quase sagrado depois do confronto. Meu coração ainda batia acelerado, mas havia algo mais forte ali: uma certeza silenciosa de que eu não podia e não iria me curvar a ninguém. Enquanto caminhava pela sala, olhei minhas próprias mãos, marcadas pelo giz e pela tinta das crianças. Cada mancha era um lembrete de que minha vida tinha um propósito maior do que o medo que Th tentava semear. Ele podia aparecer de novo, podia tentar me dobrar, mas havia algo dentro de mim que ninguém podia controlar: minha vontade de viver por mim mesma. Sentei-me na cadeira perto da janela e observei o morro, a luz da lua começando a surgir entre as casas e as vielas. As sombras pareciam mais longas naquela noite, mais ameaçadoras, mas também me lembravam de uma verdade simples: eu aprendi a sobreviver aqui. Aprendi a ler cada sinal, a calcular cada passo, a usar a coragem como escudo. E, mais importante, aprendi que coragem não significa ausência de medo. Significa continuar, mesmo quando ele está presente. Significa proteger o que é seu, mesmo que o mundo ou Th tente roubar sua força. Fechei os olhos por um momento e respirei fundo. Amanhã seria outro dia. Outro dia de aula, outro dia de sorrisos, outro dia em que eu enfrentaria o morro e tudo que ele pudesse trazer. E, mais do que tudo, outro dia em que eu afirmaria: não sou dele. Nunca serei.
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