🔥🖤 NARRAÇÃO — AMARA
Tava no chão.
Agarrada ao meu próprio corpo como se meus braços fossem a única coisa me segurando viva.
Deitada de lado, com o rosto molhado, o joelho dobrado contra o peito, igual criança que perdeu tudo.
Mas eu não era mais criança.
Eu era sobra.
Sabe quando a vida parece que empurra tua cara contra o asfalto e ainda ri do barulho que faz?
Era isso.
O quarto escuro.
A lâmpada tremendo no teto.
O cheiro do meu próprio desespero grudando nas paredes.
E eu ali.
Agarrada em mim.
Tentando lembrar como se respira quando o mundo te mata aos poucos.
As palavras da Regina ainda dançavam na minha cabeça, feito demônio em festa:
"Te vendi."
"Vai ser útil."
"Igual um pedaço de carne."
Nunca me senti tão pouca.
Tão nada.
Tão violada sem nem ter sido tocada.
Me encolhi mais, tentando desaparecer dentro do próprio corpo.
Como se se eu ficasse bem pequena, bem imóvel, o destino esquecesse de mim por uns minutos.
Mas o destino não esquece de quem sangra calada.
Eu tremia.
De medo.
De raiva.
De vergonha.
E de uma vontade assassina que me ardia no estômago feito veneno.
O dia seguinte nasceu torto.
A luz do sol passou pela fresta da janela como navalha, cortando a escuridão com crueldade.
Mas dentro de mim ainda era noite.
Daquelas que nem estrela tem. Só sombra e silêncio.
Eu nem tinha dormido.
Passei a madrugada inteira acordada, sentada no canto do quarto, com o rosto inchado e o coração mastigado por dentro.
O barulho da chave girando do lado de fora me fez levantar o olhar.
Regina destrancou a porta com a calma de quem não fez nada de errado.
Entrou com uma caneca fumegando na mão.
O cheiro de café misturado ao perfume barato e ao suor azedo dela me embrulhou o estômago.
Por um segundo, achei que fosse ironia.
Um teatro barato pra me quebrar.
Mas nem isso.
Ela chegou perto, me olhou de cima como se eu fosse lixo grudado no chão.
Sorriu com a boca torta, falsa.
E do nada… splash
Jogou o café inteiro no chão.
Do meu lado.
O líquido espirrou, quente, sujando meu pé, o lençol, as palavras que escorriam do caderno esquecido no canto.
— “Achou que ia ganhar mimo, foi?” — ela cuspiu. — “Que eu ia te dar café na cama só porque vai ser levada feito princesa?”
Eu não respondi.
Só encarei.
O vapor ainda subia da mancha no chão.
O cheiro invadiu o quarto.
Me queimou por dentro.
Mas eu não pisquei.
Ela riu.
Mas foi nervoso.
— “Tá esperando o quê, hein? Vai chorar? Vai implorar?”
Dei um passo.
Firme.
E parei bem na frente dela.
— “Você queria me ver de joelho. Quebrada. Pedindo migalha.”
O sorriso dela vacilou.
— “Mas eu sou filha de mulher. Não de verme.”
O tapa veio rápido.
Estalou na minha cara como sentença.
A cabeça virou, o sangue subiu, a pele ardeu.
Mas eu não caí.
Voltei o olhar pra ela.
Mais fundo. Mais frio.
— “Bate enquanto pode, Regina. Porque se eu sair viva disso.
…”
A minha voz rasgou o ar.
Baixa. Firme. Cheia de veneno.
— “Um dia ainda te mato.”
Ela deu dois passos pra trás.
Mas não era medo.
Era pose de cobra se preparando pra dar o bote.
E aí veio o riso.
Seco. Gelado.
Desceu pelo corredor como se tivesse cuspido enxofre.
— “Tu acha que vai sair viva, é?”
Ela arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços.
— “Acorda, garota. Tu não tem ideia do que tá te esperando.”
Deu mais um passo, agora perto demais.
O bafo dela encostou no meu rosto como tapa morno.
— “Esses traficante não vão te tratar como gente, não.”
Falou baixo, quase sussurrando.
Cruel.
— “Tu vai subir aquele morro como dívida… e eles adoram cobrar com carne nova.”
Fez um estalo com a língua, como quem conta moeda.
— “Primeiro vão te mandar calar a boca. Depois vão arrancar tua roupa. E por fim… teu orgulho.”
Eu travei a mandíbula.
Mas ela continuou, saboreando cada palavra:
— “Se tiver sorte, vão te usar como mula. Encher tua barriga de pó e te mandar viajar. Se tiver azar… vai virar brinquedinho de bandido. Vai servir cada noite pra um diferente. Até cansarem de ti.”
Ela sorriu.
Daquele jeito que só filha da p**a sabe sorrir.
— “E quando cansarem… vão sumir contigo.
Cavar um buraco qualquer, jogar teu corpo lá dentro e botar terra por cima como se tu nunca tivesse existido.”
Ela chegou mais perto.
Encostou o dedo no meu peito.
— “E sabe o que vai sobrar de ti, Amara?”
Cutucou.
— “Nada.”
Deu as costas, satisfeita com o estrago.
Andou até a porta.
Virou só pra jogar a última pá de terra:
— “Então aproveita teus últimos dias de ‘princesinha rebelde’. Porque depois que tu subir… ninguém mais vai lembrar teu nome.”
E saiu.
A porta bateu.
O trinco girou de novo.
Prendeu a prisão por dentro.
Eu fiquei ali.
Com o rosto ardendo.
Com a alma sangrando.
Fiquei ali.
No mesmo lugar.
No mesmo silêncio.
No mesmo corpo que eu já não reconhecia.
As paredes pareciam respirar.
Como se zombassem da minha dor.
Como se dissessem:
“Tu não sai viva.”
Mas eu não chorei mais.
Nem uma lágrima.
Já tinha secado tudo por dentro.
Até a fé.
Fui até a cama devagar, cada passo doía como se o chão puxasse meu pé pra baixo.
Sentei, mas não deitei.
Não tinha mais descanso.
Nem sonho.
Peguei o caderno.
Aquele que sempre me salvou.
Mas hoje...
Nem ele dava conta.
Escrevi só uma frase.
Com a letra tremida, borrada:
“Se eu não morrer, eu mato.”
Fechei devagar.
Escondi de novo embaixo do colchão.
Como quem guarda uma arma.
Fiquei encarando o nada.
As mãos sujas da Regina ainda pareciam grudadas no meu corpo.
Mesmo longe.
Mesmo fora do quarto.
Ela ainda me contaminava.
Mas dentro da podridão...
nasceu um pensamento.
Frio. Feroz.
Cortante.
Quem é?
Quem é o desgraçado que aceitou me comprar?
Como se eu fosse gado.
Como se minha vida tivesse etiqueta, preço, e data de validade.
Como se meu corpo fosse moeda.
O pensamento começou pequeno.
Mas foi crescendo.
Virando faca.
Cravando no meu peito.
Quem é esse traficante filho da puta... que achou que podia me ter como se eu fosse posse?
Como se eu fosse dívida quitada em carne viva?
Me levantei da cama.
Devagar.
Firme.
Abri a janela.
O céu tava cinza, pesado.
Dava pra ouvir o som das motos ao longe, riscando o asfalto.
Fechei os olhos por um segundo.
Senti o vento bater na cara.
O cheiro de chuva, de cidade podre, de tudo que eu nunca escolhi.
Mas dentro de mim…
nasceu outra coisa.
Não era medo.
Era fúria.
Fúria pura, crua, viva.
Respirei fundo.
Seja quem for...
esse dono de morro, esse chefe, esse rei da bandidagem...
Ele não vai me domar.
Não vai quebrar minha vontade.
Não vai apagar meu nome.
Porque eu não sou mercadoria.
Eu não sou prêmio.
Eu não sou corpo disponível.
Eu sou tempestade.
E quando me levarem…
não vão levar uma menina.
Vão levar uma maldição.
Sangrando, sim.
Com medo, talvez.
Mas de cabeça erguida e alma em brasas.
Porque ninguém nunca me quis.
Ninguém nunca me salvou.
E por isso…
Eu aprendi a ser minha própria guerra.
Seja quem for esse dono de morro…
que se prepare.
Porque eu vou ser vendida, mas não vencida.
Vou ser levada, mas não laçada.
Vou ser prisioneira, mas nunca posse.
E quando ele tentar me dobrar…
vai descobrir:
Eu sou a vendida.
Mas sou indomável.