Leopardo Narrando
Dizem que todo homem é forjado pelas mãos do pai. Se isso for verdade, eu fui moldado a ferro e sangue.
Meu pai, Gavião, nunca acreditou em carinho, nunca acreditou em amor. Desde moleque, a frase que mais ouvi sair da boca dele foi: “Amor é fraqueza, Leopardo. Quem ama se perde.” E eu cresci acreditando. Cresci repetindo essas palavras na minha cabeça, até que elas se tornaram parte de mim, tatuadas na alma.
Mas, por dentro, eu sempre soube que aquilo era mentira. Porque eu já tinha sentido o que era amor. Não o de mulher, não ainda. Mas o de mãe.
Minha mãe morreu cedo, quando eu tinha só oito anos. Câncer no útero, disseram. Uma doença que a levou devagar, sugando cada pedaço da vida dela diante dos meus olhos. E mesmo doente, fraca, sem forças pra levantar da cama, ela nunca deixou de sorrir pra mim. Nunca deixou de me abraçar, de me dizer que eu era tudo pra ela.
Era uma mulher que, apesar da vida que levava, nunca deixou de me dar afeto. E eu, naquela idade, não entendia por que ela chorava escondida, por que às vezes ficava dias sem sair de casa. Só depois percebi: ela amava meu pai. Amava de um jeito torto, sofrido, um amor que nunca foi correspondido. Porque o Gavião nunca amou ninguém.
Lembro bem do enterro dela. Chuva fina, barro até o tornozelo, o cheiro das flores molhadas. Eu chorei até perder a voz. Meu pai? Ficou de pé, sério, com os olhos secos, como se estivesse enterrando uma desconhecida. Quando perguntei por que ele não chorava, ele apenas respondeu:
— Homem não chora, Leopardo. E amor só serve para enfraquecer.
Naquele dia, aprendi duas coisas: que a vida é c***l, e que meu pai seria meu professor na dor.
Cresci ouvindo seus discursos. Ele me treinou para ser líder, para assumir o morro. Me ensinou a atirar antes mesmo de aprender a fazer conta direito. Me mostrou como olhar nos olhos de um inimigo sem piscar, como impor respeito sem precisar levantar a mão. Tudo era força. Tudo era poder. Carinho? Afeto? Isso não existia no dicionário dele.
E eu, moleque, queria agradar. Queria provar que não era fraco. Então, escondi meus sentimentos. Enterrei qualquer vontade de abraçar, de dizer que sentia falta da minha mãe, de chorar quando as lembranças vinham fortes. E assim fui virando o homem que ele queria: frio, calculista, preparado.
Mas dentro de mim, uma chama queimava. Eu só não sabia ainda que um dia ela ia me consumir.
A primeira vez que vi a Viviane como um homem olha pra uma mulher, eu ainda era adolescente. Filha do seu Antônio e da dona Sandra, gente trabalhadora, donos da padaria mais movimentada do morro. Ela era diferente das outras meninas. Tinha algo nos olhos que me prendia. Uma mistura de doçura e coragem. O tipo de olhar que parecia enxergar além da casca dura que eu mostrava pro mundo.
Eu me apaixonei no silêncio. Não contei pra ninguém. Era o meu segredo mais bem guardado.
Passei anos juntando coragem pra me aproximar dela, e quando decidi me aproximar, meu pai chegou primeiro. Gavião já tinha usado sua lábia, seu jeito de homem poderoso, para conquistá-la. Eu assisti em silêncio enquanto ele se aproximava dela, enquanto ela, ingênua, caía nos encantos dele. E quando percebi, já era tarde demais: Viviane era esposa do meu pai.
Esse foi o golpe mais duro que levei na vida. Mais do que perder minha mãe, mais do que qualquer cicatriz que carrego no corpo. Porque pela primeira vez eu tinha deixado meu coração falar, e ele foi esmagado sem piedade.
Assumir o morro depois disso não foi vitória. Foi peso. Enquanto meu pai se aposentava, me passando a coroa do poder, eu recebia junto a lembrança constante de que ele tinha roubado o único amor que eu tive coragem de sentir.
Naquele dia, fiz uma promessa a mim mesmo: se eu não pudesse ter Viviane, não teria mais ninguém. Não da forma verdadeira.
Desde então, virei pedra. Mulher, pra mim, virou só distração. Pente e rala. Não n**o prazer, mas não entrego nada além disso. Não deixo ninguém entrar onde só Viviane mora. Meu corpo pode estar com várias, mas minha mente… sempre volta pra ela.
Sempre ela.
Tem dias que me pego lembrando de como seria se eu tivesse falado antes. Se eu tivesse enfrentado meu pai, se eu tivesse dito pra ela: “Você é a mulher que eu amo.” Será que ela teria olhado pra mim diferente? Será que eu teria tido chance?
Mas o “se” não existe no morro. Aqui, ou você age, ou perde. E eu perdi.
Agora, cada vez que vejo Viviane, meu peito aperta. O sorriso dela, ainda é a coisa mais bonita que já vi. Mas também é o lembrete da minha fraqueza, do meu silêncio covarde.
E ver ela nas mãos do meu pai… isso me destrói por dentro. Por que eles podem ser o casal dez, pro morro, mas eu vejo a tristeza no seu olhar, aquele olhar não tem mais o mesmo brilho pelo qual me apaixonei.
Ele a trata como posse, como se fosse um objeto. E eu, que cresci ouvindo que amor era fraqueza, hoje percebo que é justamente o contrário. Amor é a única coisa que me faz querer ser mais do que meu pai foi.
Mas amar a mulher dele é um pecado que não se confessa. Então, engulo. Engulo e sigo. Mostro pro mundo que sou frio, que nada me abala, que mando no morro sem tremer. Mas à noite, quando fico sozinho, a imagem dela me persegue.
Viviane. Sempre Viviane.
Eu herdei o trono do morro, mas junto com ele herdei um castigo. O de viver cada dia olhando pro que nunca vou poder ter. O de carregar um amor proibido, enterrado a sete chaves, mas que me corrói por dentro.
E, por mais que eu me esconda atrás da frieza que meu pai me ensinou, sei que um dia esse segredo vai explodir.
Saí da boca com a mente cheia de números, fornecedores e contas pra fechar. O morro nunca dorme, e ser dono dele significa carregar um peso constante nos ombros. Hoje eu ia até a casa do meu pai pra resolver um problema com um carregamento de armas. Negócio sério, que exigia conversa direta.
Mas quando cheguei, antes mesmo de bater à porta, ouvi os gritos. Reconheci a voz dela. Viviane.
Meu peito travou. O sangue ferveu.
Encostei na parede, ouvindo. A voz dela estava firme, mas embargada de dor:
— Eu não aguento mais, Gavião. Acabou! Eu não sou sua posse, eu sou uma mulher!
A resposta dele veio como um rugido de fera acuada:
— Cala a boca, Viviane! Você não vai sair da minha vida. Você é minha, ouviu? Minha!
Foi quando escutei o barulho seco, um tapa. O chão pareceu sumir debaixo dos meus pés. Sem pensar duas vezes, empurrei a porta com força.
A cena me atingiu como um soco no estômago: meu pai, de pé, com a mão erguida, pronto pra bater nela de novo. Viviane encolhida, os olhos cheios de lágrimas, mas ainda desafiadora.
— CHEGA! — minha voz ecoou tão forte que fez os dois virarem pra mim.
Antes que ele pudesse reagir, agarrei o braço dele e o arrastei pra trás, tirando-o de cima dela. O impacto foi pesado, meu corpo inteiro reagiu com a fúria que eu segurava há anos.
— O que você pensa que tá fazendo, moleque?. — ele gritou, tentando se soltar. — Isso aqui é entre eu e MINHA mulher.
Eu segurei firme, os olhos queimando nele.
— Mulher não é propriedade, pai. — cuspi as palavras como veneno.
— O que tá acontecendo aqui Viviane. — perguntei pra ela, sem tirar os olhos do meu pai.
Viviane, com a respiração ofegante, se levantou devagar. O olhar dela encontrou o meu, e naquele instante tudo ao redor desapareceu. Ela tremia, mas tinha coragem na voz:
— Eu terminei com ele, Leopardo. — disse firme. — Eu não quero mais isso. Eu quero sair desse inferno. E eu… eu quero proteção.
Proteção. Essa palavra acendeu dentro de mim como fogo em pólvora.
Proteção. Era o que eu sempre quis dar a ela, mas nunca tive chance.
Endireitei os ombros, soltei ele com um empurrão e gritei:
— A partir de hoje, ela está sob a minha proteção. — Minha voz saiu como um trovão. — Se você ousar chegar perto dela de novo, vai ter que passar por mim.
Os olhos de Gavião se arregalaram, surpresos por um segundo, antes de se encherem de ódio.
— Você enlouqueceu? — ele cuspiu. — Vai trair seu próprio pai por causa dessa mulher?
Eu me aproximei, o rosto a poucos centímetros do dele.
— Se for preciso ficar contra você para protegê-la… eu fico sem pensar duas vezes.
— falei baixo, firme, cada palavra carregada de verdade.
O silêncio pesou. A respiração dele estava descompassada, o olhar ardendo em fúria.
Viviane me olhava com lágrimas escorrendo, mas havia algo novo no olhar dela: esperança.
E naquele instante eu soube, que não havia mais volta.
Meu caminho estava traçado.
Mesmo que significasse enfrentar o homem que me criou, eu protegeria Viviane.
Com sangue, se fosse preciso.
Porque o Leopardo que ele criou pode ser dono do morro. Mas o homem que existe dentro de mim… esse só tem um dono. E o nome dela é Viviane.