Faísca na tempestade

1080 Words
Cecília acordou com o som de vozes femininas e panelas batendo na cozinha improvisada da casa de apoio. A luz do sol entrava tímida pela fresta da janela. Por um instante, pensou estar em outro lugar, livre. Mas bastou sentar na cama e encarar as paredes descascadas para lembrar: ainda era prisioneira de um morro dominado por um homem que não sabia o que significava liberdade. Ela vestiu a roupa simples que deixaram para ela — uma blusa regata cinza e uma calça de moletom gasta. Quando saiu do quarto, sentiu todos os olhares sobre si. As mulheres cochichavam, algumas com curiosidade, outras com desprezo. Ela não fazia parte daquele mundo. Era óbvio. — Bom dia — disse uma mulher mais velha, de avental sujo de farinha. — Tem café ali. Pode servir, se quiser. — Obrigada — respondeu Cecília com um aceno leve. Sentou-se à mesa, observando em silêncio. As crianças corriam de um lado pro outro, enquanto algumas mães tentavam dar conta do caos. Aquilo era um abrigo, sim, mas também era um reflexo da dureza da vida no morro. Um lugar onde a sobrevivência era prioridade. E, apesar de tudo, havia mais verdade ali do que no apartamento de luxo onde fora criada. Ela m*l tinha dado dois goles no café quando Ivan apareceu na porta. Alto, sério, os olhos varrendo o lugar até encontrá-la. — O chefe quer falar com você. Ela revirou os olhos. — E se eu não quiser falar com ele? Ivan deu de ombros. — Aí ele vem falar com você. E, sinceramente… é melhor ir. --- Danilo estava na quadra, onde os garotos treinavam boxe sob orientação de um dos soldados mais antigos. Usava calça cargo preta, sem camisa, revelando tatuagens que cobriam seus braços e parte do peito. Suava, com os punhos enfaixados, dando socos certeiros num saco de pancadas velho, preso a uma estrutura improvisada. Cecília parou na entrada, os braços cruzados, observando a cena. O coração acelerou sem sua permissão. Ele era o tipo de homem que entrava em qualquer lugar e dominava o ar. O corpo definido, os movimentos precisos, a força contida. Mas o que mais a afetava eram os olhos. Aqueles olhos escuros que pareciam decifrar tudo o que ela não dizia. — Me chamou pra quê? — disse em tom seco. Danilo parou de bater. Pegou uma toalha e limpou o suor da testa. Se aproximou sem pressa, como quem está no controle até do tempo. — Pra saber se você tá bem. Ela arqueou a sobrancelha. — Preocupado comigo agora? Que mudança repentina. — Teus tios não fizeram BO. Nem ligaram pra polícia. Isso confirma o que você disse… que estão falidos e querem te usar pra subir na vida. Cecília mordeu o lábio, frustrada. Odiava que ele estivesse certo. — E o que você vai fazer com essa informação? Vender? Chantagear? Danilo chegou mais perto, tão perto que ela sentiu o calor do corpo dele. — Ainda não sei. Mas não é isso que me incomoda. — E o que te incomoda, então? — Que você acorda num lugar desconhecido, cercada de gente que você nunca viu, e mesmo assim não abaixa a cabeça. Tá sempre pronta pra bater de frente. Isso… não é comum. Ela deu um passo para o lado, tentando manter a distância. — Talvez porque eu já tenha vivido cercada de gente falsa. E você, por mais criminoso que seja, ainda parece mais real que eles. A sinceridade saiu antes que ela percebesse. Danilo sorriu de lado, e dessa vez não foi de deboche. — Fica mais um tempo aqui. — O quê? — Fica. Quero te mostrar como as coisas funcionam de verdade. Sem máscara. Sem hipocrisia. Você quer fugir disso tudo, né? Então começa vendo o que tem do outro lado. Cecília hesitou. A ideia era absurda. Mas, ao mesmo tempo, havia algo nela que queria entender aquele mundo — e aquele homem. — E o que você ganha com isso? — Ainda tô tentando descobrir. --- Os dias passaram devagar, mas Cecília começou a perceber detalhes que antes ignorava. Danilo não era apenas o “dono do morro”. Ele era o centro de tudo. Resolvia brigas, ajudava moradores, mantinha a ordem. Não hesitava em ser c***l quando necessário, mas também não deixava ninguém à míngua. Era uma mistura de líder e lobo. E o mais estranho: as pessoas o respeitavam não só pelo medo, mas por gratidão. Certa tarde, viu uma mulher com dois filhos pequenos chegar desesperada na laje. O marido tinha batido nela e fugido. Antes que ela terminasse de falar, Danilo mandou dois dos seus homens buscarem o cara. Em menos de vinte minutos, ele apareceu espancado na frente da mulher, obrigado a pedir desculpas de joelhos. — Se encostar nela de novo, não vai mais andar — disse Danilo, encarando o sujeito nos olhos. Cecília assistiu tudo de longe, sentindo um nó no peito. O que se faz com as mãos sujas pode ter mais valor do que mil discursos bonitos? Naquela noite, sentada na laje com Ivan e Lívia — a irmã caçula de Danilo, uma garota esperta e simpática — ela riu pela primeira vez desde que chegou. E Danilo apareceu em silêncio, apenas observando. — Você tem um sorriso bonito — disse ele, quando os dois ficaram a sós. — E você tem um problema — retrucou ela, mas com um sorriso no canto dos lábios. Danilo se aproximou, puxando uma cadeira de plástico e sentando ao lado. — Não esperava que fosse rir aqui em cima. — Nem eu. Mas talvez o problema da minha vida nunca tenha sido o lugar… e sim quem estava nele. Danilo a observou por um longo tempo. — Você é diferente, Cecília. Ela respirou fundo, desviando o olhar para a cidade iluminada abaixo. Lá estavam os prédios, as luzes, os carros. Tudo que um dia representou segurança. — E você… é perigoso. E eu odeio isso. — Mas sente, né? Ela fechou os olhos por um segundo. — Sinto. E odeio ainda mais por isso. O silêncio entre eles foi mais intenso que qualquer palavra. Naquela noite, quando voltou para o quarto, o coração de Cecília batia forte. E ela sabia: por mais que resistisse, algo dentro dela já havia começado a mudar. E Danilo também. Mesmo sem admitir, aquela garota da zona sul estava mexendo com ele de um jeito que ninguém mais conseguia. Nem mesmo o passado.
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