Quando a Guerra chega sem Aviso

1146 Words
O dia amanheceu pesado no morro. O céu, coberto por nuvens cinzentas, parecia refletir o clima entre os becos: olhares desconfiados, passos apressados e a certeza de que algo estava prestes a acontecer. As crianças, normalmente correndo pelas escadarias, agora eram mantidas dentro de casa por mães que sentiam no ar o cheiro de pólvora, mesmo que nada ainda tivesse explodido. Danilo caminhava ao lado de Ivan, descendo por um dos becos principais. Os olheiros o cumprimentavam com acenos respeitosos. Ele respondia com um aceno curto, o rosto fechado. A foto de Ramon ainda queimava em sua mente. O traidor estava de volta. E ele precisava estar um passo à frente. — O que os olheiros disseram? — perguntou Danilo, sem parar de andar. — Que viram ele perto do Porto Antigo. Chegou com dois caras armados, ficou conversando com o gerente de um dos galpões e depois sumiu. Nenhum tiro. Nenhuma ameaça. — Porque ainda tá sondando. Quer saber se a gente tá enfraquecido. — E estamos? Danilo parou. Virou-se para Ivan, seus olhos escurecendo. — Estamos atentos. E isso já é mais do que ele espera. --- Cecília acordou com um pressentimento r**m. Sentia o estômago revirado, como se o mundo estivesse prestes a ruir. Lívia a observava do canto do quarto, sentada na cadeira de vime com os braços cruzados. — Você não vai conseguir salvar ele, sabe disso, né? — Eu não tô tentando salvar Danilo, Lívia. Eu tô tentando não me perder no meio disso tudo. — Ele vai te puxar pro fundo. Ele já puxou. Cecília se levantou, foi até a janela. Lá de cima, via parte do morro, mas o que mais lhe chamava atenção era a movimentação de homens nos becos. Estavam armados. Organizados. — O que tá acontecendo? — Guerra. — Por causa de Ramon? — Por causa de tudo. Poder, passado, traição. Lívia se levantou e foi até ela. — Mas se você ficar... é bom entender que isso aqui não é só paixão. Isso aqui é vida ou morte. Cecília segurou firme o parapeito da janela. — Eu não fujo. Nunca fugi. --- Na laje de um prédio abandonado, Danilo reuniu seu grupo principal. Ivan ao lado, como sempre. Três outros homens, todos de confiança, estavam com ele. — Ramon apareceu. A gente não vai esperar ele atacar. Vamos mostrar que quem manda aqui sou eu. Não vai ter arrego. Um dos homens levantou a voz: — E se ele tiver aliados de fora? Polícia, facção de outro estado...? — Então a gente expõe. Ninguém entra no meu território sem ser notado. Ninguém engana minha quebrada. Se ele quiser guerra, vai ter. Mas vai sair daqui em um caixão. Ivan jogou sobre a mesa um papel amassado. Era uma impressão de um print de celular. — E tem mais: ele tá em contato com o pessoal do Complexo da Serra. Gente que não pisa aqui desde a época do seu pai. Danilo franziu o cenho. — Então essa guerra é mais antiga do que parece. — É uma tentativa de tomar tudo — completou Ivan. Danilo olhou para os rostos à sua volta. Gente que já havia matado e morrido por ele. Gente que confiava em sua palavra. Que aceitava suas ordens sem pestanejar. — Hoje à noite, a gente cerca o galpão. Quero todos os acessos vigiados. Se Ramon estiver lá, a gente pega ele. Se não estiver... a gente manda um recado. Ninguém volta ao morro pra trair e sai impune. --- No fim da tarde, Danilo foi até Cecília. Ela estava sentada no degrau da casa de apoio, as mãos sujas de tinta — havia ajudado a pintar uma das salas que Lívia queria transformar em biblioteca. Ele se aproximou em silêncio. Ela nem precisou olhar pra saber que era ele. — Vai começar, né? — Já começou. — Vai se vingar? — Vou proteger o que é meu. Ela olhou nos olhos dele. Havia um misto de fúria e medo ali. — E eu? Eu sou sua também? Danilo se abaixou até ficar na altura dela. — Você é o que eu não posso perder. Ela engoliu as palavras que queria dizer. Apenas estendeu a mão, suja de tinta branca. Danilo a segurou, apertando com força. — Me promete que vai voltar hoje à noite. — Prometo. — E se não voltar? — Aí você vai ter que me encontrar. --- O céu escureceu e a favela mudou de cor. As luzes se apagaram em pontos estratégicos, becos ficaram silenciosos e os homens de Danilo se espalharam como sombras. Ele e Ivan seguiam num carro blindado, direção ao galpão onde Ramon havia sido visto. — Você tá muito calmo pra alguém que vai pra guerra — disse Ivan. — Porque eu aprendi com meu pai que os que gritam demais são os primeiros a cair. Quando chegaram, encontraram o galpão trancado. Mas os cadeados estavam cortados — e havia marcas de pneus no chão. — Ele já esteve aqui — disse Danilo, os olhos varrendo o local. Ao entrarem, encontraram uma cadeira no centro, uma garrafa de uísque vazia e uma carta escrita à mão. Danilo leu em silêncio. Depois passou a carta a Ivan. “A guerra não é pelo morro. É pela verdade. Você vai descobrir em breve que seu pai morreu pelas próprias escolhas. Eu só fui a última peça do tabuleiro. Até breve.” Ivan amassou o papel. — Ele tá brincando com você. — Não. Ele tá jogando. E eu entrei no jogo. --- De volta à casa de apoio, Cecília aguardava. Cada minuto parecia uma eternidade. Lívia tentava distraí-la com conversas, mas os olhos de Cecília estavam presos na porta. Até que ela se abriu. Danilo entrou, com sangue na camisa, mas sem ferimentos. Ela correu até ele. — O que aconteceu? — Ele esteve lá. Deixou um recado. — Que tipo de recado? Danilo se aproximou, a respiração pesada. — Que a história da morte do meu pai... ainda não foi contada por inteiro. — E você vai atrás dela? — Vou. — Mesmo que isso te destrua? Ele a encarou, firme. — Mesmo assim. Cecília respirou fundo, se aproximando. — Então me deixa te ajudar. Mas da minha forma. Danilo a puxou para perto. Pela primeira vez, o beijo entre eles não foi marcado apenas por desejo, mas por medo, entrega e uma necessidade urgente de conexão. --- Na madrugada, enquanto todos dormiam, Ivan fez outra ligação. Sua voz era baixa, cautelosa. — Ele caiu direitinho. A carta foi entregue. O recado dado. Agora... é esperar ele cavar a própria cova. Do outro lado da linha, uma risada curta. — Ele vai descobrir quem matou o pai. Mas não vai gostar da verdade. Ivan desligou e encarou o céu escuro pela janela. Porque no fim, até o mais leal... tem seus próprios segredos.
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