O dia amanheceu pesado no morro. O céu, coberto por nuvens cinzentas, parecia refletir o clima entre os becos: olhares desconfiados, passos apressados e a certeza de que algo estava prestes a acontecer. As crianças, normalmente correndo pelas escadarias, agora eram mantidas dentro de casa por mães que sentiam no ar o cheiro de pólvora, mesmo que nada ainda tivesse explodido.
Danilo caminhava ao lado de Ivan, descendo por um dos becos principais. Os olheiros o cumprimentavam com acenos respeitosos. Ele respondia com um aceno curto, o rosto fechado. A foto de Ramon ainda queimava em sua mente. O traidor estava de volta. E ele precisava estar um passo à frente.
— O que os olheiros disseram? — perguntou Danilo, sem parar de andar.
— Que viram ele perto do Porto Antigo. Chegou com dois caras armados, ficou conversando com o gerente de um dos galpões e depois sumiu. Nenhum tiro. Nenhuma ameaça.
— Porque ainda tá sondando. Quer saber se a gente tá enfraquecido.
— E estamos?
Danilo parou. Virou-se para Ivan, seus olhos escurecendo.
— Estamos atentos. E isso já é mais do que ele espera.
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Cecília acordou com um pressentimento r**m. Sentia o estômago revirado, como se o mundo estivesse prestes a ruir. Lívia a observava do canto do quarto, sentada na cadeira de vime com os braços cruzados.
— Você não vai conseguir salvar ele, sabe disso, né?
— Eu não tô tentando salvar Danilo, Lívia. Eu tô tentando não me perder no meio disso tudo.
— Ele vai te puxar pro fundo. Ele já puxou.
Cecília se levantou, foi até a janela. Lá de cima, via parte do morro, mas o que mais lhe chamava atenção era a movimentação de homens nos becos. Estavam armados. Organizados.
— O que tá acontecendo?
— Guerra.
— Por causa de Ramon?
— Por causa de tudo. Poder, passado, traição.
Lívia se levantou e foi até ela.
— Mas se você ficar... é bom entender que isso aqui não é só paixão. Isso aqui é vida ou morte.
Cecília segurou firme o parapeito da janela.
— Eu não fujo. Nunca fugi.
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Na laje de um prédio abandonado, Danilo reuniu seu grupo principal. Ivan ao lado, como sempre. Três outros homens, todos de confiança, estavam com ele.
— Ramon apareceu. A gente não vai esperar ele atacar. Vamos mostrar que quem manda aqui sou eu. Não vai ter arrego.
Um dos homens levantou a voz:
— E se ele tiver aliados de fora? Polícia, facção de outro estado...?
— Então a gente expõe. Ninguém entra no meu território sem ser notado. Ninguém engana minha quebrada. Se ele quiser guerra, vai ter. Mas vai sair daqui em um caixão.
Ivan jogou sobre a mesa um papel amassado. Era uma impressão de um print de celular.
— E tem mais: ele tá em contato com o pessoal do Complexo da Serra. Gente que não pisa aqui desde a época do seu pai.
Danilo franziu o cenho.
— Então essa guerra é mais antiga do que parece.
— É uma tentativa de tomar tudo — completou Ivan.
Danilo olhou para os rostos à sua volta. Gente que já havia matado e morrido por ele. Gente que confiava em sua palavra. Que aceitava suas ordens sem pestanejar.
— Hoje à noite, a gente cerca o galpão. Quero todos os acessos vigiados. Se Ramon estiver lá, a gente pega ele. Se não estiver... a gente manda um recado. Ninguém volta ao morro pra trair e sai impune.
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No fim da tarde, Danilo foi até Cecília. Ela estava sentada no degrau da casa de apoio, as mãos sujas de tinta — havia ajudado a pintar uma das salas que Lívia queria transformar em biblioteca.
Ele se aproximou em silêncio. Ela nem precisou olhar pra saber que era ele.
— Vai começar, né?
— Já começou.
— Vai se vingar?
— Vou proteger o que é meu.
Ela olhou nos olhos dele. Havia um misto de fúria e medo ali.
— E eu? Eu sou sua também?
Danilo se abaixou até ficar na altura dela.
— Você é o que eu não posso perder.
Ela engoliu as palavras que queria dizer. Apenas estendeu a mão, suja de tinta branca. Danilo a segurou, apertando com força.
— Me promete que vai voltar hoje à noite.
— Prometo.
— E se não voltar?
— Aí você vai ter que me encontrar.
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O céu escureceu e a favela mudou de cor. As luzes se apagaram em pontos estratégicos, becos ficaram silenciosos e os homens de Danilo se espalharam como sombras. Ele e Ivan seguiam num carro blindado, direção ao galpão onde Ramon havia sido visto.
— Você tá muito calmo pra alguém que vai pra guerra — disse Ivan.
— Porque eu aprendi com meu pai que os que gritam demais são os primeiros a cair.
Quando chegaram, encontraram o galpão trancado. Mas os cadeados estavam cortados — e havia marcas de pneus no chão.
— Ele já esteve aqui — disse Danilo, os olhos varrendo o local.
Ao entrarem, encontraram uma cadeira no centro, uma garrafa de uísque vazia e uma carta escrita à mão. Danilo leu em silêncio. Depois passou a carta a Ivan.
“A guerra não é pelo morro. É pela verdade. Você vai descobrir em breve que seu pai morreu pelas próprias escolhas. Eu só fui a última peça do tabuleiro. Até breve.”
Ivan amassou o papel.
— Ele tá brincando com você.
— Não. Ele tá jogando. E eu entrei no jogo.
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De volta à casa de apoio, Cecília aguardava. Cada minuto parecia uma eternidade. Lívia tentava distraí-la com conversas, mas os olhos de Cecília estavam presos na porta.
Até que ela se abriu.
Danilo entrou, com sangue na camisa, mas sem ferimentos.
Ela correu até ele.
— O que aconteceu?
— Ele esteve lá. Deixou um recado.
— Que tipo de recado?
Danilo se aproximou, a respiração pesada.
— Que a história da morte do meu pai... ainda não foi contada por inteiro.
— E você vai atrás dela?
— Vou.
— Mesmo que isso te destrua?
Ele a encarou, firme.
— Mesmo assim.
Cecília respirou fundo, se aproximando.
— Então me deixa te ajudar. Mas da minha forma.
Danilo a puxou para perto. Pela primeira vez, o beijo entre eles não foi marcado apenas por desejo, mas por medo, entrega e uma necessidade urgente de conexão.
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Na madrugada, enquanto todos dormiam, Ivan fez outra ligação. Sua voz era baixa, cautelosa.
— Ele caiu direitinho. A carta foi entregue. O recado dado. Agora... é esperar ele cavar a própria cova.
Do outro lado da linha, uma risada curta.
— Ele vai descobrir quem matou o pai. Mas não vai gostar da verdade.
Ivan desligou e encarou o céu escuro pela janela.
Porque no fim, até o mais leal... tem seus próprios segredos.