Aurora Mancini
A mansão Vitale era bela.
De um jeito c***l.
Cada detalhe gritava riqueza e poder: mármore polido que refletia a luz fria dos lustres de cristal, escadarias amplas como as de um palácio, quadros de artistas mortos pendurados nas paredes, e um silêncio que pesava mais do que mil vozes.
Mas a beleza ali não tinha alma. Era uma fachada, um véu cobrindo a podridão que crescia sob cada pedra, sob cada carpete. A casa era grande demais, fria demais. Como o coração do homem que agora me mantinha dentro dela.
Fui levada a um quarto no segundo andar. Duas criadas me acompanharam em silêncio — meninas jovens, de olhos baixos, que pareciam treinadas para não encarar ninguém nos olhos. Uma delas carregava uma bandeja com chaves, remédios e um celular bloqueado. A outra apenas segurava a porta.
Quando entrei, senti que tinha atravessado um limiar. Aquilo não era um quarto. Era uma cela. De luxo, sim. Mas ainda assim uma cela.
O ambiente era impecável. Cama king size de dossel branco, lençóis finos que pareciam nunca ter sido usados. Cortinas pesadas, veludo escuro escondendo as janelas. Um closet maior do que qualquer quarto em que já dormi na vida, repleto de roupas novas, cuidadosamente penduradas. Lingeries ainda com etiquetas. Sapatos que não eram meus tamanhos, mas que certamente seriam trocados em breve.
Havia uma varanda trancada, com vista para o mar — o mar que nunca mais veria de perto. Um banheiro que parecia parte de um hotel cinco estrelas. Banheira oval, toalhas bordadas com a letra V. Tudo pensava por mim. Tudo escolhido por alguém que não se importava com o que eu queria.
Eu era a boneca de porcelana que o Capo colocava na prateleira.
— Ele deixou ordens — disse uma das criadas, com a voz baixa. — A senhorita não pode sair deste andar.
— E se eu quiser sair? — perguntei.
Ela desviou o olhar.
— Vai encontrar portas trancadas e homens armados.
O coração apertou no peito.
Não havia sequer a ilusão de liberdade.
— Ele também pediu que a senhorita se alimente. Há uvas, queijo, vinho... o que desejar será providenciado.
— Menos liberdade — murmurei.
— Não nos cabe opinar, senhorita.
E então elas saíram. A porta se fechou. E trancou por fora.
Ouvi o clique do ferro. Gelado. Definitivo.
Estava sozinha.
Não completamente — câmeras escondidas vigiavam cada canto. Eu podia sentir os olhos invisíveis percorrendo minha pele.
Ele me observava.
O Capo.
Salvatore Vitale.
Não o vi novamente naquele dia. Nem no seguinte. Ele me ignorava como se eu fosse um objeto recém-entregue, aguardando ser usado no momento certo.
E eu... eu tentava manter a sanidade.
Passei os dias andando em círculos no quarto. Lia os rótulos de perfumes que nunca pedi. Arrancava pétalas das rosas que apareciam em vasos todos os dias pela manhã.
"Uma mulher deve ser tratada com beleza", dizia um dos cartões.
Mas eu não queria beleza. Queria minha vida de volta.
Não era só prisioneira. Eu era um lembrete. Uma dívida pendurada na parede do trono de Salvatore.
Uma mensagem viva de que ninguém trai a família Vitale.
***
Na manhã do terceiro dia, tentei escapar.
Esperei o momento em que a criada entrou para deixar o café da manhã. Agarrei a maçaneta antes que a porta se fechasse, corri pelo corredor, desci as escadas. O segurança no térreo me interceptou com um braço só.
— Você não pode fazer isso, senhorita.
— Me solta! Eu quero sair! — gritei, debatendo como um animal encurralado.
— Ordens do Capo.
— Eu não sou dele!
— Agora é.
Me jogaram de volta ao quarto como se eu fosse uma criança rebelde. Meu pulso doía, minha dignidade também.
E quando a porta se trancou novamente, eu chorei.
Mas foi a última vez.
Naquela noite, Salvatore finalmente apareceu.
Vestia preto. Sempre preto. Camisa aberta no colarinho, o terno caindo com precisão sobre seu corpo de guerreiro.
Estava com uma taça de vinho na mão, como se tivesse vindo apenas para conversar.
— Interessante, bella — disse ele, encostando na porta e me observando como um cientista examina um animal raro. — Três dias. Você aguentou três dias antes de tentar escapar. Apostei em dois.
— Por que está fazendo isso?
— Porque seu pai deve sangue à minha família.
— Então mata ele! Me deixa fora disso!
— Já o matei.
A frase caiu sobre mim como uma lâmina.
Fria.
Silenciosa.
Imediatamente letal.
— Ele sabia que você seria o preço. Ele escolheu a própria vida por mais dois meses... e entregou a sua no meu lugar.
Senti a náusea subir.
Não chorei. Não diante dele. Mas meu corpo tremia.
— Você é um monstro.
— Eu sou o Capo. Monstros são úteis no meu mundo.
Ele caminhou até mim, devagar. Sentou-se na poltrona ao lado da cama e me encarou como se esperasse que eu explodisse.
— Vai me matar também?
— Não.
— Vai me tocar? Me forçar?
Ele sorriu, mas não foi um sorriso de prazer. Foi de tédio.
— Você tem ideias demais. Eu gosto de controle, sim. Mas não da maneira que pensa. Não ainda.
E então ele se levantou, caminhou até mim e parou tão perto que pude sentir o calor do seu corpo, mas ele não me tocou.
— Você vai escolher. Vai se entregar. Vai me implorar.
— Nunca.
— Ah, Aurora... — ele roçou os dedos em meu queixo, quase com carinho. — Todo mundo diz "nunca", até que entende o preço da liberdade.
E então saiu. Sem olhar para trás.
A partir daquele dia, a mansão mudou.
Passaram a deixar livros no quarto — literatura italiana, romances antigos, códigos da máfia. As criadas passaram a me chamar de donna Aurora, como se eu fosse a esposa de um chefe.
Eu era alimentada com os melhores pratos. Recebia presentes caros. Mas continuava trancada.
E Salvatore… ele surgia em momentos inesperados. Sempre calmo, sempre calculado.
Nunca me tocava. Mas seus olhos...
Seus olhos me despia inteira.
Comecei a questionar quem era ele.
O que via em mim.
O que planejava.
Até que uma noite, ouvi gritos.
Gritos reais. Dor de verdade.
Saí pela porta do quarto, que dessa vez estava destrancada. Desci até o térreo — e me escondi atrás de uma pilastra.
Dois homens estavam ajoelhados no meio do salão. Um deles chorava. O outro implorava por perdão.
Salvatore estava diante deles.
Segurava uma pistola com silenciador.
Seu rosto... sereno.
— Vocês roubaram da minha carga — ele dizia. — E tocaram na mulher errada.
O primeiro tiro foi seco.
O segundo também.
Os corpos tombaram.
O sangue escorreu pelo mármore como vinho derramado.
Eu gritei.
Não consegui me conter.
Foi um som curto, mas agudo o bastante para alertá-lo.
Ele virou. Me viu.
Por um segundo, nada aconteceu. Então, ele caminhou em minha direção.
— Eu mandei trancar sua porta.
— Estava aberta.
— Eu preciso trocar meu pessoal.
Ele me olhou como se estivesse escolhendo o que fazer comigo. Pensei que seria minha vez. Que aquela arma seria virada para mim.
Mas ao invés disso, ele me pegou no colo. Como se eu fosse uma criança.
Como se o sangue no chão não existisse.
Me levou de volta ao quarto, em silêncio. Me deitou na cama, cobriu meu corpo com o lençol. Depois, sentou-se à beira da cama e me encarou.
— Este é o mundo que seu pai te vendeu, Aurora. Eu só estou cumprindo o contrato.
— Você matou dois homens... como se fosse nada.
— Eles eram nada.
— E eu?
— Você... ainda não sei. Mas está aprendendo rápido.
Ele se inclinou, encostou os lábios na minha testa, como um amante.
Mas era um beijo frio. De aviso. De posse.
— Durma bem, piccola. Amanhã você conhecerá o que significa ser uma Vitale.
E então me deixou novamente sozinha.
No escuro.
Na jaula de ouro onde minha alma começava a apodrecer...
... e onde, ironicamente, começava também a nascer uma estranha, doentia e perigosa atração.