Olhares

1188 Words
A movimentação da festa ainda fervia quando percebi uma sombra que destoava da euforia geral. As pessoas gargalhavam, brindavam, dançavam como se não houvesse amanhã. O salão inteiro vibrava ao som da banda que misturava violinos com batidas eletrônicas, e os garçons m*l davam conta de repor as bandejas de bebidas. Mas, em meio a esse turbilhão, meus olhos se prenderam a uma figura que parecia… deslocada. Eliza. A delegada circulava pelas bordas do salão, sem a menor intenção de se misturar àquele mar de gente. Havia algo no jeito como seus olhos analisavam cada detalhe do ambiente que me fez franzir o cenho. Não era só desinteresse — era investigação. Como se estivesse tentando absorver cada movimento, cada passo, cada expressão suspeita. Foi nesse instante que a vi se afastando discretamente, deslizando pelas laterais do salão até desaparecer em um corredor menos iluminado. Minha curiosidade, é claro, não me permitiu simplesmente ignorar. Se Eliza estava se movendo daquele jeito, tinha alguma coisa acontecendo. E, se eu queria entender qual era a dela, essa era a chance perfeita. Respirei fundo, ajeitei o paletó e fui atrás. O corredor parecia infinitamente mais silencioso do que o salão. Apenas algumas luzes amareladas iluminavam as paredes enfeitadas com quadros de paisagens clássicas. O som abafado da música chegava distante, como se fosse de outro mundo. Segui seus passos atentos até que a encontrei parada, semioculta atrás de uma divisória de madeira, de onde tinha visão privilegiada para um grupo de seguranças que conversavam discretamente. Seus olhos estavam fixos ali, analisando cada gesto. Sorri sozinho. Me aproximei de mansinho, até estar perto o suficiente para que minha presença fosse impossível de ignorar. — Perdida por aqui, delegada? — minha voz quebrou o silêncio. Ela se virou num sobressalto, a mão instintivamente indo para a cintura, como se tivesse a arma ali. O olhar duro, afiado, encontrou o meu. — O que você está fazendo aqui? — perguntou seca, desconfiada, sem disfarçar a irritação. Levantei as mãos em rendição, fingindo inocência. — Calma, calma… não precisa atirar em mim, eu só estava procurando o banheiro. — deixei a voz carregada de ironia. — Mas, pelo visto, acabei achando algo bem mais interessante. Ela arqueou uma sobrancelha, o canto dos lábios repuxando em deboche. — Procurando o banheiro? Essa é boa. — deu um passo em minha direção, os olhos me atravessando. — Você não tem cara de quem se perde fácil… só de quem gosta de se enfiar onde não deve. Dei um sorriso provocador, sem recuar. — Talvez um pouco dos dois. Ela bufou, claramente impaciente, e passou por mim sem dar margem para mais conversa. O perfume dela — uma mistura fresca e marcante, impossível de ignorar — ficou suspenso no ar enquanto a vi retornar ao salão. Fiquei alguns segundos parado, ainda com aquele meio sorriso no rosto. Eliza podia ser fria e debochada, mas não tinha como negar: cada palavra dela carregava uma eletricidade diferente. Voltei para a festa e encontrei o ambiente ainda mais animado. Quase todos já estavam na pista de dança. Muitos se divertiam no centro, até Kian — sempre tão sério — arriscava alguns movimentos ao lado de uma mulher qualquer. A energia era contagiante. Foi então que meus olhos se prenderam novamente em Eliza. Ela estava parada na beira da pista, com uma taça na mão, observando a todos como se fosse uma estrangeira naquele território. A carranca dela destoava tanto do ambiente que chegou a me dar vontade de provocá-la. E eu não resisti. Me aproximei com passos firmes e um sorriso que eu sabia que a irritaria. Estendi a mão e, com voz baixa, quase desafiadora, perguntei: — A delegada aceita me acompanhar numa dança? Ela me olhou como se eu tivesse acabado de falar a maior idiotice da noite. — Você só pode estar brincando. — respondeu seca. Inclinei o rosto, mantendo o sorriso. — Brincando? Nem um pouco. A pista está cheia, até seu amigo, que com certeza também é policial resolveu se soltar. Só falta você. Ela estreitou os olhos, como se tentasse decifrar minhas intenções. — Eu não danço. — rebateu, mas sem a convicção que eu esperava. Aproximei a mão mais um pouco. — Então vai ser a primeira vez. Ela soltou uma risada curta, debochada, e finalmente colocou a taça sobre a mesa mais próxima. — Você é insistente demais. — murmurou. — Mas, já que insiste tanto… vamos ver se aguenta. A sensação de vitória percorreu meu corpo quando ela colocou a mão na minha. Levei-a até o centro da pista, guiando-a pelo meio da multidão. A música mudou para um ritmo envolvente, uma fusão de tango que parecia ter sido feita sob medida para o momento. Segurei sua mão com firmeza e a posicionei de frente para mim. Eliza manteve o corpo rígido, os olhos correndo de um lado para o outro, como se ainda estivesse analisando o ambiente. Parecia dançar comigo apenas por conveniência, para não chamar atenção. Mas eu tinha outros planos. Conduzi os primeiros passos com calma, mas sem dar espaço para que ela se esquivasse. Meu braço envolveu sua cintura, e mesmo que ela não olhasse para mim, percebi que seu corpo reagia, se moldando aos meus movimentos com naturalidade. — Relaxa, delegada. — sussurrei, próximo ao ouvido dela. — Não é um interrogatório, é só uma dança. Ela não respondeu. O silêncio dela me provocava mais do que qualquer palavra. Era como se o mistério estivesse estampado na expressão séria, nos olhos que nunca paravam quietos. E foi aí que decidi ousar. Aproveitei uma virada da música e, num movimento calculado, girei-a rápido, fazendo com que o corpo dela se arqueasse para trás, quase tocando o chão. Minha mão firme sustentava sua cintura, impedindo que caísse. Naquele instante, os olhos dela finalmente se prenderam aos meus. Houve algo ali. Uma faísca. Por um segundo, todo o barulho da festa pareceu sumir. O mundo inteiro se resumiu ao olhar dela, que oscilava entre surpresa e algo que eu não conseguia decifrar. Talvez raiva por eu ter ousado tanto, talvez… curiosidade. Puxei-a de volta, trazendo seu corpo contra o meu, próximos demais. Podia sentir a respiração acelerada dela, o calor que emanava de sua pele. Meu sorriso se suavizou. — Viu só? Nem doeu. Ela piscou rápido, tentando recompor a máscara de frieza. — Já está bom. — murmurou, escapando do meu abraço com um movimento ágil. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela se afastou, retomando a pose carrancuda de sempre. Fiquei parado, acompanhando-a com os olhos enquanto se misturava novamente à multidão. E, quando virei o rosto, dei de cara com Kian. Ele estava parado do outro lado da pista, os braços cruzados e uma expressão de quem tinha acabado de me pegar no flagra. Seus olhos carregavam um brilho divertido, e a curva no canto da boca não deixava dúvidas. A mensagem era clara: “danadinho…” Suspirei fundo, deixando escapar uma risada discreta. Talvez tivesse passado um pouco do limite… mas, no fundo, eu sabia: aquela faísca entre mim e Eliza não tinha sido só imaginação.
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