O salão inteiro parecia respirar ao mesmo tempo. Era impressionante como a exibição de uma pedra podia transformar homens e mulheres ricos, experientes, acostumados ao luxo, em meros mortais ofegantes diante do brilho de algo que não podiam possuir.
Eu, no entanto, não olhava para a safira. Olhava para as pessoas. Cada suspiro, cada sorriso, cada olhar escondido me dizia mais do que mil relatórios financeiros. O verdadeiro negócio nunca está na joia em si, mas na reação que ela provoca.
O colecionador ergueu a pedra com luvas de seda branca e um cuidado exagerado, como se segurasse um coração humano pulsando. Sua voz ecoou no microfone:
— Senhoras e senhores, esta é a Safira do Czar, uma joia com mais de cem anos de história, agora exposta pela primeira vez no Brasil. Hoje, não celebramos apenas sua beleza, mas a força da cultura e a responsabilidade social de todos nós.
Aplausos ecoaram. Eu pude ver lágrimas discretas nos olhos de algumas socialites que já estavam na terceira taça de champanhe.
Kian, ao meu lado, sussurrou:
— Se eu tivesse um real por cada lágrima falsa dessa sala, já poderia comprar metade das suas minas.
— Talvez eu te dê uma participação, então — respondi, sem tirar os olhos da multidão. — Mas não se esqueça, Kian: essas lágrimas movem montanhas.
Ele riu, baixinho.
O colecionador prosseguiu com seu discurso, exaltando a “bondade” de quem contribuía para as crianças em situação de rua. Enquanto isso, garçons passavam entre as mesas servindo pratos caros: lagosta grelhada com manteiga de ervas, filé ao molho trufado, risoto de açafrão. Tudo calculado para impressionar, mas eu só conseguia prestar atenção no jogo invisível acontecendo no ar.
Minha mente funcionava como um tabuleiro de xadrez. Cada pessoa era uma peça. Cada olhar, um movimento.
Foi aí que percebi de novo: Eliza.
Ela estava afastada, próximo ao bar, segurando uma taça de vinho branco, mas não bebia. Os olhos escuros varriam cada detalhe. Ela não estava ali para socializar, nem para admirar a safira. Ela caçava.
Kian percebeu também.
— Aquela ali não pertence a esse lugar.
— Pertence mais do que qualquer um aqui. Só não percebe ainda — respondi, estudando-a com calma. — Essa mulher é diferente.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Diferente como?
Sorri de lado.
— Como um lobo em meio a ovelhas.
Enquanto falávamos, o juiz Arnaldo Bastos, um velho conhecido, se aproximou de mim com sua esposa enfeitada em joias exageradas. Ele me cumprimentou calorosamente:
— Varella! Sempre uma honra vê-lo. Espero que ainda esteja investindo naquelas escolas comunitárias no interior.
Fingi o sorriso perfeito.
— Claro, excelência. A educação é o maior patrimônio que podemos deixar para o futuro.
A esposa dele suspirou.
— Que homem admirável… sempre tão engajado.
Eu me limitei a agradecer, mas por dentro ri. Eles não sabiam que metade das “doações” que citei eram lavagens sofisticadas, transformando sangue em ouro, crime em caridade.
Depois de mais algumas fotos com empresários e celebridades, decidi circular pelo salão. Precisava observar sem ser observado. Cada conversa captada, cada detalhe podia me dar pistas de como o rumor da safira estava se espalhando.
No canto da sala, três políticos discutiam discretamente sobre contratos de mineração. Um deles já era meu cliente, os outros dois ainda estavam na minha mira. Próximo à mesa central, duas jornalistas cochichavam, mas uma delas mantinha os olhos fixos demais na joia — certamente Eliza plantara alguém para cobrir cada ângulo.
Caminhei até o bar. Pedi outro uísque, e foi ali que percebi algo fascinante: Eliza também se moveu, como se instintivamente tivesse lido meu movimento.
Ela se aproximou. Não a mim diretamente, mas ficou a poucos metros, apoiada no balcão, sem nunca soltar a taça.
Nossos olhares se cruzaram por um instante. Breve, mas intenso. E naquele olhar havia algo que eu não esperava: não era só hostilidade. Era desafio.
Kian percebeu e riu baixinho.
— Ela te olha como se pudesse te despir até a alma.
— Talvez possa — respondi, girando o copo com calma. — Mas a questão é: eu deixarei?
Ele bufou.
— Você gosta do perigo.
— Eu sou o perigo.
Enquanto isso, o colecionador já se preparava para encerrar a apresentação da safira. A joia voltaria ao estojo de veludo e seria exibida discretamente em encontros privados para possíveis compradores. O plano estava funcionando. Bastava esperar que Eliza seguisse o rastro.
Mas não pude evitar de observá-la mais uma vez. A forma como ela analisava cada detalhe me intrigava. Diferente da polícia que eu conhecia — corrupta, preguiçosa, facilmente manipulável —, ela parecia se mover com propósito real.
A música ambiente mudou para jazz, e casais começaram a dançar. Eu não dancei. Prefiro controlar, não me deixar conduzir. Fiquei à margem, assistindo, planejando, estudando.
Foi nesse momento que Kian voltou ao meu lado com um sorriso provocador.
— Patrão, você viu o olhar que o senador deu na joia? Se ele pudesse, já teria mordido a redoma.
— Ele vai morder, em breve. E quando morder, teremos a confirmação de que Eliza está seguindo o caminho certo.
Kian se inclinou.
— Você realmente vai usar essa pedra só pra testar a mulher?
Olhei para ele, sério.
— Não subestime um teste, Kian. Às vezes, uma simples jogada de peão abre caminho para o xeque-mate.
Ele assentiu, mas não parecia convencido. Ainda assim, sabia que não era seu papel questionar.
Enquanto todos riam, bebiam e fingiam ser filantropos, eu estava montando uma armadilha invisível. E a única pessoa naquele salão que parecia pressentir isso era justamente a delegada.
Quando as luzes do salão se suavizaram e o evento seguiu para a parte social — brindes, mais música, mais risadas falsas —, percebi que Eliza se afastava em direção ao corredor lateral.
Eu sabia o que havia ali: a entrada de serviço, onde os seguranças transitavam.
Senti um arrepio de antecipação.
Ela estava farejando o rastro.
E eu queria ver até onde iria.