Baile da Safira

1062 Words
A sala de gala do Hotel Renaissance, em São Paulo, estava iluminada como se o próprio sol tivesse decidido se enroscar nos lustres de cristal. Cada detalhe fora cuidadosamente planejado: as mesas impecavelmente postas, os arranjos de orquídeas brancas e azuis, o tapete vermelho que serpenteava até o palco principal. Mas, para mim, nada daquilo era apenas luxo. Era uma cortina de fumaça. Meu “laranja”, o colecionador de arte, havia chegado mais cedo. Kian — sempre no comando dos bastidores — cuidara de cada passo da entrada dele, garantindo que sua imagem de filantropo e amante das artes fosse sustentada por sorrisos, entrevistas e até um pequeno artigo no jornal local. Eu não precisava aparecer em cada fotografia, mas sim garantir que os holofotes estivessem direcionados para as pessoas certas. “Patrão, o velho tá brilhando mais que os lustres,” murmurou Kian ao meu lado, com aquele sorriso de canto. Ele usava um smoking preto bem ajustado, camisa branca e gravata borboleta azul-marinho. Seus ombros largos pareciam prontos para intimidar qualquer um, mas ele compensava com uma elegância que chamava atenção. “Se ele sorrir mais, vai acabar rasgando a cara.” Eu ri baixo, ajeitando a lapela do meu terno italiano. “Deixe-o brilhar, Kian. Hoje, ele é a estrela. Não eu.” “Claro. O senhor prefere ficar na penumbra, como sempre. O homem das sombras,” respondeu ele, teatral. “Olha só, se não fosse minha masculinidade inabalável, eu juraria que você gosta de bancar o misterioso só pra me seduzir.” Revirei os olhos. “Você nunca perde a chance, né? Mas é por isso que eu gosto de você. Alguém tem que me lembrar que, apesar de tudo, eu ainda sou humano.” Ele riu e seguiu pelo salão para checar discretamente os seguranças. Enquanto isso, eu observava meu plano ganhar vida. A safira de 100 quilates estava guardada em um estojo de veludo preto, fechado, repousando em uma redoma de vidro no centro da sala. Mais tarde, durante o ápice do evento, ela seria exibida sob luzes especiais, como uma joia de conto de fadas. O colecionador faria o discurso sobre a importância de preservar a arte e a cultura, e, claro, sobre o valor simbólico de doar para crianças carentes. Eu já podia prever as manchetes do dia seguinte: “Colecionador apresenta safira rara em evento beneficente para ajudar crianças de rua.” Ninguém desconfiaria que, por trás daquilo, havia um rastro de sangue, corrupção e contrabando. O Brasil sempre fora um palco perfeito para mascarar minhas operações. Aqui, onde a desigualdade era tão gritante, qualquer milionário que colocasse dinheiro em uma instituição de caridade era visto como um herói. E eu sabia manipular essa percepção como um maestro conduzindo uma sinfonia. Caminhei até o bar. Meu copo de uísque já me aguardava — Glenfiddich, 21 anos, como eu havia solicitado. Peguei a taça, girando o líquido âmbar lentamente, enquanto observava os grupos se formando no salão. Empresários, políticos, juízes, celebridades da televisão… todos fingindo uma nobreza que não possuíam. Eu sorria. Afinal, cada um deles, em algum nível, já havia se beneficiado das minhas pedras. “Gabrian, meu amigo!” — A voz do colecionador me alcançou. Ele veio até mim com passos lentos, mas firmes, exibindo um smoking branco que contrastava com sua pele bronzeada. Um homem carismático, de fala mansa, que parecia ter nascido para estar em um palco. “Está tudo perfeito, como você previu.” “Não esperava menos,” respondi, apertando sua mão. “Hoje você é o homem que todos querem conhecer. Não esqueça disso.” “E amanhã serei o homem que todos querem esquecer,” ele brincou, mas a tensão em seus olhos denunciava que sabia bem o jogo perigoso que jogava. “Relaxe. Você é apenas um colecionador apaixonado por arte. Não passa disso. O resto… deixa comigo.” Ele assentiu, e logo foi puxado para mais uma foto. Enquanto isso, Kian voltou para o meu lado. Seu olhar estava afiado, como sempre. “Tem polícia circulando. À paisana. Dois homens e uma mulher. Aposto que não vieram para o coquetel.” Meus olhos acompanharam discretamente o que ele indicava. E foi então que a vi. Eliza Ferraz. Ela não usava uniforme, nem crachá. Vestia um vestido preto discreto, sem brilho, os cabelos presos em um coque firme. O olhar dela era como uma lâmina — intenso, calculista, varrendo cada canto do salão como se pudesse atravessar paredes. Minha boca se curvou em um sorriso quase imperceptível. “Então, ela veio,” murmurei, mais para mim mesmo. Kian percebeu e franziu a testa. “Quem é ela?” Disse ele, não a reconhecendo. “Uma adversária. Talvez a mais interessante que já tive.” Ele soltou um riso debochado. “Adversária, é? Pelo jeito que você olha, parece mais um adolescente encarando a garota bonita da escola.” Balancei a cabeça, mas não tirei os olhos dela. “Engano seu, Kian. Eu não me apaixono. Eu calculo. E ela… é só uma equação nova para resolver.” “Claro, claro. Só cuidado, patrão. Equações podem virar bombas-relógio.” Ignorei o comentário, mas no fundo, sabia que ele tinha razão. O evento seguiu seu curso. Discurso do apresentador, jantar servido em pratos de porcelana, vinhos caríssimos sendo abertos a cada mesa. Eu participei das conversas certas, sorri nas fotos que me pediram, mas sempre com a mente voltada para a verdadeira peça do tabuleiro: a safira. Quando finalmente chegou o momento de revelá-la, as luzes se apagaram, e um feixe de holofote iluminou a redoma de vidro. O colecionador abriu o estojo, e a joia brilhou como se guardasse em si o próprio céu noturno. Um azul profundo, magnético, impossível de ignorar. As pessoas suspiraram, aplaudiram, algumas até se emocionaram. Mas meus olhos não estavam na safira. Estavam em Eliza. Ela não se deixou encantar como os outros. Pelo contrário, vi seus lábios se contraírem em uma linha rígida, os olhos estreitando. Ela sabia. Ou, ao menos, desconfiava. E isso era tudo o que eu queria. Eu não precisava que ela resolvesse o mistério hoje. Precisava apenas que mordesse a isca. Enquanto todos celebravam, eu bebi mais um gole do meu uísque, sentindo o calor da bebida deslizar pela garganta. O jogo estava apenas começando. E, naquele tabuleiro, eu era o rei.
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