A linha já estava cortada, a conversa com o meu “laranja” terminara, e eu fiquei em silêncio na penumbra do meu escritório em Nova Iorque. O Nightbird estava estacionado em um hangar privado, como um falcão à espera da próxima caçada. A cidade lá fora fervilhava, mas eu não ouvia nada além do meu próprio raciocínio.
A safira de cem quilates repousava em um cofre escondido atrás de uma pintura renascentista — irônico, não? Arte escondendo crime. Mas não era apenas uma joia. Aquilo era o meu cavalo de Troia, a peça mais importante de um jogo que só eu sabia jogar.
Peguei uma taça de vinho tinto, girei o líquido devagar e deixei o rubro refletir na minha pele. Enquanto bebia, pensava nela. Eliza Ferraz. O nome soava como uma navalha, e a lembrança do olhar dela na sala de interrogatório ainda me incomodava. Não pelo risco — porque eu nunca corro risco real — mas pela intensidade. Ela ousou olhar nos meus olhos como se pudesse me decifrar. A maioria das pessoas vacila. Ela não.
E era exatamente por isso que eu queria testá-la. Queria saber até onde ia a delegada que a mídia pintava como incorruptível, precisa e quase obsessiva. Se ela fosse tudo o que parecia ser, essa safira a atrairia como mel atrai abelhas. Se não fosse... bom, apenas mais uma mulher tentando brincar de caça ao lobo.
Coloquei a taça sobre a mesa de carvalho e apertei o botão discreto na lateral do telefone criptografado.
— Kian, traga os relatórios da noite passada. Quero também um update do “Anjo Caído”. —
A porta abriu-se segundos depois, e meu assistente entrou. Ele era um homem malhado, alto, careca, pardo, sempre impecável, elegante... E gay, com o tipo de postura que passa despercebida em qualquer multidão, eu não tenho nenhum tipo de preconceito, o amor não se julga. Ele é um cara incrível, notável, principalmente pelo fato dele ser meu assistente e ter brincos de diamante. E é justamente por isso que o mantenho tão perto: visibilidade é uma arma poderosa.
— Senhor Varella — disse ele, depositando um tablet diante de mim. — Os relatórios financeiros já estão ajustados. Três transações foram mascaradas com sucesso através das fundações de caridade. Ninguém desconfiou.
Passei os dedos pela tela. As doações fictícias estavam registradas como contribuições para um hospital infantil, um instituto de arte e um projeto ambiental. O mundo adora um vilão de terno e gravata que posa de herói.
— E o “Anjo Caído”? — perguntei.
— Ele enviou isso. — Kian projetou na tela uma série de gráficos e códigos. — Já limpou qualquer vínculo digital entre a safira e o museu russo. Pelo menos nos registros oficiais. Mas deixou uma trilha falsa, propositadamente, ligando o colecionador ao mercado n***o europeu.
Sorri. Ah, esse hacker tinha um talento que beirava o artístico. Ele entendia o valor de uma isca bem posicionada.
— Excelente. Quero que mantenha o colecionador sob observação. — Cruzei as pernas, reclinando-me na cadeira. — Se a delegada realmente merece a fama que tem, vai rastrear essa pedra até ele. Se não merece... ela vai tropeçar e quebrar a cara.
Kian assentiu, mas havia algo nos olhos dele. Uma hesitação.
— Senhor, me permita uma observação.
— Fale.
— A delegada Ferraz não parece o tipo que se intimida facilmente. Colocar uma peça como essa em jogo pode... atrair demais a atenção.
— É exatamente isso que eu quero. — Interrompi, a voz baixa, firme. — O perigo não está em ser caçado, Kian. Está em ser ignorado. Quando o inimigo se fixa em você, ele deixa pontos cegos em todos os outros lugares.
Ele baixou a cabeça em sinal de respeito. Eu sabia que minha mente funcionava em camadas que poucos compreendiam. Mas era simples: eu precisava que Eliza olhasse para a mão direita enquanto a esquerda movia o verdadeiro império.
No cofre, a safira parecia pulsar sob a luz. Peguei-a com uma luva de seda, observando cada faceta. Cem quilates de pura provocação. Era como se estivesse viva, respirando, pronta para contar segredos.
Lembrei-me do colecionador: Augusto Lins, brasileiro de quarenta e cinco anos, com cara de acadêmico entediado. Amante de arte, presença constante em leilões, conhecido por pagar caro demais por peças medíocres apenas para aparecer nas colunas sociais. Tinha uma esposa rica e ausente, e uma necessidade quase doentia de ser notado. Em outras palavras: o peão perfeito.
Eu o “descobri” em Paris, anos atrás, quando comprou um quadro falso de Van Gogh e exibiu como original em sua mansão no Rio. Rimos juntos quando eu lhe contei a verdade — mas eu ri por último. Desde então, ele me devia favores, e dívidas comigo nunca ficam impagas.
Peguei o telefone de linha segura e disquei.
— Augusto.
A voz dele surgiu nervosa do outro lado. — G-Gabrian. É sempre uma honra quando você me liga.
— Honra não paga contas — respondi, seco. — Você vai participar de uma festa em São Paulo, certo?
— Sim, no Instituto de Arte Contemporânea. Um evento beneficente, muitos colecionadores estarão lá.
— Ótimo. Você vai levar algo especial. Uma safira. Cem quilates. —
O silêncio pesou do outro lado da linha. Eu podia quase ouvir o suor escorrendo na testa dele.
— C-cem quilates? Isso... isso não passará despercebido, Gabrian.
Sorri. — Esse é exatamente o ponto. Você não precisa se preocupar com nada. Apenas exiba a peça. Venda-a discretamente para quem eu indicar. O resto... deixe comigo.
— E se... se alguém perguntar a origem?
— Você vai dizer que herdou de um tio europeu excêntrico. A história é tão absurda que ninguém ousará questionar. —
Ele riu nervosamente. — E quanto eu... ganho com isso?
— O suficiente para você comprar mais quadros falsos e encher a sua mansão de histórias patéticas. — Minha voz endureceu. — E, Augusto, lembre-se: quando eu peço algo, não é um favor. É uma ordem.
A ligação terminou, e eu sabia que ele obedeceria. O medo é a moeda mais valiosa.
Kian voltou à sala com novos documentos.
— Precisamos definir a logística de transporte da safira. Não podemos correr riscos no trajeto até o Brasil.
Levantei-me, caminhando até o cofre. Abri-o com o código biométrico e, por um instante, deixei Kian admirar a joia. Ele nunca ousaria tocá-la sem minha permissão.
— Vamos pelo Nightbird. — Decidi. — Mas quero que a joia viaje em uma maleta de segurança, com rastreamento falso. O destino oficial será Buenos Aires. Se alguém interceptar, vai seguir uma trilha inexistente.
— E quanto à alfândega? —
— Já comprei a alfândega. — Respondi, seco. — Dinheiro tem um cheiro irresistível.
Dei instruções para que o “Anjo Caído” alterasse registros de voo e simulasse cargas fantasmas. Se alguém resolvesse investigar, encontraria apenas um transporte de vinhos caros, declarado e legalizado.
Tudo era planejado em camadas: primeiro, o disfarce visível; depois, o truque escondido; e por fim, o ás na manga que ninguém esperava.
Naquela noite, recebi em meu apartamento uma modelo francesa. Alta, loira, sorriso vazio. Eu não precisava de companhia, mas às vezes o silêncio pesa, e corpos bonitos servem como distração temporária. Enquanto ela falava sobre desfiles em Milão, eu pensava na delegada. Era quase insultante: eu tinha uma mulher nua na minha cama, mas minha mente vagava até os olhos castanho-escuros e intensos de Eliza Ferraz.
Quando a modelo adormeceu, levantei-me e caminhei até a janela. Nova Iorque brilhava como um tabuleiro infinito de peças douradas. Eu era o rei desse jogo. Mas pela primeira vez em muito tempo, havia uma peça que eu ainda não compreendia.
— Veremos do que você é feita, delegada... — murmurei, olhando para o reflexo da safira em minhas mãos.
Na manhã seguinte, os preparativos estavam concluídos. O Nightbird decolaria ao entardecer, levando a safira ao Brasil, onde Augusto Lins faria o papel de pavão em sua festa beneficente.
No meu escritório, todos aguardavam instruções. Kian, preciso como sempre. O “Anjo Caído”, uma presença invisível, mas sentida. E eu, no centro, movendo as peças.
— Senhores — disse, levantando a taça de café como quem brinda —, hoje começamos uma caçada. Não contra a polícia. Não contra colecionadores. Mas contra uma única mulher.
O silêncio se instalou, pesado, reverente.
— Eliza Ferraz acha que pode me caçar. — Meu sorriso se abriu, lento. — Mas eu vou mostrar a ela que não passa de mais uma jogadora perdida no meu tabuleiro.
O tabuleiro invisível estava montado.
A peça estava em movimento.
E, pela primeira vez, eu não sabia se queria ganhar... ou apenas ver até onde a delegada estava disposta a ir.