Capítulo 1
Marcos Santini encarava o relógio de pulso pela terceira vez em menos de um minuto.
Vinte e oito anos. Dono de metade da cidade. E mesmo assim, preso naquela cadeira de couro caríssimo esperando. Esperar era coisa que ele não fazia.
Girou o copo de uísque entre os dedos, o gelo tilintando seco contra o cristal. Levou à boca. Três dedos de Glenlivet. Nem isso ajudava a conter a irritação.
Daniel o observava de esguelha, os ombros tensos. Conhecia Marcos desde a escola. Sabia o que vinha depois daquele silêncio carregado: explosões frias, ordens curtas, portas fechadas para sempre.
Os acionistas presentes também sentiam o clima se fechar como tempestade. Estavam ali por um único motivo: conseguiram finalmente uma reunião com Ive, a arquiteta de renome mundial que ninguém jamais vira pessoalmente. Apenas sua assinatura — poderosa, cara, e envolta em mistério. Todos sabiam que era um pseudônimo.
— Quem em sã consciência me faz esperar? — murmurou Marcos, sem desviar os olhos do relógio.
E então, a porta se abriu.
Daniel endireitou-se de imediato. Diego trocou um olhar rápido com ele. Ambos congelaram.
A mulher que entrou… não podia ser.
Mas era.
Ou parecia demais com alguém que nenhum dos dois ousava mencionar.
Ela caminhava como quem tinha o mundo nos ombros — e gostava do peso. O salto ecoava suave no piso. Um terninho vermelho impecável moldava o corpo esguio. Os cabelos loiros, presos num coque polido, destacavam a linha do queixo.
Mas foram os olhos que fixaram todos no lugar. Gélidos. Calculistas. Sem hesitação.
— Boa noite. Sou Ive — disse com clareza, parando junto à mesa. — A pessoa que vocês querem contratar.
Nenhuma dúvida. Nenhuma reverência. Nenhuma explicação.
Marcos permaneceu impassível, o copo ainda na mão. O rosto uma máscara esculpida.
Assentiu. Um gesto breve. Como se ela fosse apenas mais um número na agenda — e atrasado.
Houve uma oscilação quase imperceptível no olhar dela. Os olhos se estreitaram por um milésimo de segundo. Mas logo o controle retornou. Ela sentou-se.
A reunião começou.
A negociação foi como um jogo de xadrez sem pausa para respirar.
Ive era firme, direta, intransigente. Não aceitava qualquer projeto. Não vendia sua assinatura por vaidade ou cifras — ela cobrava interesse, controle criativo, e liberdade total para supervisionar tudo. E deixou isso claro logo nas primeiras trocas.
Marcos respondeu à altura.
Ele a queria naquele projeto. O novo shopping Santini seria o maior do grupo até agora. Precisava do melhor. E não aceitava não como resposta.
— Não aceito interferência — disse Ive, com os olhos fixos nele.
— Ótimo — ele respondeu. — Desde que você esteja presente. Todo o tempo. Cada etapa.
Diego e Daniel assistiam em silêncio. Ambos ainda digerindo a possibilidade absurda que se insinuava. Seria mesmo ela? Não fazia sentido. Marcos a teria reconhecido, certo? Eva Portinari desapareceu há sete anos. Ninguém some assim.
Mas e se…?
No final, depois de horas de negociação afiada, ela concordou. Projeto e supervisão. Um contrato que exigiria mais de um ano. E uma soma milionária que Marcos pagou sem pestanejar.
Ela assinou. O silêncio na sala que se seguiu foi o de quem sabia que algo grande tinha acabado de acontecer.
Ive fez menção de se levantar.
— Aceite ao menos uma bebida com a gente — disse um dos acionistas, sorrindo com alívio.
Ela assentiu com polidez.
— Claro. Só vou ao banheiro primeiro.
O corredor estava vazio e bem iluminado. Ela caminhava com passos contidos, o maxilar travado.
Maldito. Carlos Di’Angelo. Até seu nome é uma mentira agora.
Eva apertou os punhos. Foram sete anos. Sete anos se preparando para aquele momento, construindo uma nova identidade, um novo rosto, uma nova história. E ele não a reconheceu? Realmente?
Ela entrou no banheiro. Lavou as mãos devagar. A água fria escorrendo pelos dedos, como se pudesse limpar a memória com ela.
O espelho refletia uma mulher que não existia sete anos atrás. Ive era elegância, precisão, autoridade.
Eva era outra. Uma tola. Uma garota que acreditou no homem errado.
Ela ergueu o rosto, encarou a própria imagem.
— Você não é mais Eva Portinari — murmurou. — Agora você dita as regras.
Secou as mãos e saiu.
Não deu mais que dois passos.
Uma mão forte a puxou com violência controlada. As costas colidiram contra a parede do corredor. O susto roubou-lhe o fôlego. A respiração travou.
Marcos estava ali. Perto demais. O olhar escuro, intenso, mais frio que a parede sob sua pele.
— Achou mesmo que ia passar despercebida, Eva?
A voz dele era baixa, grave. Um veneno com gosto de memória.
Antes que ela pudesse responder, a boca dele cobriu a dela.
Não foi um beijo. Foi uma invasão.
Os lábios quentes, pressionando com força. As mãos firmes, delimitando seu corpo com raiva. O toque que ela conhecia — e que havia jurado esquecer — estava ali. Refeito. Destruidor.
Ela tentou reagir. O corpo tremia de adrenalina e ódio. Mas o choque... o choque de sentir ainda algo queimando sob a pele, de lembrar do gosto, da força, da forma como ele a prendia… congelou tudo.
Ele a beijava como se quisesse punir. Como se quisesse ferir.
Quando se afastou, os olhos ainda fixos nela, havia silêncio. Apenas o som da respiração pesada dos dois entrecortava o ar.
Ele deu um passo atrás, ajustou a gola do terno, e disse:
— Bem-vinda de volta.
E foi embora.
Eva ficou ali, o coração martelando no peito. As pernas ainda instáveis. Os lábios ainda queimando.
Ela fechou os olhos.
Eu achei que estava pronta.
E estou, tenho que estar , se alguem vai destruir alguém dessa vez serei a destruir antes de ser destruída!