A mexicana

3161 Words
Conter meus impulsos tempestuosos sempre fora um problema para mim. Certas situações me deixavam sem controle e uma das que mais me tirava do eixo era a de ser colocada para trás. Perdi facilmente a lucidez e fui tomada pela raiva. Avancei em cima de todos que vi pela frente e agredi aquela que agora estava ocupando meu espaço, lugar que conquistei com trabalho, esforço e dedicação. O pior de tudo era saber que nada do que eu falasse ou reclamasse faria diferença para o diretor de elenco. Não tinha ideia de como reconquistar o meu lugar no show. Desde o curso de ilusionismo fiquei mexida com o alto nível dos espetáculos de Las Vegas.  Foi por esse ambiente de possibilidades artísticas e de grandiosidade que eu assinei um contrato que me fez deixar tudo que tinha para trás. Em nenhum momento imaginei que teria meu nome desvalorizado sem motivos. Sentia-me uma estúpida ao pensar no que perdi para estar ali... Não queria acreditar que minha decisão profissional havia me levado ao fracasso. Antes de voltar ao teatro tentei acalmar meu íntimo para lidar com a situação sem perder o freio novamente e atropelar quem estivesse na minha frente... Cheguei cedo para o meu treino de preparo físico e logo descobri que havia sido cortada dele já que não faria mais o número que utilizava cabos de aço para fazer as acrobacias no ar... Respirei fundo e segui para minha nova rotina de exercícios bem mais básicos do que a rotina anterior. Depois de almoçar segui para o teatro e imediatamente percebi os olhares e risinhos dos outros artistas que pareciam fazer chacota de mim... Sentir que era motivo de risadas sem fazer graça não era nada agradável e me dava vontade de fazê-los parar de rir a todo custo. - Hola Mexicana! Um dos artistas disse me cumprimentando. - Arriba México! Disse outro rindo de mim e eu o encarei. - Sou do Brasil! Afirmei os olhando séria e eles saíram rindo. Não sabia por quanto tempo suportaria ser piada nos bastidores sem estourar. Infelizmente havia assinado um contrato que me comprometia por no mínimo seis meses e por isso não tinha saída além de cumpri-lo até ter a possibilidade de cancelá-lo. Até esse momento chegar eu precisava lidar comigo, minha raiva e descontentamento, e também com as pessoas ao meu redor, que pareciam se divertir bastante debochando de mim. Alguns dias terríveis se passaram e nos bastidores não me chamavam mais de Zatinni e sim de Mexicana. O apelido estava a ponto de me tirar do eixo mais uma vez. Buscava uma paciência dentro de mim que eu não sabia que existia, mas estava me cansando de ficar quieta e calada. - Zatinni, como está? O Marcelo, diretor de arte, me abordou após passar várias vezes perto de mim e apenas sorrir. - Poderia estar melhor. Respondi sem muita simpatia. - Tenho algo pra falar que vai gostar de ouvir. Disse ele me olhando e eu olhei para ele estreitando os olhos com suspeita. - O que acha que vou gostar de ouvir? Questionei de cabeça erguida. - Você é muito intensa e todos sabem disso, se souber fazer vai recuperar seu lugar em breve. Disse ele. - Porque está dizendo isso? Novamente o questionei ainda o olhando com suspeita. - Faça de conta que não ouviu isso, mas você se saiu muito melhor do que a artista que colocaram no seu lugar no número com os cabos. Ela não tem sua postura e força física. Contou olhando para os lados como se fosse um segredo. - Pode ser difícil, mas tenha paciência e não tente agredir mais ninguém. Ele aconselhou rindo e saiu ao ouvir alguém chamá-lo. Definitivamente precisa engolir meu orgulho e fingir que estava tudo bem... Nunca havia passado por nada parecido na vida, mas também trabalhar em um espetáculo grandioso em Las Vegas não podia ser comparado a trabalhar no circo que pertencia ao meu pai. Pela primeira vez eu estava por minha conta e risco e tinha que me adaptar a essa realidade se quisesse fazer minha escolha valer à pena. Durante dias senti meu sangue ferver ao outra pessoa em meu lugar, mas passei a observá-la e percebi que o Marcelo tinha razão, ela não estava pronta para as entradas principais quando tinha que voar em um cabo de aço. Nesses momentos ela era desajeitada e não tinha a menor leveza em seus movimentos... Ao assisti-la comecei a pensar que podia recuperar meu lugar. Mais alguns dias passaram e eu continuava com uma participação mínima no show, além de continuar sendo chamada de Mexicana... A Taynara que parecia se divertir ao saber do meu incomodo, contou que eu conquistei o apelido devido ao suposto drama da minha reação ao saber que tinha sido cortada dos números. Estava tão possessa que minha vontade era a de fazer as pessoas engolirem seus risinhos, mas precisava manter a calma e aceitar calada. Eu me sentia cada vez mais ridícula por não fazer nada e a situação estava me angustiando. Passei a pensar nas minhas escolhas e me questionar sobre elas... Fui uma i****a ao deixar o circo, mas principalmente ao deixar a Isabel para trás. Precipitei-me ao pensar que essa era a oportunidade da minha vida e que seria a minha chance de realizar um sonho profissional. Infelizmente o sonho estava mais para pesadelo e eu estava de mãos atadas, sem escape. Continuei indo para os treinos de preparo físico e para os ensaios... Meu estresse aumentava e Cada dia parecia pior que o outro. Os sacrifícios que estava fazendo não tinham mais sentido. Eu não dormia e não comia direito, estava a ponto de abandonar tudo e voltar para o Brasil.   - Zatinni, eu tenho um convite pra você. Abordou-me o Marcelo no fim de mais uma noite de show. - Saiu pra fazer alguma coisa na noite de Las Vegas desde que chegou? Ele perguntou. - Eu apenas fico no flat. Afirmei sem lhe dar muita atenção. - Vamos sair pra dançar e aproveitar a noite. Ele convidou sorrindo e esperando que eu aceitasse. - Eu tenho namorada. Afirmei e ele riu. - Que ótimo. Chame sua namorada que eu vou levar meu marido. Disse me surpreendendo. - Você é gay? Perguntei surpresa. - Muito gay e muito bem casado. Quero apresentar você ao meu marido, acho que ele pode ajudar você a encontrar outros trabalhos interessantes pra fazer aqui em Vegas. Falou me despertando interesse. - Chame sua namorada. Disse ele. - Ela ficou no Brasil. Afirmei e ele me olhou com cara de triste. - Agora entendi porque vive m*l humorada. Sente saudades. - Isso também. Admiti. - Bom, se ela não ligar de você sair na noite, tenho entradas Vips para uma super boate. Antes vamos jantar na minha casa e você pode se arrumar lá. Tenho roupas que cabem em você. Disse sorridente e como estava mesmo me sentindo sozinha aceitei o convite. - Que maravilha... Essa hora o Antony deve ter começado a fazer o jantar e eu vou finalizar. Vamos indo... Vai gostar da casa onde moro, é alugada, mas amo como se fosse minha. Afirmou e não parou mais de falar... Sentia tanta fome que não consegui lhe dar muita atenção. Seguimos para um lugar um pouco distante do teatro. Ele morava em um condomínio luxuoso. - Eu vivo em Las Vegas há cinco anos com meu marido. Nós dois somos italianos, mas nos conhecemos no Brasil, onde eu morei e trabalhei por três anos no Rio de Janeiro. Viemos para Vegas em busca de oportunidades artísticas. O Antony é ator e eu sou artista plástico, designer e decorador, mas a minha formação foi na vida, nunca estudei para isso. Ele contou quando chegávamos a sua casa que era bem alegre e repleta de decoração. - Antony, trouxe visita. A moça que lhe falei. Ele gritou ao entrar. - Desculpa Zatinni, Italiano é exagerado mesmo, fala alto. - Sem problemas. Você parece outra pessoa no trabalho. - Aah todos nós parecemos, temos que nos blindar com uma energia diferente pra conseguir viver nesse meio, de certa forma nós todos interpretamos para melhor socializarmos. Disse gesticulando com as mãos. - Oi, como vai? Eu sou o Antony. É do Brasil certo? O marido dele, que aparentava ser mais novo me abordou com simpatia. - Estou bem e sim, sou do Brasil. - Zatinni esse é Antony meu marido, o amor da minha vida! Declarou o Marcelo o abraçando. - Vocês podem me chamar pelo primeiro nome, Letícia. - Aah que ótimo, estamos todos íntimos agora, senta Letícia. Vamos conversar enquanto eu termino o jantar. Antony minha vida, ajude-me, sirva um vinho para a nossa amiga. Disse ele. - Veja se gosta? É o nosso vinho de todas as noites. Afirmou o Antony após me servir... Era um tanto doce e alcoólico demais, mas bom. - É gostoso. Afirmei. - Que ótimo, me sirva também. Preciso muito relaxar, os últimos dias foram estressantes... E você está mais calma agora Letícia? - Dificilmente vou ficar enquanto não tiver meu lugar de volta. Garanti e ele riu. - Por isso gostei de você, tem sangue nos olhos, por isso todos lhe chamam de mexicana agora, tem essa potência latina a força do drama. É pura arte. Ele disse. - Como você já sabe, eu não sou mexicana. Afirmei e ele riu. - Eu sei querida, mas nos bastidores não sabem... Deixe que chamem você assim, não dê ouvidos, melhor que falem de você para não ser esquecida. Disse rindo. - Estão rindo de mim porque fui feita de b***a e trocada por uma despreparada. Reclamei. - O Marcelo tem razão Letícia, o importante é que você seja lembrada. Estava tentando entender o que eles diziam, mas não concordava. - Tem muitas coisas sobre o show business que você precisa saber querida. O meio artístico é tão maravilhoso quanto perturbador. Precisa guardar sua força e raiva para brilhar nos palco e não para tentar esganar outro artista nos bastidores. Vai entender com o tempo, que esse é um meio muito acirrado, e passar um o outro para trás faz parte do processo. Mesmo que não seja muito ético, é assim que as coisas funcionam. Disse ele enquanto mexia nas panelas fazendo um aroma delicioso tomar a cozinha. - Quer saber como eu conheci o Antony. Foi exatamente como conheci você. Ele estava brigando nos bastidores de uma peça de teatro, gritando em Italiano com outro artista. Assim que ouvi a voz dele com tanta força e fúria fiquei cheio de t***o.  Contou me fazendo rir. - Mexeram nas minhas coisas e me roubaram um relógio maravilhoso que eu havia ganhado de um cliente, um bulgari de ouro... Os clientes adoram me dar presentes. Disse ele. - Ela não faz ideia de que clientes você está falando minha vida. O Marcelo falou rindo. - Desde quando você é artista Letícia? Perguntou o Antony. - Meus pais são donos de um circo, eu cresci nele então sou artista mesmo antes de ser. Garanti sentindo um aperto no peito, saudades do picadeiro. - Não sei como as coisas são no circo, mas no meio artístico tem de tudo um pouco. Eu sou ator de teatro, estou sempre em busca de uma oportunidade no cinema, na publicidade, mas também sou dançarino de boate, me transforma em Tônia, sou admirada por vários homens. Disse ele me fazendo rir do seu jeito. - A Tônia é garota de programa de luxo, se quer saber. É de onde tiro o dinheiro pra pagar pelo aluguel dessa mansão maravilhosa. Linda, nosso doce mundo. Ele afirmou me deixando surpresa. - Não se assuste Letícia, somos excêntricos. Disse o Marcelo. - Você não sente ciúmes? Perguntei tentando ser discreta. - Quando conheci o Antony ele já tinha a Tônia. Estou acostumado, valorizo o trabalho e arte dele. Separo muito bem as coisas desde que os clientes não sejam ousados demais. Falou direcionando um olhar ao marido que riu. - Sempre tem um ou outro que se apaixona pela Tônia, ela é maravilhosa. Vai conhecer! - Letícia, está com pouca ou muita fome? Pratos italianos são bem servidos. Não perguntei se você come bacon, fiz um carbonara maravilhoso. Gosta? Só de ouvi-lo falar minha barriga roncou, estava há mais de um mês sem comer de verdade. - Gosto sim. Afirmei contida para não transparecer o tamanho da minha fome. - Três pratos bem servidos então. Aqui tem mais parmesão. Pode comer a vontade. Disse ele terminando de arrumar a mesa. - Minha vida, mas vinho, por favor. Ele pediu ao marido... Estava com água na boca só de sentir o cheiro da comida. - Espero que sejamos amigos e que você aprove o carbonara! Disse ele brindando. Provei o prato e fiquei tão feliz ao comer que esqueci até de elogiar. - Então você tem uma namorada no Brasil. Ele perguntou me pegando de surpresa. - Tenho sim. Respondi aproveitando a comida. - E como é o nome dela? Perguntou. - Isabel. - Faz muito tempo que namoram? Perguntou o Antony. - Um ano. - E como estão lidando com a distância? Ele perguntou curioso. - Apenas lidando, prefiro não pensar nisso. Falei fugindo do assunto. - Vai deixá-la triste Antony, e hoje vamos nos divertir um pouco. Temos trabalhado muito. Disse o Marcelo e eu concordei. - Gostou do carbonara? Ele perguntou vendo que eu terminada de comer. - É delicioso, muito mesmo, parabéns! Elogiei e ele riu. -Letícia, eu quero mostrar pra você o closet da Tônia, tem várias roupas novas que pode usar. Convidou-me o Antony e eu o acompanhei a um quarto usado apenas como closet, onde havia muitas peças femininas, desde calças a vestidos e roupas de couro. - Gosta de couro? Acho que vai arrasar algo assim. Disse ele me entregando uma jaqueta e calça que pareciam com as que eu costumava usar ao pilotar minha moto, sentia saudades da sensação de andar com ela pelas ruas e de preferência com a Isa na garupa. A Isa sempre gostava de me ver vestindo calça e jaqueta de couro. - Eu gosto. Confirmei. - Então prova, vai ficar maravilhosa. Pega uma blusa dessas com brilho, vai chamar atenção. Na segunda porta a direita no corredor é o quarto de hóspedes, você pode tomar um banho e se arrumar. Se quiser eu posso fazer uma maquiagem em você depois. Disse ele todo animado... Era estranho, mas tanto o Marcelo como o Antony me receberam como se me conhecessem há anos. - Está bem, vou me arrumar no quarto e aceito a maquiagem. Concordei sorrindo. Um pouco de companhia para variar me parecia bem melhor do que ficar no flat comendo m*l e vendo filmes legendado para passar o tempo enquanto ainda buscava superar a frustração de perder o meu lugar no show. Tanto o Marcelo quanto o Antony pareciam boas companhias e eu ainda não conhecia a vida noturna real de Las Vegas. Tomei um banho, me vesti e a roupa caiu super bem... - Vai ficar ainda mais linda! Disse o Antony quando me sentei para ele me maquiar e ele sabia bem o que fazia. O Marcelo vestiu um macacão rosa bem claro, e o Antony ficou bem à vontade. - Tenho uma dança essa noite vou me vestir no camarim. Vamos indo. Não posso atrasar. Disse ele. Saímos em direção aos grandes hotéis e cassinos, e paramos em uma imensa casa noturna que pelo que eu percebi tinha um publico bem diversificado... O Antony logo se despediu e foi para os bastidores e o Marcelo me pegou pela mão e levou até a área vip, onde assim que sentamos o garçom que usava apenas calça e gravata borboleta colocou em cima da mesa uma champagne no gelo e duas taças. - Uma vez por semana a Tônia se apresenta aqui. E esse é o meu dia favorito na semana. Ele disse parecendo realmente não se importar com o fato do marido se travestir e dançar na frente de desconhecidos... Olhando pelo ponto de vista da arte, não tinha mesmo nenhum problema, mas eu certamente ficaria com ciúmes de ver a Isa atraindo tanta atenção. Por um momento me ocorreu que eu nunca considerei que ela sentia ciúmes de mim quando dançava no picadeiro. Conseguia ver nos olhos dela a admiração e não um desconforto. - Vamos beber Letícia. Vai amar o show. Relaxa, aproveita que aqui está tudo pago. Disse ele rindo. Aproveitei a oportunidade para tentar relaxar. Desde que cheguei a Las Vegas não fiz nada além de ensaiar e repousar. Estava totalmente sozinha, sem família, sem amigos e sem a Isa. - Me fala sobre você. Ele pediu parecendo interessado. - O que quer saber? Perguntei para que ele fosse mais específico. - Como era sua vida antes de vir para Las Vegas, por exemplo. - Meu pai tem um circo que é da família a algumas gerações. Eu cresci nesse meio de espetáculos no picadeiro, e nos últimos anos fui à principal atração, sou mágica e ilusionista. - E como veio parar aqui? - Fiz um curso meses atrás aqui em Las Vegas, pra aprender novas técnicas de ilusionismo e na ocasião fui apresentada ao diretor de elenco. Ele estava fazendo a seleção de elenco e eu participei da seletiva sem pretensão, mas fui chamada pra um novo teste em São Paulo e lá mesmo o contrato para essa temporada. Contei relembrando em silêncio a reação da Isabel quando descobriu sobre Las Vegas. Ela ficou furiosa comigo e mesmo assim eu pensei que de alguma forma ela fosse concordar em viajar e ter mais essa experiência ao meu lado... O que infelizmente não aconteceu. - Você é talentosa sem dúvida. E muito forte, disciplinada, mas parece muito arrogante. Tenho que dizer por que simpatizei com você. Seu jeito me lembra o do Antony quando o conheci. - Porque me acha arrogante? Perguntei olhando pra ele. - Você parece ter muita certeza sobre si mesma, e isso não é de todo m*l. Mas para alguns soa como arrogância, tudo bem, nesse meio muitos artistas são assim, mas no começo da carreira não ajuda muito... Você tem que entender que mesmo com experiência de muito tempo no picadeiro, aqui o trabalho que fazia no circo, não importa. É inexperiente, desconhecida e tem que construir uma marca, um nome para ser lembrada. - Por isso me aconselhou a aceitar o apelido de mexicana? Perguntei olhando para ele que riu. - Exatamente por isso. Não se trata de quem você é e sim da artista que quer ser. Esse apelido veio da sua potência, drama, da sua força. Você chamou atenção, use essa imagem. O conselho me pareceu mais interessante dessa vez. Como artista era mesmo importante ter um personagem que atraísse atenção. E se esse era mesmo o caso, eu seria “A Mexicana”.
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