Pesadelo...cap 1
JÚLIA FERNÁNDEZ
— Não… por favor, não…
Acordo ofegante, suando, o coração disparado como se tivesse corrido uma maratona. Merda. De novo, o mesmo pesadelo. Já fazia meses que ele não aparecia… mas agora resolveu voltar com força total.
Olho para o relógio: 2h da manhã. Ótimo.
Me levanto da cama, vou até a cozinha pegar um copo d’água. Passo pelo quarto da Jade — vazio. Ainda não voltou. Onde será que essa doida se enfiou? Dou um sorrisinho de canto. Jade sendo Jade.
Nosso apê é pequeno, mas tem personalidade. Dois quartos, uma cozinha americana colada na sala e um banheiro só. Pequeno, aconchegante… e com um aluguel do tamanho do ego da Jade. Sorte que dividimos as contas, ou eu já estaria dormindo em alguma cafeteria — com sorte.
Bebo minha água e volto pro quarto. Tento me convencer de que dá pra dormir mais um pouco antes de encarar a realidade. Afinal, amanhã tem trabalho na cafeteria. Eu gosto… quer dizer, gosto do ambiente, dos clientes, do café fresco. Só não gosto da minha chefe. Dona Suzana, a personificação da bruxa má com um avental florido.
O despertador toca. Olho o horário e praguejo alto:
— p**a que pariu! Quase sete?!
Levanto da cama num pulo (quase caio de novo), corro pro banheiro, faço tudo no modo turbo: escovar os dentes, banho rápido, desodorante, r**o de cavalo, brilho labial e uma calça jeans preta com uma blusa azul. Olho no espelho e penso: vai com Deus, garota. Você tá viva e vestida. Já é uma vitória.
Saio correndo do quarto e, claro, esbarro no maldito sofá.
— Aí, c*****o! — xingo, me agarrando no encosto. — Só me faltava essa, ir manca trabalhar.
Pego a bolsa e desço voada até o ponto de ônibus. Com sorte, ainda dá tempo de pegar. E, milagre, deu. Entro no ônibus ofegante, como quem venceu na vida. Chego na cafeteria e lá está ele, meu raio de sol matinal: Josh.
— Bom dia, linda. — diz ele com aquele sorriso de sempre.
— Bom dia, Josh. — respondo, tentando sorrir, mas ainda xingando o sofá por dentro.
Visto meu avental e começo meus afazeres. Estou tão focada em ajeitar as mesas e organizar os pedidos que nem percebo alguém me chamando.
— Ju… Ju… Júliaaaa! — ouço o Josh gritar do balcão — A bruxa tá te chamando!
— Oi? Quem?
— Dona Suzana! Boa sorte, guerreira.
Arregalo os olhos. Ai, meu Deus. O que será que eu fiz? Caminho até a sala dela sentindo as axilas suando frio. Bato na porta, e ouço a voz firme:
— ENTRE.
— Bom dia, dona Suzana.
— Bom dia.
— A senhora queria falar comigo?
— Sim. Sente-se, por favor.
Me sento com a postura de quem vai receber uma sentença de prisão perpétua. Começo a mexer nos dedos, meu sinal clássico de nervoso. Ela me encara como se fosse ler minha alma.
— Júlia, quero falar com você sobre algumas mudanças que estou implementando aqui na cafeteria.
— Sim, claro.
— Com essa pandemia e todas as complicações econômicas, precisamos cortar custos… e infelizmente, isso inclui funcionários.
Congelo. Um zumbido se instala no meu ouvido. Não… não, não…
— Dona Suzana, não estou entendendo… quer dizer, eu trabalho bem, chego no horário, me dou bem com os clientes…
— Júlia — interrompe ela, séria. — Não é uma questão de desempenho. Você é ótima. Mas entre todos, é a que está há menos tempo. E precisamos fazer escolhas difíceis. Você está sendo desligada.
Pá. Direto. Frio. Como se tivesse acabado de pedir um café sem açúcar.
— Eu… eu estou demitida?
— Sim. Mas vamos pagar todos os seus direitos. Não precisa mais trabalhar hoje. Fique à vontade para ir assim que resolvermos os papéis.
Levanto em silêncio. Sem conseguir dizer nada. Saio da sala como se tivesse deixado minha alma presa na cadeira. Meus olhos enchem d’água.
E agora?
Como vou pagar o aluguel? Como vou ajudar a Jade?
— Júlia?! O que houve? — pergunta Josh, preocupado.
É só aí que percebo que estou chorando. Sento em uma cadeira perto do balcão e escondo o rosto com as mãos.
— Fui… fui demitida.
Josh se agacha na minha frente e me abraça forte.
— Calma, Ju… Vai dar tudo certo, tá? Você é forte. A gente vai dar um jeito.
— Ela disse que é por causa da pandemia… corte de custos…
— Bruxa mesmo. Bruxa gelada.
Dou um meio sorriso, sem graça. Mas por dentro, tudo parece escuro. Não tenho família por perto. Não tenho reservas. Não tenho um plano B. E o plano A acabou de me chutar pra fora pela porta da frente.
E agora…?
…
ALLONSO ALBUQUERQUE
Acordei com a cabeça latejando e a boca seca como o deserto. Virei pro lado e dei de cara com duas loiras nuas, largadas na minha cama como se fossem parte da mobília. Merda... mais uma noite sem lembrança e com ressaca de brinde.
Levantei sem fazer barulho, fui direto pro banheiro. Abri o chuveiro no frio e deixei a água gelada tentar lavar o álcool e os pecados da noite passada. Pior que nem lembrava o nome das duas — uma tinha uma tatuagem ridícula de borboleta na b***a, e a outra ronca como um caminhão. Mas nome? Nada. Memória? Menos ainda.
Saí do banho, elas ainda estavam dormindo feito anjinhas do inferno. Peguei minha calça jeans, uma camiseta preta, chutei minhas botas no pé e desci pra cozinha.
Lá estava ela. A única mulher que merece meu respeito nesse mundo.
— Bom dia, Bentinha. — murmurei, me abaixando pra beijar a testa dela.
— Bom dia, meu filho. — respondeu com aquele sorriso de sempre, o único que ainda consegue me acalmar.
— Tem duas moças lá em cima. Quando acordarem, manda embora. Se perguntarem por mim, diz que eu sumi no mundo.
— Mas meu filho…
— Mas nada, Bentinha. São só duas putas. Agradece se não deixei dinheiro na cômoda.
Ela balançou a cabeça, indignada como sempre.
— Allonso, quando é que você vai tomar jeito, hein?
— Nunca, Bentinha. Não nasceu mulher nesse mundo que me prenda. — disse enquanto pegava a chave da BMW.
— Tchau, filho! — gritou ela atrás de mim.
Bentinha já tá velha. Tô enrolando pra arrumar uma ajudante fixa, mas hoje resolvo isso. Vou publicar um anúncio. Preciso de alguém com tempo, disposição… e estômago pra aguentar minha rotina.
Entro na BMW, ligo o motor e acelero pelas ruas como se o próprio capeta estivesse me perseguindo. Em poucos minutos, estaciono em frente à delegacia. Cumprimento os que cruzam meu caminho com um aceno rápido e vou direto pra minha sala.
Na mesa, uma pilha de casos encalhados. Gente poderosa demais pra ser presa. Filhos da p**a metidos em tráfico, corrupção, lavagem… e agora, tráfico humano. Esse é o que mais me tira o sono.
Começo a revisar os relatórios quando, sem bater, o i****a do meu primo Davi invade minha sala como se fosse dono do lugar.
— Fala, viado! Como foi a noite com aquelas duas delícias?
— Aprende a bater antes de entrar, seu p*u no cu.
Ele finge se ofender, põe a mão no peito e se joga no meu sofá como se estivesse num reality show.
— Relaxa, irmão. Tô só te zoando. Tô curioso! As loiras eram gostosas?
— Eram, eu acho. Só sei que acordei com a cabeça explodindo e sem lembrar o nome de nenhuma. Clássico.
Ele ri como um i****a. A vontade que eu tenho é de jogar a caneca de café na cabeça dele.
— Mas mudando de assunto, preciso de um favor.
— Manda, desgraça.
— Publica um anúncio pra mim nos jornais e redes sociais. Preciso de uma empregada doméstica. Tempo integral.
— E a Bentinha?
— Ela já tá cansada. Não aguenta mais dar conta sozinha. Precisa de ajuda.
— Justo. E mais alguma coisa ou só invadiu minha sala pra falar da sua nostalgia com vassoura e balde?
— Não, tem mais. É sobre o caso do tráfico de garotas. O Tomás conseguiu uma pista de quem tá aliciando as meninas.
Minha expressão muda na hora.
— E por que caralhos você não começou por aí, seu babaca?
— Porque eu queria saber das loiras, ué. Prioridades! — ele diz rindo, mas logo fica sério.
O caso do tráfico de pessoas tá me consumindo. Não é só pela gravidade. É pessoal. Quando você entra nesse mundo, vê a podridão de perto. Mulheres sendo vendidas como se fossem mercadoria. Crianças desaparecendo. E o pior: os nomes por trás disso são grandes demais, poderosos demais. A cada passo que a gente dá, alguém com dinheiro tenta abafar.
Mas eu não vou parar. Juro por tudo que sou que vou colocar esses desgraçados atrás das grades… nem que tenha que quebrar algumas regras no caminho.
Depois que o Davi saiu, me tranquei na minha sala e mergulhei nos relatórios, fotos, interrogatórios e rastreamentos. Só dei por mim quando o relógio marcou meia-noite.
Ainda tava ali. Sozinho. Rodeado de papel, café gelado e a certeza de que, amanhã, o inferno vai recomeçar.
Pois o tráfico de pessoas é uma das formas ilegais mais lucrativas no mercado mundial, estimam que o tráfico humano movimente por ano 32 bilhões de dólares. Cerca de 2,5 milhões de pessoas são vendidas a cada ano e destas, 80% são mulheres e vítimas do tráfico s****l…
Porra, esse caso está me consumindo, faço de tudo para prender esses desgraçados, mas como a maioria é peixe grande e prendê-los é difícil.