Capítulo 2 – Cicatrizes de Rua
Meu nome é Nicholas Santiago, mas ninguém me chama assim. Nas ruas, eu era só Nico. Um nome curto, fácil de lembrar, fácil de esquecer. Nasci em Pacaraima, no estado de Roraima, quase na divisa com a Venezuela. Se você procurar no mapa, vai ver um pontinho cercado por mato e abandono. Foi ali que aprendi que o mundo não tem piedade dos fracos.
Minha mãe se chamava Débora Santiago. Linda, apesar dos olhos sempre cansados e do cheiro constante de álcool barato na respiração. Quando eu tinha uns sete anos, ela conheceu Tonhão, o tipo de homem que batia primeiro e perguntava depois. Foi ele que me ensinou a fugir — das surras, dos gritos e da vergonha de voltar pra casa com a roupa rasgada.
— Moleque inútil! Vai aprender a ser homem ou quer que eu te ensine na porrada? — ele gritava, com o cinto na mão.
Minha mãe assistia de longe, parada na cozinha, olhos vazios. Eu nunca a culpei. Ela já não vivia ali. Só respirava.
Aos nove anos, aprendi a dormir de olhos abertos. Aos dez, já sabia os atalhos da cidade pra fugir de Tonhão. Aos onze, minha mãe morreu. Um misto de overdose e lesões internas depois de uma briga violenta. O hospital tentou reanimá-la, mas ela já tinha partido muito antes daquele dia.
Tonhão foi embora. Ninguém sentiu falta.
Eu fui jogado nas ruas como se fosse lixo. E foi lá que aprendi a sobreviver de verdade. Dormia embaixo de caminhões, em caixas de papelão, nos bancos da rodoviária de Pacaraima. Catava restos de comida, fazia malabares no sinal, vendia bala. Às vezes, roubava. Não por maldade. Por fome.
Foi ali, entre os becos e os olhares desconfiados, que conheci Maike, um garoto dois anos mais velho, já envolvido até o pescoço com o tráfico.
— Quer dinheiro fácil, Nico? — ele perguntou, me oferecendo um pacote pequeno embrulhado em fita isolante.
— Quanto?
— Cinquenta reais por entrega. É só atravessar a fronteira, deixar com o cara e voltar.
Eu aceitei. Naquele dia, comi carne pela primeira vez em meses. E comecei a perder partes de mim mesmo sem nem perceber.
As entregas começaram pequenas: um saquinho aqui, outro ali. Sempre com medo, sempre olhando por cima do ombro. Mas o dinheiro falava mais alto. Era a primeira vez que eu podia comprar minhas próprias roupas, meus próprios chinelos. Era como ter algum controle. Alguma dignidade.
Mas o problema de brincar com cobra é que uma hora ela morde.
Foi numa noite quente, úmida, que tudo desmoronou. Eu carregava um pacote mais pesado que o normal, escondido numa mochila velha de escola. A fronteira com a Venezuela já estava ficando instável, cheia de soldados e fiscalização. Eu devia ter dito não.
Mas eu disse sim.
Fui parado por dois policiais armados até os dentes. Tentaram me intimidar, mas eu já não tinha medo de homem com farda. Só que, dessa vez, eles tinham razão pra me prender.
— Abre a mochila, garoto.
— É só roupa — respondi, fingindo calma.
Mas eles já sabiam. Devem ter recebido a denúncia, ou talvez só era meu dia de azar.
Me levaram direto pra uma cela pequena, com cheiro de urina e mofo. Era a primeira vez que eu entrava numa cadeia. Mas não seria a última.
Fiquei lá por seis meses. Sem advogado, sem visita, sem notícia. Um menor de idade largado num sistema que trata todos como criminosos condenados. Ali, aprendi que o inferno tem grades.
Conheci caras que nunca sairiam dali. Outros que só esperavam o momento certo pra fugir. E outros como eu: esquecidos, invisíveis.
Foi lá que conheci Seu Dário, um velho de barba branca que vivia lendo a mesma Bíblia velha todos os dias.
— Por que você lê isso aí? — perguntei numa noite, depois de um dia inteiro de silêncio.
— Porque é o único livro que me lembra que ainda sou humano.
— Acha que Deus se importa com gente como a gente?
Ele sorriu, mostrando os dentes falhados.
— Não é Ele que se afasta da gente. É a gente que se perde de tanto correr do próprio passado.
Nunca esqueci essa frase.
Quando finalmente saí, estava mais magro, mais duro e com um olhar que não reconhecia mais no espelho. Marquinho sumiu. O tráfico não queria saber de quem “entregava o jogo”. E a polícia fez questão de me marcar.
Voltei pras ruas, mas com um gosto amargo de derrota. Aos dezessete anos, eu era um ex-presidiário, sem família, sem futuro.
Foi então que conheci Sandro, um treinador de boxe que andava distribuindo panfletos numa feira comunitária.
— Você tem porte, garoto. Já pensou em lutar?
— Lutar? Eu já faço isso desde criança.
Ele riu, mas não com sarcasmo. Riu como quem viu uma centelha acesa.
— Vem comigo. Tem um centro esportivo ali perto. É simples, mas tem luva, saco e vontade. Isso basta.
Eu fui. Meio desconfiado, meio curioso. Coloquei as luvas pela primeira vez com as mãos tremendo. O cheiro de suor e couro queimado invadiu meu nariz como algo sagrado.
No ringue, descobri que a raiva podia ser domada. Que o corpo também sabia falar — e gritar — com socos e esquivas. Sandro viu em mim o que ninguém nunca viu: potencial.
— Você luta como se estivesse fugindo de algo, Nico.
— Eu tô. De mim mesmo.
Ele treinou comigo por dois anos. Me ensinou disciplina, força, foco. Me mostrou que eu podia ser mais que um rótulo de ex-presidiário. Me inscreveu nas primeiras competições, arranjou patrocínio local. E pela primeira vez, vi meu nome numa faixa:
Nicholas “Nico” Santiago – A nova promessa dos rings.
Cada luta era uma forma de curar uma cicatriz. Cada vitória, um pedaço de dignidade recuperado. Comecei a viajar. Primeiro em Roraima, depois para Manaus, Belém, São Paulo...
E eu venci. Venci como quem tem sangue nos olhos. Como quem não quer só lutar por medalha — mas por vida.
Mas nunca esqueci da cela. Das noites com fome. Do cinto do Tonhão. Do corpo da minha mãe no chão da cozinha. Tudo isso ainda vivia dentro de mim. Eu só tinha colocado luvas por cima.
Hoje, dizem que sou famoso. Que tenho dinheiro, carros, contratos. Mas ainda durmo com a luz acesa. Ainda acordo suado, achando que tô na cadeia.
As pessoas veem os músculos. A fama. As entrevistas.
Mas ninguém vê o menino de onze anos que chorava escondido num beco com medo de morrer de frio.
Ninguém vê o Nico.
E é por isso que eu nunca subestimo ninguém. Porque sei o que é lutar com os punhos... e com a alma.