Caracas, Venezuela – 2017
“Você promete, Rayca? Promete que vai cuidar dela como se fosse sua?”
“Com toda a minha alma, Paloma. Eu prometo.”
Ainda lembro do cheiro da tinta no hospital, da luz fria piscando no corredor e do som do coração dela diminuindo aos poucos no monitor. Mas antes disso, existiu vida. E é dela que preciso falar antes que tudo vire pó na minha memória.
Meu nome é Rayca Wilmer, tenho trinta e cinco anos, mas naquele ano de 2017, eu era só uma mulher de vinte e sete tentando se equilibrar entre as perdas e as pequenas vitórias.
Morava em Caracas com meus pais e dividia o mundo com uma amiga que me fazia rir até nas piores tempestades: Paloma Ruiz. A gente se conheceu na faculdade de enfermagem e desde o primeiro semestre nos tornamos inseparáveis.
— Rayquinha, ou você me empresta esse fichário ou eu juro que vou dizer pro Richie que você ronca igual uma furadeira — ameaçava ela, com o lápis preso entre os dentes e os olhos cor de mel arregalados.
— Vai em frente. Ele também ronca, a gente combina — eu respondia, empurrando o fichário pra ela com um sorriso de canto.
Richie era meu namorado na época. Alto, cabelos escuros, riso fácil e ambição demais pra um coração só. Meus pais torciam o nariz pra ele desde o começo, e eu? Eu estava apaixonada, feita boba, achando que amor resolvia tudo.
— Ele não é homem pra você, Rayca — meu pai dizia com aquela voz grave, cortando o silêncio da sala sempre que Richie vinha me buscar.
— Mas ele me ama, papá. E eu também o amo — respondia com firmeza, mesmo com uma pontinha de dúvida latejando no peito.
A verdade é que Richie era um vendaval. Vinha, bagunçava tudo, e às vezes sumia por dias. Mas bastava ele aparecer com um “mi amor” e um buquê de flores roubadas de algum jardim, que eu esquecia tudo.
Minha mãe, uma mulher forte, morena, com os cabelos sempre presos em um coque baixo, suspirava e dizia:
— O amor, filha, é lindo. Mas ele tem que ser casa, não furacão.
Paloma era minha base. Enquanto Richie me confundia, ela me ancorava. E foi com ela que enfrentei os quatro anos de faculdade, as provas impossíveis, os estágios puxados e os plantões noturnos que deixavam a gente com olheiras até o queixo.
Nos formamos juntas. No último dia de aula, sentamos no banco do hospital universitário e ela me deu um abraço apertado.
— A gente conseguiu, enfermeira Wilmer. Agora o mundo que se prepare.
— Enfermeira Ruiz, você vai ser a melhor que esse país já viu.
Mas a vida não perdoa planos feitos com pressa. Alguns meses depois da formatura, Paloma começou a sentir dores estranhas. Cansaço extremo. Hematomas que apareciam do nada. O diagnóstico veio como uma lâmina fria na pele: uma doença autoimune rara, degenerativa.
Ela chorou no meu colo naquela noite.
— Eu vou morrer, Rayca. Não agora, talvez, mas... em breve.
— Não diz isso. A medicina avança todos os dias. A gente vai procurar os melhores, eu prometo.
— Eu não tenho medo de morrer. Só tenho medo de não viver o suficiente pra deixar algo meu nesse mundo.
Foi quando conheceu Gustavo, um bancário que parecia mais perdido que ela, mas que a fez sorrir de novo. Em menos de um ano, estavam morando juntos. E então, a notícia:
— Estou grávida, Rayca.
Eu a abracei com força. Foi um dos momentos mais felizes da nossa amizade.
Mas a gravidez foi difícil. A doença acelerou, os médicos não sabiam como lidar com a combinação dos sintomas e os riscos aumentavam a cada semana.
— Se algo acontecer comigo... — ela começou, certa tarde, já com o barrigão de oito meses.
— Não, Paloma. Não começa com isso.
— Me escuta, por favor. Se eu não estiver aqui, você cuida da minha filha?
A pergunta me cortou como uma lâmina invisível. Mas minha resposta foi imediata:
— Com toda a minha alma. Eu prometo.
O parto foi antecipado. Complicações graves. Eu estava no hospital, segurando sua mão, tentando ser forte enquanto ela sorria fraco.
— O nome dela vai ser Nina — sussurrou.
— É lindo. Igual a você.
— Cuida dela, Rayquinha. Não deixa ninguém apagar quem eu fui...
A última frase de Paloma se perdeu no som do monitor cardíaco que ficou plano segundos depois. E eu, ali, feita em pedaços, segurando uma recém-nascida no colo e tentando entender como a vida podia ser tão c***l e tão milagrosa ao mesmo tempo.
Richie tentou me convencer a deixar Nina com o pai biológico, mas Gustavo desapareceu. Sumiu como fumaça depois do enterro.
— Rayca, você não pode carregar esse peso sozinha. Não é tua filha.
— Mas é minha promessa.
Com a ajuda dos meus pais — que, apesar do choque inicial, acolheram Nina com amor —, criei aquela menininha como se tivesse saído do meu próprio ventre. Aos olhos de todos, ela era minha. E, no fundo, também era.
Richie não ficou. O furacão dele perdeu força e ele voou para longe. Nem lembro a última vez que o vi.
— Não dá pra competir com um fantasma, Rayca. Você vive no passado. Eu não sou o bastante.
Talvez ele tivesse razão. Mas eu tinha Nina. E isso bastava.
Nos anos seguintes, me dediquei totalmente ao trabalho de enfermeira. Nos plantões, virei especialista em dar sorrisos mesmo quando a alma estava em ruínas. Nina cresceu saudável, inteligente e com os olhos da mãe. Cada vez que ela sorria, eu sentia Paloma viva dentro dela.
Naquele ano de 2017, comecei a perceber que meu país já não era seguro. A crise piorava, os hospitais estavam sem insumos, e os protestos nas ruas viravam incêndios. Literalmente.
Foi numa dessas noites de caos que minha vida virou cinzas — junto com minha casa. Fugi com Nina no colo, carregando uma mochila nas costas, o diploma na mão e a promessa no coração. Meus pais, teimosos, se recusaram a ir comigo e decidiram reconstruir a vida ali mesmo.
E então, com o coração em frangalhos, tomei uma decisão.
— A gente vai pro Brasil, minha pequena. Começar do zero. Por mim. Por você. E por Paloma.
A promessa que fiz ainda ecoava dentro de mim. E enquanto o mundo ruía lá fora, jurei a mim mesma: não importa onde, não importa como, eu vou te dar uma vida digna, Nina. Porque eu te amo. Porque sua mãe me amava. E porque promessas feitas no leito de morte não se quebram.