De macacão e alma (Morro)

Florela: Oi, eu sou a Florela sei lá de onde meu velho tirou esse nome, mas sou a única por aqui, e gosto disso — de ser diferentona. Na infância, enquanto todo mundo ganhava brinquedo, eu ganhava ferramenta. Minha primeira chave de f***a ainda tá comigo é minha fiel escudeira. Não largo por nada. Meu pai sempre me escondeu entre graxa e motor quem me conhece de verdade é ele, o Gomero quer dizer, Antônio mas ninguém chama ele assim todo mundo só conhece como o Gomero eu mesma falo pra geral: sou filha do Gomero, kkk. As meninas da escola são todas chiques, com cílio postiço e unha de gel. Eu? Calo nas mãos e unha curta não é por sujeira, nem por descuido é que não tem esmalte que aguente, e também nunca tive esse costume sempre vivi cercada de homem, e eles não se pintam, né? Por falar nisso, nem gosto de lembrar do trauma da minha primeira vez "sendo moça", bem no meio de uma oficina cheia de macho velho... e nenhum se animava a comprar um pacote de toalhinha pra mim. Chorei de vergonha quem fez o papel de irmão mais velho foi o Breninho esse tá em todas, por sorte minha. Sou respeitada pelos parceiros do meu pai. O Breninho cresceu comigo a gente aprendeu tudo junto e tá na luta até hoje. Ele é tipo meu irmão mesmo é aquele que, se eu minto, ele bate no peito e segura até o fim e eu faria o mesmo por ele. O pai dele é amigo do meu há anos só vive socado aqui, bebendo pinga. Já aposentado, não tem o que fazer e vem encher o saco mas eu dou risada com as fofocas ele tem todas pior que velha fofoqueira. A mãe do Breninho também sumiu quase no mesmo tempo que a minha as duas não valiam o prato que comiam e eles, com nós piquebros ficaram amigos e colegas de caminhada. Na favela tem o corre, claro mas todo mundo me respeita sabem que, se precisar, eu dou chave de boca na cara sem nem pensar sou cria daqui sei dos macetes, dos caminhos, das quebradas... Saio dos pensamentos, quase caindo que vergonha meu Deus... Gritei lá do portão, que já tava escancarado: — Ô Gomero! Bora, véio! O café vai esfriar e tu ainda tem que acabar aquele motor do Corsa vermelho! Nada. — Ô, pai! — agora mais doce, mais perto da janela do quarto dele. — Fiz teu café com leite, daquele forte, e tem pão com manteiga estalando, vai dizer que não quer? Ouvi o colchão ranger ele sempre demora uns dois minutos pra levantar, o joelho estala, ele xinga o mundo e só então aparece. Enquanto isso, fui arrumando a mesa. Café com leite pra ele, puro pra mim pão estalando, um naco de queijo, e a chave de f***a já no bolso do macacão. Ele veio arrastando chinelo, camiseta furada e aquele cabelo desgrenhado que parece que brigou com o travesseiro. — Tá cedo, fia. — Cedo nada, pai. Os caras vão vir buscar aquele carro hoje. Se a gente não termina, é prejuízo. E tu sabe se o novo chefe brotar hoje e pegar o motor desmontado, já viu... Ele coçou o queixo, tomou um gole do café e me olhou com aquela cara de quem não queria dizer, mas tava preocupado. — Esse novo chefe aí... tu acha que é gente fina? — Não sei, né? Mas se pisar fora da linha, vai descobrir que mulher de macacão também tem punho tô pronta. A oficina é nossa. Ele riu de canto, meio orgulhoso, meio desconfiado. — Tu é meu orgulho, fia. Bora trabalhar. E fomos eu, com meu coque bagunçado e o rosto ainda com cheiro de sabão, ele com a cara amassada e a alma cansada, mas firme. Porque ali, no chão de graxa da nossa oficina, é onde a gente faz milagre...