Capítulo 2 – Olhos de Gelo

1284 Words
Vincenzo A penumbra dos corredores da mansão Vitale era pontuada pelo tremular das velas, cujas chamas lançavam sombras tremeluzentes nas tapeçarias de veludo carmesim. Atrás de mim, sentia o passo hesitante de Elena, o vestido n***o roçando as paredes de pedra fria. A cada dez ou quinze metros, eu parava e aguardava que ela alcançasse meu ritmo — não por gentileza, mas para medir sua obediência. Observei o contorno esguio de seus ombros, a cabeça levemente inclinada, os cachos castanhos dançando ao compasso de seus passos incertos. Era impressionante como o medo podia tornar bela uma mulher fria como ela. Para o mundo exterior, eu era apenas o marido ausente, o herdeiro distante que chegava para formalizar um enlace conveniado. Mas, em meu íntimo, reconhecia que essa noiva era muito mais que mercadoria política: era a chave para o respeito inabalável de minhas famílias de sangue. — Siga-me — ordenei, sem olhar para trás. — Não atrapalhe meu caminho. Seu suspiro abafado se perdeu no eco dos arcos. Em silêncio, desdobrou na mente o ensaio de suas defesas: lábios mantidos em ruga discreta, mãos ligeiramente encontradas à frente. Um gesto protocolar que, aos meus olhos, soava como rendição disfarçada em cortesia. Enquanto caminhávamos, recordei os sacrifícios que meu pai exigira para assegurar nossa supremacia. Anos atrás, o tio Marco — seu corpo pendurado num ringue improvisado — fora submetido à prova de lealdade: uma adaga na garganta, uma gota de sangue pingando no contrato que sancionava o novo território. Eu tinha doze anos quando testemunhei o corte superficial, mas o excesso de crueldade gravara-se em minha alma. Hoje, ao olhar para Elena, imaginei repetir a cena em menor escala, um aviso de que ninguém escapava ao meu controle. — Vincenzo — ela murmurou, interrompendo meus devaneios, — por que não me ajuda a manter o equilíbrio? Pareceu surpresa ao ouvir minha voz grave e sem paciência. Voltei os olhos para ela, avaliando cada linha de seu rosto: as sobrancelhas delicadas arqueadas, o lábio inferior entre os dentes. Havia desafio naquele gesto infantil, e um lampejo de curiosidade: queria saber até onde eu iria em minha vigilância. — Somos parceiros neste acordo — respondi, pausando sob uma lanterna de ferro forjado. — Ainda que seja apenas uma fachada, espero a mais completa colaboração. Elena ergueu o queixo, mas não ousou retrucar. Ensinara-me, nas negociações silenciosas da infância, que a melhor maneira de dominar um adversário era permitir-lhe um mínimo de liberdade antes de fechar a armadilha. Por isso, conduzi-a até a porta dupla de mogno esculpido, cujo martelo refletia um brasão de leão em repouso — o símbolo de nossa casa. Abri-a com um solavanco que ecoou pelos salões, e a leve brisa noturna trouxe consigo o odor úmido dos jardins. Nós nos deparamos com o saguão principal, onde servos em filas discretas observavam nosso retorno: olhos baixos, passos curtos, rigidez no ombro. A cena me fez recordar a devoção que meu avô exigira, quando, na cerimônia de meu batismo, cada criado inclinou-se até encostar a testa no chão de mármore. A lealdade, para os Vitale, não era virtude — era obrigação. — Aqui permanecerá até o amanhecer — anunciei, apontando para um sofá de veludo escarlate. — Não ouse sair sem minha autorização. Elena esboçou um movimento de protesto, mas permitiu-se apenas um breve tremor de mágoa. Ela entendeu: qualquer descuido significaria castigo imediato. Sorri, por dentro cumulando prazer frio, ao pensar que já controlava seus impulsos. — Por que me mantém sob vigilância? — perguntou ela, tomando assento com o porte dócil que eu simulava encorajar. Criei uma leve inclinação de cabeça, como se ponderasse. — Porque não confio em promessas escritas. Confio apenas naquilo que vejo — e, até agora, vi seus olhos trêmulos. Os “olhos de gelo” — apelido que minha família me dera na infância — representavam minha capacidade de ver através de qualquer artifício. Encarnei esse traço em noites insones, quando desmontava planos rivais e descobria traições ocultas por trás de sorrisos venenosamente cordiais. Agora, exercia o mesmo olhar perfurante sobre minha esposa de conveniência. — E o que espera de mim? — ela sussurrou, aproximando-se, as mãos levemente abertas. O perfume de rosas negras envolvia-a num véu quase hipnótico. — Discrição, obediência e, quando convocada, presença — articulei, virando-lhe de costas e erguendo o palmo em gesto de interrupção. — Qualquer deslize e sua “presença” se tornará… desagradável. Elena contorceu os lábios, como se estudasse minhas palavras antes de traduzi-las em angústia. Muito bem: meus recados serviam ao propósito de manter suas defesas baixas. Voltei-me e caminhei de volta ao corredor, trilhando o caminho dos salões, cada vela buscada por meu olhar para garantir que não houvesse intrusos. A sensação de tê-la sob minhas asas gélidas alimentava minha arrogância. A lembrança do pacto de sangue, firmado por meu pai, tornara-se promessa de minha própria crueldade. No entanto, havia um fragmento obscuro em meus pensamentos, que não consegui encerrar: a dúvida se Elena sobreviveria ao teste do nosso acordo. Sua força interior — aquela chama de desafio que vi em seus olhos pela primeira vez — poderia se transformar em arma contra mim. Se ela decidisse lutar, eu teria de esmagá-la com a mesma ferocidade que empregaria contra qualquer rival. Chegamos à ante-sala do meu escritório particular — um recinto forrado de estantes com volumes em couro, mapas riscados e fotografias antigas de territórios conquistados. Voltei-me para ela, os ombros largos contrastando com sua delicadeza. — Amanhã cedo, negociaremos detalhes de nossas obrigações — disse, apoiando as mãos na porta. — Prepare-se para responder sem hesitar. Seus olhos encontraram os meus, e pude ver o fulgor da resistência. Quase sorri. A resistência era um desafio que inflamava minha sede de controle. — Sim, senhor Vitale — respondeu, voz firme, e um ligeiro arrepio percorreu meu corpo. Fechei a porta atrás de mim e ouvi o clique do trinco. O silêncio retornou, mas meus ouvidos captaram o murmúrio do vento entre as frestas do edifício. Um som suave, porém carregado de promessa: a promessa de um confronto inevitável — de poder e paixão, de crueldade e de desejo. Enquanto a noite avançava, abri meu escritório e me sentei à escrivaninha. Sobre a mesa, desdobrei o contrato original, olhando a tinta escarlate do pacto de sangue. A cada traço, percebia mais claramente o preço que minha família cobrara — e o que eu cobraria de Elena. Fechei os olhos, recordando o olhar dela no salão de mármore: medo e desafio entrelaçados. Abri o estojo de prata que continha um anel simples, símbolo de nossa “união”. Segurei-o entre os dedos e pesei seu valor: era mais precioso que qualquer fortuna, pois simbolizava o poder que eu detinha sobre outra vida. Senti um fascínio sombrio crescer em mim — a convicção de que, se quiséssemos, nos tornaríamos cúmplices imbatíveis. Mas, por enquanto, aquele laço era frio e cortante como lâmina. Coloquei o anel de volta no estojo e, antes de deixar o escritório, apaguei a lâmpada de óleo que iluminava os papéis. As sombras se espraiaram pelo recinto, fazendo com que as estantes parecessem figuras adormecidas, prontas para despertar num sussurro de conspiração. Saí sem fazer barulho. O corredor estava vazio, mas o ar pulsava com a tensão da noite. Eu, Vincenzo Vitale, o homem de “olhos de gelo”, tinha a noiva sob minha guarda — e m*l podia esperar pelo amanhecer, quando nossos destinos se entrelaçariam de novo. Mas, antes de ceder àquela expectativa, sorri para mim mesmo no reflexo de uma superfície de bronze: aquela beleza vulnerável não saberia o que a esperava. E eu sabia que seria delicioso observá-la descobrir.
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