Depois que Theo saiu, o corredor voltou a ficar silencioso.
Eu sentei na cadeira antiga perto da parede, respirando devagar, tentando organizar tudo o que tinha ouvido.
Era muita coisa para um único dia.
Mas, pela primeira vez, eu tive a sensação de que não estava mais andando no escuro.
A porta abriu devagar.
Maria entrou.
— A diretora chamou ele de novo? — ela perguntou, já sabendo a resposta.
— Sim. Toda vez que ele tenta falar, alguém aparece.
— Não é coincidência, Livi. — Maria disse, séria. — Você sabe disso.
Assenti.
— Eu sei.
Ela se aproximou e sentou ao meu lado.
— E aí? Ele te contou alguma coisa nova?
— Sim.
Respirei fundo.
— Ele contou o que o irmão da Júlia fez… e por que ela acreditou nele.
Maria cruzou os braços.
— Então o irmão está tentando repetir tudo com você?
— Exato. Mas tem algo que não faz sentido.
Maria virou o rosto na minha direção.
— O que não faz sentido?
Eu peguei o celular e abri o print com o nome “J. Duarte”.
— Ele sempre se escondeu antes, e agora, do nada, deixou o nome aparecer numa denúncia oficial.
Maria franziu a testa.
— Então ele quer que vejam que é ele. Quer que o Theo perceba.
— Sim. Ele está puxando o Theo para o conflito.
E foi aí que algo dentro de mim acendeu.
Uma sensação.
Um detalhe.
Algo que eu não tinha percebido antes.
— Maria… A diretora disse que havia duas denúncias. Certo?
— Certo.
— Mas só uma estava com o nome do J. Duarte.
Maria piscou, começando a entender.
— A outra então… Não foi ele?
Meu coração acelerou.
— Não. Não foi ele.
Maria se endireitou na cadeira.
— Quem você acha que fez?
— Não sei. — respondi. — Mas se uma denúncia é dele… e a outra não. Então tem outra pessoa alimentando isso.
Maria ficou em silêncio, chocada.
— Parece muita coincidência ter duas denúncias sobre você e o Theo, feitas por duas pessoas diferentes.
— Não é coincidência. É planejamento.
Nesse exato momento, a porta abriu novamente.
Era o professor com quem eu tinha conversado antes.
Assim que me viu, ele fez um sinal sério.
— Lívia… posso falar com você um momento?
Levantei devagar.
Maria ficou na porta, observando.
O professor me guiou até o final do corredor, onde ninguém passava naquela hora.
Ele parecia agitado, mas não assustado — o olhar dele era de quem tinha acabado de descobrir algo importante.
— Acabei de sair de uma conversa com a diretora. — ele disse.
Meu peito apertou.
— E?
Ele segurou a prancheta contra o corpo.
— Encontramos um detalhe que nos chamou atenção. E a diretora pediu para eu falar com você antes de falar com o Theo.
Meu estômago virou.
— Comigo… primeiro?
— Sim. Porque a informação envolve você diretamente.
Minha respiração acelerou.
— O que é?
Ele inspirou fundo.
— A segunda denúncia… Não foi registrada hoje.
Meu coração deu um pulo.
— Como assim?
— Ela foi registrada ontem.vAntes de qualquer boato aparecer hoje cedo.
Eu senti as pernas ficarem fracas por um instante.
— Então… alguém já sabia que tudo isso ia começar?
— Sim. — o professor confirmou. — Alguém sabia antes de todo mundo.
Engoli seco.
— Mas… quem?
Ele hesitou por um segundo, como se tivesse medo do impacto.
— A denúncia foi registrada por um aluno atual. Alguém da sua turma.
O ar ficou mais pesado.
Meu peito apertou.
Maria, que escutava de longe, ficou completamente imóvel.
— Quem da turma? — perguntei, com a voz baixa.
O professor consultou a prancheta.
Virou a página.
E disse:
— O nome do aluno é…
A porta do outro corredor bateu forte.
Theo apareceu, ofegante, como se tivesse corrido.
— Lívia! — ele chamou.
O professor virou para ele, tenso.
Theo veio na nossa direção rápido.
— A diretora me disse agora. — ele falou, sem respirar direito. — A segunda denúncia… Não foi do irmão da Júlia.
Eu já sabia.
— Theo… — murmurei — ele acabou de me contar.
Theo respirou fundo.
— E você sabe quem foi?
O professor levantou a prancheta.
Pronto para dizer o nome.
Maria olhava de longe, segurando a respiração.
Eu senti meu coração bater no pescoço.
O professor finalmente falou:
— A segunda denúncia foi registrada por um aluno chamado… Gabriel Amaral.
Meu corpo gelou.
Theo ficou completamente imóvel.
E foi naquele instante — naquele segundo de silêncio absoluto — que tudo mudou.
Porque eu e Theo sabíamos exatamente quem era esse nome.
E sabíamos que ele não era desconhecido.
Era alguém que convivia com a gente.
Todos os dias.
Alguém que sempre esteve perto.
Observando.
Escutando.
Anotando.
E, principalmente…
Alguém que tinha motivo pra querer que eu e o Theo nunca nos aproximasse.
******
Gabriel Amaral.
O nome ficou parado no ar.
Pesado.
Direto.
Inesperado.
A sensação foi como levar um impacto silencioso no peito.
Maria levou a mão à boca, surpresa.
O professor observava nossas reações com atenção, mas sem interferir.
E Theo…
Theo ficou completamente imóvel — não piscou, não respirou fundo, não moveu os ombros.
Ele parecia ter entendido algo que ainda não tinha se formado totalmente em mim.
— Theo…? — murmurei.
Ele não respondeu de imediato.
Apenas passou a mão no rosto, como se tivesse levado um golpe interno.
Depois disse, com a voz baixa, mas firme:
— Eu sabia que ele estava estranho… mas não pensei que fosse isso.
Meu estômago apertou.
— Você conhece ele? — perguntei.
Theo olhou para mim como se estivesse revisando memórias que tentou esquecer.
— Mais do que eu gostaria. Ele estava na minha sala no ano passado.
Um arrepio frio percorreu minhas costas.
— No caso da Júlia?
Theo assentiu.
— Sim. Ele via tudo de perto, sabia do que estavam falando dela, sabia dos boatos, das mensagens, das acusações. E mesmo assim nunca disse nada. Nunca perguntou nada. Nunca se envolveu. Ele só... observava.
Maria cruzou os braços, alarmada.
— Quer dizer que ele estava lá quando tudo aconteceu?
Theo confirmou com um aceno lento.
— Ele viu a Júlia sofrer. Viu a escola inteira enlouquecer, viu o irmão dela interferindo.
— E viu eu tentar ajudar e ser destruído junto.
O professor ouviu tudo com seriedade crescente.
Eu senti o chão sumir um pouco.
— Theo… — falei, tentando entender — ele era seu amigo?
Theo riu de forma amarga.
Um riso cansado, sem humor.
— Não. Ele era o tipo de colega que nunca fala, mas sempre sabe.
Ele olhou para mim.
— Sabe o tipo? Quieto demais. Atento demais. Sempre no canto certo pra ouvir a conversa errada.
Eu senti o coração bater mais rápido.
— Mas por que ele faria isso comigo? — perguntei.
Theo respirou fundo.
Era o tipo de respiração que vem antes de uma frase difícil.
— Porque ele já tentou se aproximar de você antes.
Eu parei.
Maria também.
Até o professor arregalou levemente os olhos.
— Como assim? — perguntei, confusa.
Theo passou a mão pelos cabelos, inquieto.
— Ele te observa desde o começo do ano. Primeiro de longe, depois ele foi mandando indiretas, daí perguntando sobre você pros outros. Ele te viu com a Maria no pátio, te viu chegando sozinha no primeiro dia e tentando não chamar atenção.
Eu fiquei gelada.
— Mas eu… nunca falei com ele.
Theo assentiu, tenso.
— Você não. Mas ele te viu falar comigo.
A frase caiu como um choque silencioso.
Theo continuou:
— E na cabeça dele… Eu sou o mesmo cara que ele idealizou em sua mente no caso da Júlia.
As peças começaram a se encaixar sozinhas.
— Então ele acha que você vai machucar outra pessoa? — perguntei, incrédula.
— Ele acha que eu sou o problema de tudo. Que eu sou o “causador” de qualquer coisa que uma menina sinta ou viva perto de mim.
— Mas isso não tem lógica. — eu disse.
— Não tem. — Theo concordou. — Mas ele acredita. É isso que importa.
Maria balançou a cabeça.
— Então ele fez a denúncia achando que estava te “protegendo” de novo?
Theo olhou para ela, depois para mim.
— Sim. Só que dessa vez, ele não está protegendo alguém. Está protegendo a própria narrativa sobre quem eu sou.
Uma sensação forte de injustiça subiu dentro de mim.
Fui até Theo um passo.
— Ele não tem esse direito.
Theo me olhou como se aquela frase tivesse caído no lugar exato onde ele guardava a dor.
— Não tem. Mas ele teve nas mãos por um ano inteiro, sem os outros desconfiarem. E agora quer de volta.
O professor respirou fundo, interrompendo:
— Nós vamos investigar isso. Agora que sabemos do envolvimento dele, tudo muda. Mas, por favor, vocês dois precisam tomar cuidado. Ele não parece estar pensando de forma equilibrada.
Nos entreolhamos.
O professor saiu, deixando tempo para a informação assentar.
Maria se aproximou.
— Vocês acham que ele pode… tentar algo de novo?
Theo respondeu antes de mim:
— Ele já tentou. A denúncia, o boato e a montagem. Ele está construindo uma história em que eu sou o culpado. E a Lívia é a vítima que “não percebe” nada que ocorre ao seu redor.
Maria olhou para mim, alarmada.
— É exatamente o que ele fez com a Júlia.
Assenti.
O ar parecia mais pesado.
Não por medo, mas por clareza.
Eu senti meu coração bater mais forte.
Olhei para Theo e disse:
— A história está se repetindo… mas não do jeito que ele quer.
Theo sustentou meu olhar.
— Não mesmo. Porque agora você sabe de tudo. E porque agora… eu não vou deixar aquilo acontecer de novo.
O silêncio que veio depois não era vazio.
Era um silêncio que preparava o próximo passo.
E então, bem baixinho, Theo completou:
— E tem mais uma coisa que você precisa saber sobre o Gabriel. Algo que eu nunca contei pra ninguém.
Meu coração parou por um segundo.
Theo respirou fundo.
E disse a frase que fecharia o capítulo e abriria a próxima ferida:
— A Júlia confiava nele. E foi ele quem contou pra ela a maior mentira sobre mim.
A porta do corredor bateu.
O som ecoou.