Prólogo 01
PASSADO, oito anos antes
*Elisa*
Era estranho sempre correr para a mesma pessoa quando qualquer coisa acontecia?
Elisa vinha se perguntando sempre que queria correr para contar todas as novidades da sua vida para Jamaica, ou se consolar de qualquer coisa com ele, ou simplesmente esvaziar a mente quando achava que ia surtar...
Era sempre ele quem surgia na sua cabeça, às vezes ia encontrá-lo sem nem perceber o que estava fazendo, exatamente como naquela manhã. Devia estar em casa terminando as atividades do colégio, mas bastou conseguir algo que vinha desejando há muito tempo, para estar ali, mais uma vez correndo para ele.
Jamaica e ela eram amigos desde os sete anos de idade, quando ela e a mãe se mudaram para o morro. A conexão dos dois foi quase instantânea, bastou que se vissem, enquanto Lis deixava metade do conteúdo de uma das caixas de mudanças cair no meio da rua, para Jamaica rir dela, ela correr atrás dele para fazê-lo se arrepender de rir e... Bom, de alguma forma, dez minutos depois, já trabalhavam juntos ajudando sua mãe com os itens leves da mudança. Depois disso, nunca mais se desgrudaram.
Jamaica era dois anos mais velho, mas isso nunca impediu que dividissem tudo, desde os brinquedos na infância, aos lanches na escola e aos segredos que surgiam cada vez mais na adolescência. E provavelmente por ser tão acostumada a dividir tudo, que tinha aquele impulso de correr para ele sempre que algo acontecia, certo?
Ela esperava que sim, assim como esperava que fosse normal que, de uns tempos para cá, viesse se sentindo meio… apreensiva quando ele se aproximava demais. Ou que estivesse mais tendenciosa a reparar em como ele vinha se tornando um cara bonito agora que já tinha quase dezoito e começava a ganhar alguns músculos.
Mas era normal reparar, não é? Quer dizer, ela não era cega e tinha aquela história dos hormônios da adolescência. Não é como se gostasse dele, só tinha facilidade em admitir que os olhos dele tinham uma cor encantadora e que o sorriso era lindo, ainda mais quando ele…
Elisa se interrompeu. Aquele era um caminho bastante errado para se tomar a respeito de um amigo. E era isso o que Jamaica era, um amigo.
Um amigo.
Um amigo.
Um amigo.
Talvez se repetisse algumas vezes por dia começasse a enxergá-lo como enxergava antes. Talvez.
De qualquer forma, estava animada em contar como finalmente tinha conseguido autorização da mãe para ir em um dos bailes do morro. A coisa toda era importante para os dois. Para Jamaica porque era o primeiro baile que ele participaria como um vapor. Para Elisa porque, bem, ela odiava a ideia de ele estar se envolvendo com o movimento e se sentia mais segura o acompanhando no tal baile, como se pudesse impedi-lo de fazer alguma besteira.
Jamaica morava sozinho há quase um ano. O pai havia morrido com problemas no pulmão, fumava demais e não aguentou. A mãe havia morrido quando ele era pequeno, em um acidente de carro. E com os pais e os avós mortos, ele precisou viver sozinho com apenas dezesseis anos. Ele tinha aguentado bem o primeiro ano, superou a perda, continuou estudando e conseguiu um emprego como jovem aprendiz fora do morro. O problema é que no fim do ano letivo ele se formou, deixou de ser qualificado para a vaga de jovem aprendiz, então, quando o contrato terminou, Jamaica entrou oficialmente para o time dos formados no ensino médio que não tem emprego ou ocupação.
Elisa acompanhou todo o processo, viu cada tentativa falha de conseguir um novo emprego. Ele até arranjou um serviço na comunidade, mas não recebia o suficiente para pagar um aluguel e se alimentar. Ela viu ele ser despejado. E, por fim, viu ele entrar para o tr4fico por falta de opção mais viável. Claro que não gostava nem um pouco da escolha dele. Até tentou convencê-lo a morar na casa da sua mãe, que o aceitaria sem problemas. No entanto, Jamaica era consciente e, infelizmente, a época em que ficou sem teto coincidiu justamente com a época em que a mãe de Elisa estava passando por sérios problemas de saúde. Ele não queria ser mais uma complicação na vida delas, e foi assim que Elisa assistiu o melhor amigo entrar em uma vida que ela sabia como na maioria das vezes levava a dois caminhos: a cadeia ou a morte.
Elisa se desesperou quando ele foi lhe contar que trabalharia para o morro, ainda que ele não tivesse ido pedir a aprovação do dono do morro para vender, uma parte dela sabia que ele conseguiria. Foi a primeira vez que ela não gostou de ouvir algo dele. Também foi a primeira vez que Jamaica fez algo mesmo quando ela implorou para que não fizesse.
No fim das contas acabou aceitando, ou ao menos convencendo a si mesma que não poderia fazer nada para mudar a decisão dele. Jamaica não era a primeira pessoa importante na sua vida que entrava no mundo do tráfico, afinal, havia também Lucas, o seu irmão de criação, que vinha fazendo alguns serviços no morro para manter os remédios da mãe. Ele achava que escondia o que fazia, mas Elisa não era boba, sabia muito bem que o suposto trabalho na padaria jamais renderia o suficiente para pagar as contas da farmácia. Ainda assim, os dois fingiam acreditar na história dele, e faziam isso pelo bem da mãe, sabendo que o impacto de ver o filho no tr4fico poderia ser fatal para ela com seus problemas cardíacos.
Elisa ainda pensava no irmão quando chegou na casa de Jamaica e ouviu a voz dele. Não estranhou, Lucas e Jamaica também eram amigos, estavam cada vez mais próximos agora que ambos trabalhavam para o morro.
Como tinha acesso livre a casa que o amigo recentemente havia alugado, entrou sem bater. Não era sua intenção bisbilhotar a conversa dos dois, mas foi exatamente o que fez quando ouviu o seu nome.
—... pela Elisa — seu irmão terminava de dizer. Ela se encostou na parede, fora do campo de visão deles, e tentou escutar mais.
O que aqueles dois estavam falando sobre ela?
— Você nem precisa pedir uma coisa dessas — Jamaica rebateu.
— Beleza, mas preciso que você prometa — o tom de Lucas era insistente — A Lis não tem ninguém além da tia Luísa, que tá com todos aqueles problemas de coração, e eu, que posso rodar a qualquer momento. Sei que tu é amigo dela e quero que prometa que vai cuidar da minha irmã.
Ela franziu as sobrancelhas, quis revirar os olhos para o discurso do irmão. Quem o ouvisse podia acreditar que era indefesa e precisava de alguém para protegê-la. Que ideia absurda.
— Eu sempre cuidei dela — Jamaica murmurou em resposta, o que não era mentira. Elisa estava prestes a entrar para interromper o papo de protetores, quando ouviu o irmão falar:
— Quero que fique com ela. Não tô falando de cuidar como amigo, tô falando de garantir o futuro dela, de garantir que não vai deixar nenhum desses vagabund0s daqui acabar com a vida dela. A Lis tá crescendo e chamando atenção, não quero que acabe virando uma mãe solteira e se envolvendo com o cara errado.
— Tá me pedindo pra… namorar a sua irmã? — Jamaica perguntou, e mesmo sem o enxergar, ela podia ouvir confusão e surpresa na voz dele, podia até imaginar a cara que fazia no momento.
Ela também devia estar com uma expressão estranha no rosto, não só pelo pedido do irmão, mas pelo frio na barriga que sentiu ao pensar na ideia. Não que quisesse namorar Jamaica. Claro que não. Ele era seu melhor amigo, fora que não precisava de caridade. Onde já se viu, um relacionamento apenas para “protegê-la”, aquilo era tão absurdo que parecia até tema de uma das novelas mexicanas que a sua mãe costumava assistir.
Elisa já até podia ouvir as risadas que ela e o amigo dariam quando ele fosse lhe contar a ideia absurda de Lucas e…
— Beleza — a resposta de Jamaica fez a linha de raciocínio dela se quebrar. Elisa piscou, se perguntando se tinha ouvido errado — Vou pedir tua irmão em namoro, pode ficar tranquilo.
— Valeu, cara — Lucas soou aliviado. Elisa m*l conseguia registrar todas as coisas que sentia. O que estava acontecendo? — Agora manda o papo do que você queria falar comigo.
— Você não vai acreditar... — Jamaica riu.
Ela se afastou da parede antes de escutar o resto da conversa, sem saber muito bem o que fazia.
Tinha ouvido errado?
Por favor, precisava ter ouvido errado.
Jamaica não estava mesmo pensando em pedi-la em namoro por caridade, não é?
Não. Ele a conhecia, sabia como odiava ser enganada, sabia como isso era uma das poucas coisas que não conseguia perdoar. Fora que aquela ideia era absurda. Não precisava que ele se comprometesse apenas para calar a neurose do seu irmão.
Ela se afastou da casa tentando se convencer de que mais tarde o amigo apareceria e, como sempre, lhe contaria tudo. Por um momento, até imaginou que talvez Jamaica tivesse um plano, talvez a chamasse para ser cúmplice e os dois poderiam fingir um namoro para tranquilizar Lucas. Até mesmo essa ideia estúpida era mais aceitável do que a possibilidade do melhor amigo aceitar enganá-la daquela forma.
Elisa alimentou essa esperança pelo resto do dia. Não conseguiu pensar em mais nada enquanto as horas passavam. Quando a noite chegou e Jamaica apareceu para conversar, como sempre fazia, ela já tinha se convencido de que ele contaria tudo.
Mas ele não contou. Na verdade, parecia bastante nervoso, o que só a deixou mais apreensiva. E quando Jamaica segurou as suas mãos um pouco mais tarde e prendeu o seu olhar com os olhos bonitos dele, ela sentiu vontade de chorar de raiva, porque sabia exatamente o que ele faria.
Ele destruiria a amizade dos dois com uma mentira. E ela nunca aceitaria algo assim.
Foi por isso que, quando Jamaica lhe pediu em namoro naquela noite, ela ignorou o frio na barriga, ignorou o maldito olhar dele que, de uma forma bem irônica, ficava ainda mais bonito quando ele estava nervoso, ignorou a raiva e a vontade de dizer que sabia de tudo, e apenas disse:
— Não.
A resposta soou fria até para seus ouvidos. Jamaica pareceu perdido por um segundo e, se ela não tivesse ouvido toda a conversa, poderia jurar que ele estava desiludido de verdade. Mas não estava. Era mentira. O cara em que mais confiava no mundo tinha mesmo tentado lhe enganar.
Elisa estava tão brava com ele que nem tentou dizer muito mais antes de murmurar que precisava dormir e ir embora sem olhar para trás.
E depois disso, a amizade que ela tanto amava e qualquer outro sentimento que pudesse ter pelo amigo, se desintegrou em um caminho sem volta. Mesmo que isso doesse, ela simplesmente não podia voltar atrás.
Elisa nunca perdoava traições.