O mundo que ela não não conhecia
A mansão no Alto da Boa Vista tinha tudo: piscina de borda infinita, academia com vista pras montanhas, carros de luxo na garagem, segurança privada. Mas pra Bruna, aquilo não era casa. Era cela.
Ela olhou pela janela do quarto no segundo andar, os olhos fixos na linha do horizonte, onde o céu alaranjado tocava o Vidigal ao longe. Dali ela m*l enxergava as vielas ou as lajes — mas sentia como se algo a chamasse de lá. Um lugar onde a vida parecia pulsar de verdade, sem roteiro, sem vigilância.
— "Bruna, o jantar vai ser às sete. E vê se não se atrasa, seu pai não gosta de esperar." — a voz firme de Rosane, a governanta, ecoou pelo corredor.
Ela suspirou. A agenda era sempre a mesma: acordar, treinar, estudar, reuniões com professores particulares, e à noite, jantar formal com o pai — o temido Coronel Álvaro Souza, comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Um homem temido por uns, idolatrado por outros. Mas pra ela, era apenas o carcereiro.
No jantar, ele já estava sentado à cabeceira. Fardado. Sempre fardado, mesmo em casa. O rosto duro, marcado por décadas de confronto. Um homem que nunca sorriu de verdade desde que a mãe dela morreu.
— "Boa noite, pai."
— "Boa noite. Senta."
Bruna se sentou. A empregada serviu salmão grelhado com arroz n***o. Mas ela só beliscava. Pensava em outra coisa. Ou melhor, em outro lugar.
— "Você tá distraída. O que tá acontecendo?" — ele perguntou, a voz grave.
Ela tentou desviar.
— "Nada. Só... tô cansada."
— "Não aceito essa história de cansaço emocional. Você tem tudo, Bruna. Roupas, conforto, segurança. Não falta nada."
Ela mordeu o lábio inferior. A raiva subiu como um soco na garganta.
— "Falta sim, pai. Liberdade."
Ele largou os talheres, devagar. Olhos nos olhos dela.
— "Você é filha de um oficial da PM. Sua liberdade termina onde começa o risco. E o Rio tá cheio deles."
Bruna se levantou.
— "Talvez o que me faz m*l seja exatamente essa proteção toda."
Ela subiu pro quarto sem esperar resposta. Deitou na cama e pegou o celular escondido na gaveta, um aparelho simples que ninguém da casa sabia que existia. Era com ele que ela conversava com Luiza, sua amiga de infância, que vivia no Vidigal.
Na tela, uma mensagem piscava.
Luiza:
"Vai ter festa na laje do Juninho amanhã. Sobe com a gente. Vai ser f**a!"
Bruna olhou a foto de perfil da amiga: uma selfie na laje, cerveja na mão, céu azul atrás. Todo mundo sorrindo, livre. Real.
Ela digitou, com o coração acelerado:
Bruna:
"Tô dentro."
E naquele momento, sem saber, Bruna acabava de dar o primeiro passo rumo a uma vida que jamais imaginou: feita de becos, adrenalina, desejo... e perigo.
O coração de Bruna batia mais forte a cada curva que o Uber fazia subindo o morro. Já tinha trocado de roupa na casa da Luiza: short jeans, top preto e cabelo solto. Bem diferente da menina engomadinha do Alto da Boa Vista.
A cidade lá de cima parecia outra. As luzes da Zona Sul brilhavam ao fundo, enquanto o som da laje estourava no talo. Funk batendo pesado, cheiro de churrasco no ar, e uma vibe que ela nunca tinha sentido na vida.
— "Chegamo, princesa do asfalto!" — Luiza disse, rindo, puxando ela pela mão.
Bruna riu nervosa. Era tudo novo, intenso. Gente dançando colado, garrafas de vodka passando de mão em mão, risadas altas, cigarro aceso em todo canto.
Foi quando ela viu.
Ele estava encostado na grade da laje, camisa branca colada no corpo, tatuagens subindo pelo pescoço, um olhar que parava o tempo. Falava com dois caras ao lado, mas os olhos estavam nela. Direto. Fixo. Como se já soubesse.
— "Quem é aquele?" — Bruna perguntou baixo, tentando disfarçar.
Luiza sorriu.
— "Aquele ali? Rodriguinho. Mas aqui ninguém chama ele assim não... é o R.P."
— "R.P.?"
— "É. O homem. O dono da parada. Mas relaxa, ele nem liga pra novata não."
Mentira.
R.P. largou a grade e começou a andar na direção delas. Bruna sentiu o estômago virar. Ele parou a meio metro dela, um copo na mão, sorriso no canto da boca.
— "Você não é daqui."
— "E você deduziu isso como?" — ela rebateu, tentando parecer segura.
Ele deu uma risada rouca.
— "O olhar de quem nunca dançou no asfalto. Mas tá de parabéns... desceu do castelo pra ver o mundo real."
Bruna arqueou a sobrancelha.
— "E no mundo real, todo mundo te olha desse jeito quando você passa?"
R.P. chegou mais perto.
— "Não todo mundo. Só quem me interessa."
Ela corou. Ele estendeu o copo pra ela.
— "Quer beber?"
Bruna pegou o copo, olhou nos olhos dele e bebeu sem desviar o olhar. O gosto queimou a garganta, mas o sangue dela já tava quente por outro motivo.
Luiza apareceu de novo, empolgada.
— "Vamo dançar, Bruna!"
Ela hesitou, mas R.P. fez um gesto leve com a cabeça.
— "Vai lá. Te espero aqui."
E ela foi. Mas os olhos não desgrudaram dele por um segundo. O coração dela sabia: aquele não era só um homem bonito.
Era um perigo.
E ela nunca desejou tanto se arriscar.
O chão da laje tremia com o grave do som. As luzes coloridas piscavam em ritmo com o coração de Bruna. Ela dançava com Luiza e outras meninas, mas os olhos dela estavam sempre procurando ele — R.P.. Encostado no canto, copo na mão, cercado por olhares, mas só tinha olhos pra ela.
Era como se o resto do morro tivesse sumido.
Depois de algumas músicas, ela parou pra respirar. Foi quando sentiu a mão dele encostar de leve nas costas nuas.
— "Cansou?"
Ela virou de frente, encarando de perto aquele olhar que parecia atravessar tudo.
— "De dançar? Não. De ser vigiada a vida inteira, sim."
R.P. deu um meio sorriso, curioso.
— "Vigiada por quem?"
— "Pelo meu pai. Coronel da PM."
Ele arqueou uma sobrancelha. Um segundo de silêncio. Mas não falou nada.
— "Então você é tipo... filha do sistema?"
— "Não. Eu sou só uma garota que quer viver."
Ele encarou ela por um momento, depois estendeu a mão.
— "Vem."
Ela foi.
R.P. desceu com ela pelos becos do Vidigal. Não era fuga. Era tour guiado. Mostrou onde cresceu, onde jogava bola quando moleque, onde perdeu amigos, onde ganhou respeito. Não tinha vergonha de onde vinha.
— "Aqui, ou você aprende a ser forte, ou você some."
Pararam numa laje mais baixa, onde dava pra ver o mar lá longe. Silêncio entre os dois. Só o som das batidas da laje distante e a brisa quente da madrugada.
— "Você devia ir embora antes que descubram quem é seu pai." — ele disse de repente.
— "Você devia se afastar de mim também." — ela respondeu.
Os dois sorriram. Mas não se afastaram.
E então ele beijou ela.
Não foi devagar. Não foi gentil. Foi como se os dois tivessem segurado aquela vontade desde o primeiro olhar. Mãos que se agarravam, bocas que se procuravam, desejo que não pedia licença.
Ali, naquela laje, entre a favela e o céu estrelado, Bruna teve sua primeira noite de verdade. Primeira vez em que não se sentiu filha de ninguém. Primeira vez que o mundo parecia só dela.
No fim, deitada no peito dele, com a cidade dormindo ao fundo, ela perguntou:
— "Por que você me olhou daquele jeito naquela hora?"
R.P. respondeu com a voz baixa:
— "Porque você é a única coisa que não posso ter. E mesmo assim... vou querer até o fim."
Bruna fechou os olhos. Não sabia ainda, mas aquela frase ia mudar a vida dela pra sempre.