A adrenalina da noite vira peso no dia seguinte. Bruna tenta voltar pra rotina como se nada tivesse acontecido… mas o problema é que tudo mudou. Ela tá dividida entre dois mundos — e a mentira começa a cobrar caro.
O sol entrava forte pela janela do quarto. Bruna abriu os olhos devagar, com a mente ainda na laje, no beijo, no toque… no R.P.
Mas o celular na cabeceira já vibrava sem parar. Era Rosane.
Rosane:
"Seu pai chegou mais cedo. Tá te esperando no café."
O estômago de Bruna virou. Levantou às pressas, prendeu o cabelo, trocou de roupa, e desceu com a cara mais limpa que conseguiu fingir.
Na mesa, o Coronel Álvaro lia o jornal. Fardado, como sempre. Café preto, pão com manteiga e uma pistola à vista, do lado do cotovelo.
— "Chegou tarde ontem." — ele disse, sem tirar os olhos da página.
Bruna tentou manter a calma.
— "Tava na casa da Luiza. Dormi lá."
Ele largou o jornal.
— "Luiza do Vidigal?"
Ela gelou. Engoliu seco.
— "Sim."
— "Não gosto dessa amizade, Bruna. Já falei."
— "Ela é minha amiga desde o colégio, pai. Não tem nada demais."
Ele a encarou.
— "O Vidigal tá voltando a ferver. Tão me passando informações de que o tráfico tá se reorganizando lá. Tô montando uma operação grande."
Bruna travou. A xícara quase escorregou da mão.
— "Operação?"
— "Sim. Quero limpar aquela p***a de uma vez. E o tal do R.P., esse marginal que tá se achando dono do morro... esse vai cair."
O coração dela parou por um segundo.
— "Você... você sabe quem ele é?"
— "Sabemos que o nome de batismo é Rodriguinho. Mas ele é esperto. Não deixa rastros. Ainda."
Bruna tentou disfarçar o tremor nas mãos.
— "E... quando vai ser essa operação?"
— "Ainda estamos fechando. Mas é questão de dias." — ele tomou mais um gole de café. — "E você, se tiver juízo, vai manter distância daquele lugar. A polícia não vai avisar quando chegar."
Ela subiu pro quarto quase correndo. Trancou a porta. Encostou na parede, ofegante.
Pegou o celular. Mãos trêmulas. Digitou rápido:
Bruna:
"Preciso te ver. Agora."
R.P.:
"Fala, princesa. Tô na correria. Tudo certo?"
Bruna:
"Não. Meu pai é o comandante da operação que vai invadir o Vidigal. E você é o alvo principal."
Demorou alguns segundos. Depois veio a resposta.
R.P.:
"Sabia que seu pai era polícia. Só não imaginava que era ele."
Bruna:
"Você precisa sair daí."
R.P.:
"E deixar meu morro? Aqui é minha vida. Minha história. Eu não corro, Bruna. Quem corre é soldado. Eu sou o chefe."
Ela digitou com raiva, quase chorando:
Bruna:
"Então você vai morrer."
Ele respondeu só com uma frase:
R.P.:
"Talvez. Mas antes disso... ainda tenho uma missão. E agora você faz parte dela."
Bruna jogou o celular na cama. A cabeça girando, o coração acelerado. Estava dentro de algo que nunca imaginou. E agora, ou traía o pai… ou perdia o homem que fazia ela se sentir viva.
O cerco começa a fechar. Bruna tá vivendo uma vida dupla — e quanto mais tenta esconder, mais perigoso tudo fica. Ela começa a ver o que realmente significa se envolver com um cara como R.P.: amor, sim... mas também sangue, lealdade e escolhas sem volta.
Os dias passaram lentos, sufocantes. Na mansão, Bruna vivia no automático: estudava, respondia o pai com “sim, senhor”, fingia estar bem. Mas por dentro, era caos.
A cada passo do coronel, ela tentava ouvir conversas, captar pistas. Na parede do escritório dele, um mapa enorme da cidade com pinos vermelhos — e o nome “R.P.” circulado em destaque.
Ela sabia: a operação tava perto. Muito perto.
Quando conseguia, ela escapava. Pegava o metrô, depois moto-táxi, e subia pro Vidigal pela entrada dos fundos. O coração sempre apertado, mas os olhos sempre buscando ele.
R.P. a recebia de braços abertos — mas com a mente longe, sempre no rádio, na escuta, nas mensagens cifradas que chegavam dos soldados do morro.
— "Você não deveria estar aqui tanto assim." — ele disse uma noite, enquanto os dois estavam deitados num colchão no chão da laje, escondidos do mundo.
— "E você devia parar de fingir que não gosta." — ela provocou, sorrindo de canto.
Ele sorriu também, mas sem alegria.
— "Gosto. É esse o problema."
Ela ficou em silêncio. Sabia que estava num território onde amor e tragédia andavam lado a lado.
— "Por que você entrou nisso, R.P.?"
Ele encarou o teto por alguns segundos, depois respondeu:
— "Quando meu irmão morreu com um tiro da polícia, eu tinha 14 anos. Tava vendendo bala no sinal. No dia seguinte, ninguém quis saber o nome dele. Só chamaram de vagabundo. Eu jurei que o nome da minha família ia ser lembrado. Nem que fosse no medo."
Bruna engoliu seco. Não tinha o que dizer. Ela cresceu com tudo. Ele com nada. Mas ali, naquele espaço apertado, os dois eram só dois corações tentando sobreviver.
De repente, o rádio de R.P. apitou. Ele sentou na hora.
— "Tem viatura fazendo ronda mais embaixo. Escalão alto. Tão mapeando entrada."
Bruna gelou.
— "É meu pai. Ele tá organizando tudo. Você precisa sair."
— "Eu não saio." — ele disse firme. — "Esse morro é meu. Se eles entrarem, vai ter guerra."
Ela ficou de pé, desesperada.
— "Então você vai morrer, Rodriguinho!"
Ele se aproximou dela, devagar. Olhou nos olhos dela, encostou a testa na dela.
— "Se for pra morrer... que seja com você sabendo que te amei de verdade."
Ela desabou em prantos, agarrada no peito dele.
E foi naquela noite que ela tomou uma decisão.
Ia fazer o que fosse preciso pra impedir aquela guerra. Mesmo que tivesse que mentir. Mesmo que tivesse que trair sangue do próprio sangue.
Ela só não sabia que, em guerras assim, ninguém sai inteiro.
Alguém que tá entre o certo e o errado, jogando um jogo perigoso. Bruna vai ver que dentro da própria polícia também tem segredos — e talvez uma chance.
Na manhã seguinte, Bruna estava na varanda da casa, fingindo ler um livro, quando ouviu o barulho de um carro entrando na garagem. Reconheceu na hora o som do motor: era o Tenente Caio, braço direito do seu pai, praticamente da família. Sempre sorridente, sempre simpático. Mas naquela manhã, algo estava diferente.
— "Bom dia, Bruna." — ele disse com a voz mais fria que o normal.
— "Oi, Caio. Tudo bem?"
Ele assentiu, subiu e entrou no escritório com o coronel. A porta foi fechada. Mas antes de sumir do corredor, Bruna percebeu: ele olhou pra ela. Um segundo só. Mas foi um olhar... estranho.
Mais tarde, quando o pai saiu, Bruna decidiu arriscar. Foi até a porta do escritório e bateu.
— "Posso falar com você?"
Caio estava mexendo em papéis, mas parou.
— "Claro. Entra aí."
Ela se aproximou, fechou a porta, e encarou ele.
— "Você sabe quem é o R.P., não sabe?"
Ele levantou os olhos, surpreso — ou fingindo estar.
— "Por que tá me perguntando isso?"
— "Porque eu preciso saber... se você realmente é leal ao meu pai."
Silêncio. Ele encostou na cadeira, cruzou os braços.
— "Eu sou policial, Bruna. Leal à farda."
— "Mas a farda esconde muita coisa, né?"
Ele suspirou. Depois falou baixo:
— "Eu conheço o R.P. desde moleque. A gente cresceu no mesmo bairro. Quando eu entrei na PM, ele já tava no crime. A gente se afastou. Mas tem coisa que... não se esquece."
Bruna sentiu o chão sumir.
— "Então você tem contato com ele ainda?"
— "Não diretamente. Mas eu escuto. Sei por onde ele anda. Sei como ele pensa. É por isso que seu pai me quer nessa operação."
Ela se aproximou, desesperada.
— "Então me ajuda. Me ajuda a impedir que ele morra."
Caio ficou em silêncio, encarando ela. Depois levantou, foi até a janela, e disse:
— "Você tá se envolvendo demais. Isso vai te machucar."
— "Já tô machucada. O que eu quero é impedir uma guerra."
Ele virou de costas, pensativo. Depois respondeu:
— "Tem uma entrega marcada pra sábado à noite. No campo de terra do alto do morro. Vai estar todo mundo lá. Seu pai quer usar isso como armadilha."
— "Meu Deus..."
— "Se você quiser avisar ele... é agora. Mas depois disso, eu não posso fazer mais nada. Se descobrirem que tô te dando informação... eu morro antes dele."
Bruna assentiu, coração acelerado. Saiu dali quase sem respirar. Pegou o celular.
Mensagem pra R.P.:
Bruna:
"Sábado. Campo de terra. Vão armar pra vocês. Vaza."
R.P.:
"Entendido. Mas não vamos correr. Vamos virar o jogo."
Bruna:
"Você é louco. Não enfrenta meu pai."
R.P.:
"Seu pai vai conhecer meu nome. E você vai ver... quem comanda de verdade."
Bruna apagou as mensagens. Chorou sozinha no quarto.
Ela salvou ele… ou assinou a sentença de alguém?