Capítulo 57

2189 Words
Me ajoelhei no chão sujo ao lado da cadeira, a mão tremendo ao tocar o braço dela. Mas a pele ainda estava quente. Graças a Deus. — Ela tá viva — sussurrei, os dedos buscando o pulso fraco no pescoço dela. A raiva explodiu junto com o alívio, queimando meu rosto. Virei a cabeça de supetão, encarando ele. — O que que você fez com ela? — gritei, a voz embargada pelo choro e pelo pânico. — O que foi que aconteceu aqui, Iago? RESPONDE! Ele piscou algumas vezes. Respirou fundo, o peito subindo e descendo sob a camisa. E respondeu baixo, quase um murmúrio, sem olhar pra mim — os olhos fixos em algum ponto na parede atrás de mim: — Ela tá grávida do PM! As palavras saíram flutuando frias no ar pesado do galpão. E então... ele simplesmente se virou e saiu. Sem dizer mais nada. A sombra dele deslizou pela porta em direção ao corredor escuro. E o som dos seus passos foram sumindo aos poucos. Fiquei parada. Congelada. Olhando a porta vazia por onde ele tinha sumido e tentando processar o que acabara de ouvir. Grávida? Ele teve coragem de fazer isso... com ela... grávida? Ou será que esse foi o motivo pelo qual ele tinha feito essa barbárie? A dúvida me corroía. Mas não tinha como saber.. não agora. Voltei o olhar pra ela — pra Alicia. Ali na cadeira, a cabeça dela tava horrível, o rosto... Meu Deus, o rosto quase irreconhecível, desfigurado. E a queimadura... nossa. Meus olhos ardiam, a imagem se cravando na minha mente. Duas pessoas ao lado dela seguravam o seu corpo pra não tombar pra frente. Sérios. Impassíveis. Como eles estavam tão tranquilos? Meu estômago embrulhou com tamanha frieza no rosto de todos ali presentes. — Não... não... — neguei com a cabeça, as lágrimas começando a escapar. — Eu não vou deixar você morrer aqui. Levei a mão ao peito, o horror me impulsionando. E saí correndo atrás dele, pelo corredor escuro e comprido. — Iago! — chamei, a voz alta, o coração batendo descontrolado no peito. Encontrei ele quase no portão do galpão, andando devagar, as mãos enfiadas nos bolsos da calça. O alcancei e segurei a camisa dele. Ele parou no ato. Sentiu o toque e olhou pra baixo, pra onde a minha mão agarrava o tecido escuro. Seu maxilar travou visivelmente. Ele levantou o rosto e me encarou. Sério. Frio. — A gente precisa tirar ela daqui — falei ofegante, desesperada, a voz saindo explodindo de emoção. — Levar pra um hospital. Sei lá... ela ainda tá viva! O que não pode é ela ficar aqui! — Não dá. A resposta saiu cortante. Indiferente. E me causou um choque físico, um arrepio gelado por tamanha frieza. Como ele podia? Ele me olhou — e notei que, nos olhos dele, tinha algo que não combinava com o tom da voz. Era como se houvesse uma... luta interna. Como se dentro dele tivesse uma guerra acontecendo — entre o que ele achava que precisava ser feito e o que alguma parte dele queria fazer. E por incrível que pareça, mesmo depois da cena que eu acabara de ver, mesmo com medo dele, eu conseguia sentir que por baixo daquela casca dura que ele mostrava. Da frieza, existia alguma coisa boa ali dentro. — Como assim não dá? — questionei, incrédula e meu tom de voz subiu um pouco. — Claro que dá! É só você mandar! Ele respirou fundo, o peito subindo e descendo devagar sob a camisa. Parecia perdido em dúvidas. Mas quando falou, a voz já era indiferente, controlada de novo. — Ela que escolheu esse bagulho. Achou o que procurou. Agora tem que sustentar as consequências. A verdade é que nem ele desejava isso. Por que se realmente fosse assim, não teria me chamado. Não me traria até aqui. — Não dá pra pensar assim quando se envolve um ser inocente, Iago — disse, a voz falhando pela emoção, mas firme. — Esse bebê não tem culpa. Ele não é um problema, é um presente. Que não merece pagar pela maldade dela... é um anjinho. Ele negou com a cabeça e pôs as mãos no quadril. Olhando pra baixo e puxando o ar fundo. De um lado, conseguia ver o Iago bandido, o chefe cruel... Do outro, o irmão mais velho, louco pra proteger a irmãzinha. Se enfrentando ali, dentro dele. — Meu pai não vai aceitar nunca essa porra.— disse, finalmente, encostando as costas na parede e desviando o olhar pro teto. — Nem ele e nem o comando vão aceitar essa criança. É melhor ela morrer na minha mão do que na deles. Quando me olhou de novo, os olhos estavam... molhados? Brilhantes. Ele não chorava, mantinha o jeitão dele. Mas era evidente que estava segurando a emoção. Tinha tudo naquele olhar.. angústia, dúvida, confusão — tudo. Talvez o que eu estava vendo era o reflexo do menino que a Manu me descreveu. Escondido ali, sufocado por trás do homem que ele se tornou. Ou que precisou se tornar. — Por que ele teria que aceitar? — perguntei, sendo incisiva, sentindo uma ponta de coragem surgir. — Quem tem que aceitar é ela, que tá carregando esse bebê. Essa decisão não é sua. Não é do seu pai. É unicamente dela. — Tu não entende. — desencostou da parede, começou a andar de um lado pro outro, nervoso, agitado. Passou a mão na cabeça, no rosto e a impressão que dava era de que ele tinha se tornado um vulcão prestes a entrar em erupção. Observei em silêncio. Respeitando o momento dele. Era a primeira vez, desde que conheci o Iago, que via algo... humano nele. — Não consigo entender mesmo! — dei um passo à frente. — Por que seu pai não aceitaria o bebê? É só um anjinho, Iago… uma criança, meu Deus. Ele parou de andar e seus olhos escuros me encararam com raiva, mas... não era raiva de mim. Senti isso. Talvez fosse raiva da situação toda. Dela. Dele talvez. — Porque é filho de verme, p***a! — ele gritou, a voz explodindo no galpão silencioso. — De um arrombado! De um PM filho da p**a! Tanto cria aqui no morro, e essa desgraça vai e pega barriga logo de um bosta desse! Ela sabe que é proibido se envolver com esses filhos da p**a. Fiquei muda. Paralisada. Era inevitável não me colocar no lugar dela. Ali, naquela situação. E se fosse eu ali, com um filho dele na minha barriga? Será que ele tá se ouvindo? O meu pai é o quê? Ele também me mataria? Mataria o nosso bebê, por causa dessa droga toda? — Então é assim que as coisas funcionam entre vocês? — disse baixo, a voz quase sumindo, olhando fundo nos olhos dele, deixando ele ver o medo e a decepção nos meus. Ele pareceu entender o peso por trás das minhas palavras. Engoliu seco e desviou o olhar. Não respondeu. Respirei fundo, buscando a coragem que eu sempre tive. — Eu não vou ficar parada vendo essa menina morrer — disse, séria, decidida. — Ainda mais sabendo que ela tá grávida. Que se dane o que ela fez, o que ela é ou deixou de ser. Agora, na minha frente, eu só enxergo uma vida. Melhor duas. Ele passou a mão no rosto e bufou. — O certo seria eu acabar de matar ela. — falou, sem expressão. — O certo seria esperar essa criança nascer — respondi no mesmo tom, sem recuar. — Você me chamou aqui por quê, Iago? — Porque confio em você. — respondeu rápido. E o que ele falou... me pegou de surpresa. "Ele confiava em mim" A fala dele soou tão simples, tão direta... Mas dentro de mim.. ah, meu Deus! Um grito silencioso eufórico, daquela menina boba de quinze anos que ainda vivia aqui dentro, explodiu aqui dentro. Uma onda de calor subiu pelo meu rosto. Ele confiava em mim. Depois de tudo, apesar de tudo que rolou...da denuncia falsa que eu nunca fiz. Ele ainda confiava em mim. Aquilo era mais do que eu podia esperar. Mais do que eu devia sentir, talvez. Respirei fundo, tentando acalmar o coração que disparou feito louco. — Então me deixa fazer o que eu acho certo. — falei baixo, quase um sussurro, um apelo direto àquele resquício de humanidade que eu tinha visto nele. — Eu não vou contar pra ninguém. Juro. — ergui os olhos pros dele, buscando firmeza. — Esse segredo vai ficar só entre nós dois. Eu levo ela pra minha casa. Eu cuido dela. Depois... — hesitei, engolindo em seco — ...depois que o bebê nascer, aí sim, vocês decidem o que fazer com ela. Com eles. Ele me encarou por longos segundos. O rosto dele era uma tela em branco. Indecifrável de novo. — A Alicia é r**m, Maria Clara — disse, e a fala saiu como um aviso. — Ela não merece essa chance. Tu vai tá colocando uma cobra venenosa dentro da tua casa. — Eu não tô fazendo isso por ela. — respondi, e dei mais um passo à frente, diminuindo a distância entre nós. — Tô fazendo por essa criança. Uma vez... eu tava desenganada. Praticamente morta. Condenada. — as palavras saíram junto com as lágrimas, a lembrança do meu médico me dizendo que tinham encontrado um doador compatível me atingiu em cheio. — E alguém... alguém quis me salvar. Assim como eu quero salvar eles agora. Limpei uma lagrima, a garganta apertando a medida em que as palavras saiam. — Eu só tô devolvendo pra vida, Iago. O que um dia ela me deu. Uma segunda chance. Ele respirou fundo. Demorou a responder, e o silêncio se esticou como um fio fino. Mas por fim... ele concordou. Com um leve, quase imperceptível movimento de cabeça. — Tá. — murmurou. Ele disse isso e virou as costas, saindo pelo portão grande de ferro. Ufa... Puxei o ar com força, aliviada, mas tremendo por dentro. Limpei minhas lágrimas e voltei correndo praquele lugar. A Alicia continuava do mesmo jeito na cadeira. Os dois caras ainda estavam lá, parados como estátuas, segurando os ombros dela pro corpo não tombar pra frente. A frieza deles me enojou. — Tira a mão dela! — falei, e corri até ela, me ajoelhando na sua frente. Eles se entre olharam, me encararam com desdém e não se moveram. — Eu mandei tirar a mão dela! AGORA! — gritei, sentindo a raiva subir em mim. Um deles, o mais alto, me encarou com deboche, abriu a boca pra retrucar... Mas o Iago surgiu atrás de mim. Emanando aquela autoridade que não precisava de palavras. Um simples gesto com a mão na direção deles e os dois recuaram na hora. Sem dizer uma palavra. Sem nem sequer olhar pra mim. Passei o braço da Alicia sobre meu ombro, tentando ergue-la. Mas o corpo dela tava muito pesado. Tive dificuldade pra me levantar segurando ela, era impossível andar. — Vamos, Alicia... — sussurrei baixinho. — Vamos pra casa. Eu vou cuidar de você. Me ajuda. Toquei o rosto dela com cuidado, tentando limpar um pouco do sangue seco com a manga do meu moletom. Meus dedos esbarraram na marca áspera da queimadura perto do olho e fechei os meus olhos. Respirei fundo e segurei a minha medalhinha de Santa Rita de Cássia. — Seja forte, Maria Clara. — sussurei baixinho pra mim. Eu precisava ajudar ela! As lágrimas invadiram meus olhos de novo e a culpa por ontem, por ter entregado ela, me invadiu. — Tenta andar, por favor... — sussurei pra ela. E ela gemeu. Baixinho. Mas foi o suficiente pra me trazer um alívio momentâneo. Sorri entre as lágrimas. Limpei o rosto com as costas da mão e a ergui mais uma vez, com mais força. — Isso... vamos lá. A gente vai conseguir sair daqui. Você vai ficar bem... você e o seu bebezinho. Juro. Quando tirei os olhos dela e olhei pra frente, vi o Iago ali. Parado. Encostado no batente da porta, braços cruzados e os olhos fixos em nós duas. Observando. — Me ajuda! — pedi, implorando, o corpo dela pesava demais nos meus braços e eu não ia conseguir sozinha. Ele demorou alguns segundos — segundos que pareceram uma eternidade. Mas então... ele veio. Caminhou até nós, em silêncio. Sem dizer nada. Pegou a Alicia no colo com uma facilidade absurda, erguendo-a como se ela não pesasse nada e como se ele não estivesse recém-operado. Os braços fortes do Iago a envolveram, e um sorrisinho escapou de mim. Talvez a Manu estivesse certa. Por baixo de toda aquela casca dura, daquela frieza... ainda existisse um menino bom. Ele só precisava descobrir isso. Ou talvez... precisasse de alguém que o ajudasse a encontrá-lo. Caminhei até a porta e antes de sair, olhei ao redor. Os tufos longos de cabelo espalhados pelo chão sujo de sangue e o rosto dos caras ali. Fiz o sinal da cruz, rápido, sussurrei um Pai Nosso baixinho e corri pra fora. Atrás deles
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