Aurora acordou muito antes do nascer do sol, estava especialmente feliz aquela manhã, havia recebido autorização para levar doces a Rodolpho e quis fazer ela mesma. Separou os ingredientes com cuidado, seguiu cada passo da receita sem deixar escapar nenhum detalhe, queria que ficassem perfeitos, fez naquela manhã quindins, ela adorava a história por trás desse doce e pretendia falar sobre isso assim que encontrasse Rodolpho.
Nos conventos portugueses as claras de ovos eram usadas para engomar as roupas das freiras e para não desperdiçar as gemas elas criaram diversas receitas, entre elas um doce chamado Brisa-do-Lis, a receita simples contava apenas com as gemas, amêndoas e açúcar, mas ao chegar no Brasil a receita foi readequada aos ingredientes que tinham em abundância, o coco substituiu as amêndoas e então nasceu o quindim.
Ela ainda pretendia contar sobre como a escrava que recriou o doce português passou a morar na casa grande e viveu uma paixão fervente com o filho do senhor, após o rapaz experimentar o doce.
Ficou vermelha com o pensamento, se lembrou do rosto sempre misterioso e ameaçador de Rodolpho, cada olhar parecia um aviso de “Não se aproxime!” e ainda assim, a cada dia, tudo o que ela mais queria era se aproximar. A pele morena apesar do pouco sol, os olhos tão escuros quanto a noite, achava que os cabelos de Rodolpho eram crespos, não tinha certeza eram muito curtos. Fechou os olhos quando se deu conta de que queria poder tocar, sentir algo mais do que os calos e a mão áspera quando os dedos dele se entrelaçavam aos seus.
Se pegou imaginando como seria um beijo dele, desses que lia nos livros, mas que nunca viveu. Cresceu rodeada de mulheres, trancada, nem mesmo televisão era permitido, aliás nem os livros que dividia com ele naquele presídio eram permitidos.
Os doces estavam prontos, mas ela fez questão de arrumar um a um com pequenas rendinhas. Separou alguns em um potinho, Antônio merecia provar, afinal ele tinha o poder de dar ou não aquela felicidade a Rodolpho, nessa hora se corrigiu, nem mesmo sabia se o homem gostava de quindins, a felicidade na verdade era dela. Estava imensamente feliz por poder fazer aqueles doces para Rodolpho.
A madre superior entrou na cozinha parecendo apressada.
- Aurora! Onde esteva, menina? Quase me matou de susto! Achei que tivesse fugido.
- Estava fazendo vigília madre! O trabalho e a oração purificam a mente e a alma, foi a senhora quem me ensinou.
- Oh, minha filha, você sempre foi tão doce, não merece o seu futuro, mas preciso que saiba que eu faria algo se pudesse. Seu pai te espera, arrume as suas malas, você vai embora com ele.
A notícia fez Aurora se sentar, tentou perguntar.
- Como assim, Madre, eu não quero ir! Eu...
Se lembrou de Rodolpho, dos quindins, apesar do furacão que aquela notícia significava, foi no rosto daquele detento que ela pensou. O pai morava em uma espécie de condomínio, um lugar que ela só viu por fotos durante as visitas. Achava que Caio trabalhasse com tesouraria, não era uma mentira, mas a parte que ela desconhecia era que Caio Fortuna, o pai amoroso que ela conhecia, na verdade era um mafioso respeitado.
Um servo de um homem conhecido como Fera, o líder morava no Brasil, mas comandava milhares de homens ao redor do mundo, Caio era um deles, o responsável por fazer os controles e as compras necessárias para o condomínio de Nova York e enviar os dados para uma mulher misteriosa que todos conheciam apenas como a mulher do contador.
A madre superior, sempre calma e composta como se negociasse com os beatos que compravam aqueles doces e os bordados que as noviças faziam. Agora, negociando a vida de Aurora como se tivesse o mesmo valor.
- Meu coração dói, filha, mas não temos escolha
O chão parecia ter sido arrancado debaixo dos seus pés. A palavra casamento nunc pareceu tão opressora quanto naquele momento.
- Com quem, Madre? Por que preciso me casar? Eu quero ficar, fazer os votos.
A menina nunca quis se juntar a igreja, fazer os votos era algo completamente distante dos desejos de Aurora, mas também não achava a vida simples do convento nenhuma tortura, principalmente se comparada a ideia de se casar com um desconhecido.
- Tudo o que sei foi o que, seu pai disse. Sabe o que o seu pai faz, não sabe minha filha?
- Eu não vou! Não estamos mais na idade média, eu posso escolher a minha vida, o meu destino, não vou me casar com ninguém que eu não ame! Posso ir embora, ele paga esse lugar, mas eu posso trabalhar, pagar pelas minhas contas, esperar...
Quase disse que poderia esperar por Rodolpho, apesar de nunca terem falado sobre sentimentos e ele jamais a olhar com desejo, ainda assim, quase falou que esperaria por um detento que jamais tinha sequer beijado, mas a boca estava gritando o que o coração transbordava apesar da mente tentar negar a qualquer custo.
- Oh, minha querida, a vida nos leva por caminhos inesperados, mas os planos de Deus são para o nosso crescimento, lembre-se do sacrifício de Cristo, nenhum castigo em nossa carne pode ser maior do que o que ele sofreu por nós.
As palavras da madre não ofereceram nenhum consolo, só conseguia pensar na imagem de Rodolpho, seus olhos escuros e misteriosos, seus dedos ásperos e calejados. Ela queria tanto contar a ele sobre os quindins, sobre a história por trás do doce, sobre o que sentia.
- Madre! Preciso ir a penitenciária, só mais uma vez! Por favor! Eu prometi, ele vai me esperar.
A alma da menina parecia sangrar, quase podia imaginar Rodolpho em pé com o rosto colado as grades esperando por ela, esperando por alguém que nunca chegaria. Achou que ele a odiaria, se sentiria abandonado e ela jamais o abandonaria, não se houvesse escolha.
- Filha, eu não posso! Seu pai me disse que se você fugisse ele mataria a todos nesse lugar e sabemos que ele tem poder para isso. Quer mesmo ter todo esse sangue sobre você, Aurora?
Matar... A palavra parecia quase absurda, Caio Fortuna era um tesoureiro, um empresário, um pai superprotetor, não um assassino, ao menos era o Aurora imaginava.
- Madre, meu pai não é bandido! Ele é um homem honesto, sabem disso ou jamais teriam me aceitado aqui!
Aquele convento tinha regras severas para aceitar estudantes, necessariamente deveriam se meninas de famílias católicas e praticantes, todos os indivíduos da família deveriam ser batizados e crismados, os pais deveriam ser casados na igreja e não divorciados. A família de Aurora não atendia a nenhum dos requisitos, mas Caio Fortuna era rico e influente, foi o bastante para que o pequeno bebezinho de olhos azuis acinzentados fosse recebido naquela noite de inverno dezessete anos atrás.