I-3

2148 Words
Quando chegamos ao hospital de Tarso estou claramente pálido no rosto, tanto até para arriscar de ser confundido como um paciente. Fatih pede informações a um enfermeiro de passagem: sigo ao meu companheiro de aventura, arrastando os pés durante algumas extensas caves até a um gélido salão. O anatomo-patologo torce impercetivelmente o seu nariz aquilino quando mostro o salvo-conduto da embaixada. Em todo o caso faz-me assinar uma série de papéis, se calhar desejoso para desembaraçar-se do cadáver. Levanta-se, passa-me duas cópias do relatório médico, por conseguinte aperta-me a mão, depois o braço e outra vez a mão. Estranho modo de despedir-se. «Estes documentos são para entregar às alfândegas para levar o cadáver consigo para a Itália», traduz Fatih, depois acrescenta: «O caixão está fora no automóvel e voltará com o tal para Ankara». Muito grato pela tradução e pela ajuda, abraço-o: estou habituado pelas viagens no ciclomotor; tento enfiar 100 euros no seu bolso. O engenheiro fica ofendido pelo gesto. «Não... Fi-lo com prazer, faça chegar os meus cumprimentos à Chiara, melhor não, diga a ela se quiser para me contactar. Eu não a quero incomodar, mas se ela... Este é o meu número». «Realmente, eu não sei como te agradecer, de tudo. UMA saudação igualmente a...tua mãe.» Fora estaciona uma ambulância: imagino que contenha o cadáver. Movo-me para subir, quando dois energúmenos com o aspeto pouco recomendável chegam perto de mim. Tento distanciar-me. Os dois seguem-me resmungando frases incompreensíveis, empurram-me para frente de uma descomposta furgoneta branca: é aquele o meio de transporte designado. Na parte posterior descoberta vejo o caixão. Os dois fulanos, levantando-me literalmente com todo o peso, forçam-me para subir atras junto do féretro; eles acomodam-se a frente. A terrível viagem de ida da noite anterior foi um passeio relativamente a esta: lá estava cheio de fumadores e devia viajar com a cabeça fora, aqui estou ao ar livre, sozinho e com um morto ao lado! O caixão, amarrado com laços de sorte, aparenta que possa sobressaltar por cada buraco; permaneço escondido pela parte oposta: não ouso aproximar-me. Tenho o terror absurdo de encontrar-me cara a cara com o cadáver: depois que deixei, contra a vontade, o trabalho na Universidade, não quis mais rever o professor vivo, imaginemos morto! Repenso no dia passado e naquele que me espera: o único pensamento de voltar às alfândegas cria calafrios, por outro lado a incumbência que me confiou o diretor da faculdade de Letras é trazer de volta à Itália os despojos mortais. Enfatizo este axioma pela forma como fui transportado durante o longo trajeto, enquanto o vento batia-me forte. Domingo, 18 de julho São mais ou menos três da noite quando a furgoneta imobiliza-se. Temo que queiram deixar-me ali, no meio do nada. Os dois descem e dirigem-se à minha pessoa numa obscura língua. O mais pequeno, ou melhor o menos gordo, repete a mesma frase fazendo amplos gestos com as mãos: intuo que tenha de descer. Sigo os dois até a um casebre em ruinas: é uma espécie de zona de paragem, gestão entre o familiar e o esquálido. Corro de imediato para a casa de banho. Eis o que se entende por casa de banho à maneira turca: uma nojenta latrina fedorenta, sem wc. Pois dentro aquilo que, eufemisticamente falando, deveria ser o bar: uma mulher balofa prepara uma estranha bebida, enquanto aqueles dois companheiros de viagem estão sentados numa mesinha absorvidos a fumar e a beber uma enorme caneca de cerveja. Aproveito para tomar o pequeno-almoço, evitando de notar que o condutor esteja a beber de manhazinha. Bebo aos goles e lentamente o infinito café comprido fervente, acompanhado por uma fogaça recheada por um estranho salame, mesmo ao calor: o sabor não é o máximo, mas a fome é tanta, tendo saltado o jantar pela repentina partida de Tarso. Passa mais ou menos meia hora antes que os dois terminem de tragar uma outra cerveja e decidem voltar a subir na furgoneta. Aquele menos bêbado oferece-me um velho cobertor: o ar era quente quando tínhamos partido, agora é aquele pungente típico das primeiras horas do dia. É a primeira perspicácia pelo que me diz respeito: abandonado na parte posterior da furgoneta, tinha-me até agora sentido como um roda sobressalente. Ao romper do dia chegamos em Ankara; estou ainda estouvado pelo ar e pela estrada, quando os dois turcos descarregam integralmente o caixão da furgoneta para passá-lo a um grupinho de alfandegários. O tenente Karim ordena-me para deixá-lo ali e voltar no dia seguinte para retirá-lo com os documentos da embaixada: não me agrada certamente aquele tipo! Agradeço aos dois transportadores com uma lauta gorjeta, que eles não rejeitam, enquanto despeço-me do Barbarino, recolocado numa espécie de garagem na cave dos escritórios alfandegários. Fico assolado pela fadiga. Diante do aeroporto vários hotéis brilham ao resplendor do dia que começa. Escolho o único com a indicação de quatro estrelas na insígnia: o Hotel Esenboga Airport. Será muito caro, mas não importa: o diretor de Siena tinha prometido que iria reembolsar todas as despesas, se conseguir trazer de volta ao solo pátrio o exímio colega. Depois de duas noites passadas viajando, m*l chego no quarto “desfaleço” na enorme cama. Desperta-me o som do celular esquecido ligado: são seis! Quem pode por acaso ligar a esta hora? «Olá, sou Chiara Rigoni. Recebi uma comunicação das alfândegas que dizia que voltaste com os despojos mortais: teria que te explicar uma serie de coisas por fazer.» Dou-me conta pela luz filtrada pelas cortinas que são claramente seis, mas da tarde. Tento restabelecer-me: «por que não deixemos para mais tarde, se calhar comendo uma coisa juntos?» «Está bem» Responde Chiara, depois de uma breve hesitação. «Existe um restaurante no centro da cidade: nos vemos ali as 9:30. O endereço é Izmir Caddesi 3/17.» «Podes repetir?» Pergunto ainda um pouco entontecido. «I-Z-M-I-R-C-A-D-D-E-S-I 3/17» diz silaba a silaba. «Sim, já escrevi. Qual é a hora conveniente para o encontro? «21:30-22, enfim para jantar» rebate ela. Na Turquia todos eles devem ter horários, de qualquer modo depois do pequeno-almoço às três e à espera de um jantar noturno, consomem de seguida um pacote de amendoim e um sumo de frutas encontrado no minibar-frigorifico. Recuperadas as forças, tiro da bolsa de documentos o decalque da inscrição feito no monte Tauro; desdobro-o com atenção e começo a traduzir à primeira vista do grego: “Giuliano, deixado o Tigri pela corrente impetuosa, aqui jazeu: Foi bom imperador e valoroso guerreiro.” “Jazeu”, “jazeu”. Tal verbo ao passado, ao invés do usual presente, implica apenas uma coisa: já no momento da inscrição, o corpo, ou o que restava, não estava mais ali! Pois a epígrafe estava colocada sobre um cenotáfio: um monumento erguido para recordar a sepultura de um ilustre homem, mas cujos espólios estão enfim algures. Mas onde? Mesmo para desfazer-me deste pensamento, decido ir ver a famosa coluna historiada erguida na cidade para o Apostata. Visto-me às pressas, saio do hotel e chamo o primeiro táxi: «Can you drive me to the place of Julian’s column?» «Ah, eh...» Responde o jovem taxista com um olhar atónito. Contudo a praça é famosa pela coluna de Giuliano, a única da época romana ainda in situ. Faço um gesto ao limite do obsceno para mimar a coluna: de qualquer forma o rapaz interpreta corretamente a mimica e parte à toda a velocidade. «Ulus, ulus» repete incompreensível o e******o taxista. Deixa-me numa praça anonima circundada por prédios modernos; no meio sobressai a coluna, com uma altura de 10-15 metros: sobre ela estão afigurados episódios da vida de Giuliano. Giro em volta admirando as várias cenas, até ficar abalado por baixo-relevo de um cortejo fúnebre do defunto imperador Costanzo. Atras do cadáver distendido sobre uma carroça, abrem a procissão dois personagens coroados: ao que me lembro, os estudiosos identificaram-nos com Giuliano e o outro, por dimensões maiores, com o deus Hélios. Agora, à luz da descoberta da epígrafe e da tumba vazia, presumo uma interpretação alternativa: se toda a cena não representasse o cortejo fúnebre de Costanzo, mas a cerimonia de trasladação do corpo do Apostata? Se calhar na coluna que afigura os episódios salientes da sua vida, quiseram recordar igualmente a sua extrema viagem! No caso, Giuliano não seria aquele em pé, mas o corpo distendido, enquanto os personagens coroados que seguem-no poderiam ser o novo reinado Valentiniano e a figura mais pequena o seu irmão Valente. Possivelmente o tinha intuito mesmo o professor, creio certamente ao poder afirmar algo que os antigos autores não nos transmitiram: chegados em Tarso, Valentiniano e Valente não se limitaram a prestar homenagem à tumba do ilustre predecessor, levaram-no. Provavelmente reputaram que não pudesse ser aquele o lugar adequado para acolher os restos mortais de um imperador [se calhar temiam ter o mesmo fim: sepultados numa esquecida esquina da Turquia mais montanhosa]. Por isso tinha feito erguer junto do rio Cidno o cenotáfio com a inscrição achada pelo professor, e simultaneamente ordenado para transportar o corpo de Giuliano para um lugar mais adequado. Mas onde? Não consigo livrar-me daquele quesito da cabeça, nem sequer enquanto me dirijo a pé para o centro da cidade; chego ao lugar do encontro às 20:30, em pura antecedência. Don Castillo: o nome do restaurante pré escolhido não deixa pensar a uma taberna típica. Ponho-me a sentar sobre o degrau externo do estabelecimento: vejo passar mulheres geralmente cobertas por um comprido burka preto. Chiara, com os seus tacões de ordenança, chega depois de uma hora e um quarto: «Já estás a um bom tempo à espera?» «Não» Respondo levantando-me e esticando as pernas já anquilosadas. «É bom revê-la.» «Vamos.» Caminhamos de braço dado. O estabelecimento é escuro, não vejo bem o que estou a comer, se calhar é melhor assim: os nomes dos pratos são abstrusos e com a desculpa da surpresa e de fazer-me degustar a cozinha turca evita ela de me informar senão após de ter acabado a porção na totalidade. Ela pediu carne preparada de todas as maneiras e de todos os tipos: espero que se trata apenas de vitelo e não de outro qualquer animal estranho. Devo cumprir uma incumbência, embora contra a vontade: «Aquele teu amigo foi gentil, ajudou-me muito». «Sim, ele é sempre gentil, com todos» Replica fria. «A propósito de Fatih, agradar-lhe-ia ouvir a tua voz, mas não quer incomodar-lhe.» Dou-lhe o folheto: «Deu-me o número dele do celular e disse... Em suma ficaria contente se tu...» «Obrigada,» interrompe ela, «mas não, fica com o número, pode servir mais a ti!» Não insisto, evidentemente, eu toquei um assunto delicado: «então, o que tinhas para me esclarecer para o dia de amanhã?» A Chiara elenca ao detalhe as várias passagens. Primeiro a embaixada as 8: tenho de buscar um documento e mandar pôr um visto nos documentos do hospital de Tarso, assim para poder reaver o passaporte, por fim um voo especial as 11. A senhora não estará, mas espero não ter complicações. Os meus sinceros agradecimentos. «Foi um prazer» Diz com um sorriso que para mim parece malicioso. Segunda-feira, 19 de Julho A embaixada por fora é como se imagina uma embaixada: grande, branca, com aquele ar de casarão em estilo vitoriano de certas zonas campestres dos Estados Unidos do sul. Espero que seja um patrão na companhia de escravos, sou recebido por um manager com a secretaria e pouco tempo para mim. Entrego os documentos da morgue, a secretaria folheia-os descuidadamente: carimba-os, al agrafa por cima um salvo-conduto e resolve igualmente com uma certa rapidez os processos burocráticos. Mesmo nas alfândegas as coisas fluem melhor do que a ida. Não está o temível funcionário da sexta-feira, mas um mais cortes: volto finalmente a ter na minha posse o passaporte; farei futuramente uma fotocópia dos documentos antes de partir (nunca se sabe). Acompanham-me, ou melhor escoltam-me, até deixar-me subir no “avião especial”: na verdade um cargueiro para transportar mercadorias, curto e atarracado. Suponho que não são altas as probabilidades que consigas descolar. Subo os escadotes até alcançar uma ampla entrada na parte posterior (e não na parte lateral), através do enorme porão, carregado por um pouco de tudo; atrás de uma cortina corredia havia uma dezena de passageiros, depois a cabina de pilotagem. Os lugares não estão enumerados: ponho-me a sentar no único vazio, ao lado um senhor que me esquadrinha da cabeça aos pés, por conseguinte retoma a leitura do seu jornal. Levamos muito tempo à espera, antes que dessem a autorização da partida. Esqueci o mp3 na mala; para não pensar na descolagem extraio o relatório daquele estranho anatomo-patologo: paginas e paginas escritas à mão, em turco; no fundo da segunda cópia um resumo em inglês. Com termos médico-legal declara-se que o Barbarino morreu logo após à queda: alega-se por múltiplas fraturas descompostas e por uma fatal à nuca, mas não por um ataque cardíaco.
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