Realmente é próprio Giuliano o verdadeiro motivo que me levou a vir à Turquia: a missão oficial seria reaver os restos mortais do desditoso Barbarino, mas estou aqui acima de tudo para ver a tumba do estimável imperador, nunca achada até agora, e que o professor, um pouco antes de morrer, tinha-me comunicado de ter finalmente encontrado!
A camioneta de carreira está a percorrer expedita, uma interminável planura deserta. Adormeço imaginando de estar num daqueles filmes onde o protagonista atravessa na camioneta os Estados americanos de costa a costa.
No entanto em Ankara, o tenente Karim, aquele da interminável tarde nas alfândegas, regressa à casa onde estão à sua espera os dois filhos; a mãe deles foi-se embora há anos Aturk, o mais velho, estava atras da porta há alguns minutos e a escancara m*l sente o rumor do velho utilitário.
«Então, dão-ma?»
«Não se saúda sequer?» Contra-ataca carrancudo o pai.
«Boas-vindas, senhor tenente», diz Aturk com um tom sério disfarçado, depois rebate: «obterei?»
Karim não responde, entra em casa, coloca o casaco de ordenança no bengaleiro, pôs-se a sentar sobre uma poltrona castanha na sala de estar; o filho segue-o.
«Não me informaram nada.»
«Mas podes telefonar tu para eles? Dás-te conta do quão é importante?»
«Sei» rebate ele secamente. «Traga-me algo para beber.»
O tenente levanta-se para buscar o casaco, extrai do bolsinho interno de uma pequena agenda em pele preta, volta para a poltrona em mau estado e compõe o número: «Boa noite! Sou...»
«Não diga o seu nome!
Vem logo interrompido pela voz do outro ado do aparelho.
«Tinha-lhe dito para não ligar para mim.»
«Sim... É verdade, mas, escuta…»
A voz misteriosa conclui: «Fez aquilo que lhe tinha pedido?»
«Sim, o senhor…»
«Lho disse para não citar nomes!»
«Enfim aquele italiano: o retemos e contemos, até onde pudemos. Agora tem um salvo-conduto, irá reaver o passaporte só na segunda-feira.»
«Perfeito! Não esquecer: quando ele for a voltar para Ankara com o caixão, faça como passamos a escrito para ele.»
«Sim, lacrá-la como deve ser e incidir as letras...»
«Atenha-se às instruções» interrompe-o a voz perentória.
O tenente prossegue temeroso: «Claro. Queria saber se, como acordado, o meu filho…»
«Pode formular o pedido.»
«Portanto o senhor assegura-me que obterá…»
De novo a voz perentória: «Digo-lhe para formular o pedido: quer dizer que será acolhido!»
«Eu... Eu estou-lhe grato.»
«Adeus. E não liga mais para este número!»
«Obrigado mais uma vez, boa noite.»
A partir da cozinha Aturk volta com um passo lento e embaraçado, atencioso para não entornar sequer uma gota de um copo cheio de um vinho branco de má qualidade: «e agora?»
«Podes formular o pedido.»
Mesmo o filho não percebe a expressão: «tenho-o já preparado há meses, o pedido…»
«Já te disse para formular o pedido: o espaço é teu.»
«Obrigado, obrigado» Aturk aproxima-se ao pai como quem está para beijá-lo. Limita-se a um abraço, correspondido friamente.
«Ânimo, agora vai preparar o jantar para ti e o teu irmão.»
O tenente lentamente bebe aos goles os seu vinho, antes de ir deitar-se, satisfeito de como tinha feito naquele dia.
Sábado 17 de julho
Tinha adormecido sonhando com a Califórnia, desperto entre rumores de buzinas e um vozear incompreensível, enquanto a camioneta de carreira avança a passo do homem até à estação: Tarso parece Palermo, famoso, segundo o filme “Johnny Stecchino”, pelo seu trafego caótico.
Chego a pé ao centro, ou no mínimo imagino que o seja: passo ao lado de uma porta monumental da época romana (que seja a famosa porta onde António encontrou Cleópatra antes da derrota de Ásio?). Aqui ninguém sabe o alemão, limito-me mostrando uma folha com o endereço do engenheiro pelo menos a dez pessoas: entre gestos e meias palavras em inglês, indicam uma rua que bordeja o rio Tarsus Çayi. Reminiscências clássicas lembram-me que é o Cidno, famoso na antiguidade pelas suas águas transparentes mas gélidas, tanto que Alessandro Magno sujeitou-se ao risco de morrer afogado. Agora está reduzido a um nauseabundo rio enegrecido, julgo por causa das descargas das numerosas indústrias petrolíferas da zona. Toco na morada número 60, uma espécie de palafita: abre uma senhora idosa e curvada.
«Estou a procura de Fatih Persin...» Pergunto, um pouco distraído, na minha pátria língua.
«Italiano, venha italiano» pôs-se a sorrir a idosa mostrando os poucos dentes que sobram e acenando para entrar. Depois foge subindo pelas escadas.
Esta casa é estranha: põe-se metade sobre o rio, é desprovida de objetos ou mobílias especiais, mas é original, no seu género. Acomodo-me sobre (numa cadeira encarnada em madeira com o assento em palha entrelaçada. O cheiro do guisado de carne cozido a fogo lento impregnou toda residência.
Desce da cambaleante escada encostada a uma a******a sobre o sótão um homem dos seus quarenta anos, alto e magro, muito alto e bastante magro: «Bom dia, sou Fatih» aperta-me a mão e enquanto diz algo em turco à mulher.
«Sou Francesco Speri, foi a Chiara que me deu o seu endereço... Chiara...» esqueci-me do apelido.
«Rigoni» completa um pouco espantado Fatih. «Em que posso ser-te útil?» O engenheiro fala com alguma dificuldade a língua italiana, mas nos entendemos; no momento em que acomoda-se, chega a mãe, creio que seja no mínimo, com uma bandeja e duas chavenazonas de café. O aspeto é pouco convidativo: algo flutua ali dentro e o cheiro é áspero, sim áspero, não amargo.
Faço um gesto de agradecimento, pegando na mão a enorme chávena. «A Chiara disse que podia pedir ajuda ao senhor: tenho que seguir o caminho ao longo do rio em direção ao monte Tauro. Nalgum lugar ali o meu professor de arqueologia estava fazendo algumas escavações, quando…»
«Não como café italiano, verdade? É limão dentro» esclarece Fatih notando o meu ar suspeitoso. Pôs-se a sorrir: «não problema, hoje sábado e posso ir contigo lá com moto».
Aceito a ajuda, não antes de ter tragado aquela espécie de limonada fervente que sabe a café.
Parte-se num ai, sem capacete. A moto na verdade é um ciclomotor: não passa os 30km por hora, mas mesmo neste caso, não estando a conduzir, é como se fosse um avião! A estrada é extensa e tortuosa: a cada curva agarro mais forte o coitado condutor; cria em mim um certo embaraço, mas o medo de ser despejado para fora é maior. Aquela espécie de carroceiro parece não terminar de forma alguma, depois de um momento para o outro Fatih trava: notou alguns letreiros que sinalizavam trabalhos em curso. Deixamos o ciclomotor e prosseguimos a pé até a uma altura degradante: é o sítio escavado pelo professor.
Coitado Giuliano: sepultado numa desambientada charneca de montanha, longe daquele fabuloso mundo sobre o qual reinara. Realmente não tinha sido uma sua escolha: odiado por habitantes de Antioquia, donde tinha partido para a expedição na Pérsia, tinha estabelecido um compromisso consigo mesmo que ao regresso estabelecer-se-ia em Tarso, em vez de rever os antioquenos. Não voltou vivo daquela guerra. Os seus oficiais, como extrema forma de respeito, decidiram sepultá-lo onde tinha-se estabelecido para permanecer naquele inverno: um longo, interminável, inverno.
Escavando não se pode aceder, foi entrincheirado com um rudimental arrame farpado. Aproxima-se um homem, azafamado a segurar com uma mão um enorme chapéu feito de palha. Parece desconfiado, mas m*l nomeio Luigi Barbarino abre para nós, apresentando-se como o assistente do professor. O sol bate implacável. Faz um sinal para o seguirmos até uma espécie de um armazém: vejo amontoados fragmentos de vasos antigos, ossos de animais, também panelas e roupas emporcalhadas. Naquele armazém, coberto de chapas de alumínio e repleto de poeira, aquele tipo estranho não só ali trabalha, mas creio que ali dorme e passa as refeições.
Gostaria de ter informações sobre a incrível descoberta do Apostata. Com ar compungido peço-lhe primeiro, servindo-me da tradução de Fatih, notícias do professor.
A expressão do meu “intérprete” torna-se preocupada e depois sombria, por outro lado não tinha feito a tempo para lhe dizer da morte do “ilustríssimo”: «Diz que encontrado morto professor outro sábado, ao pé de... Como dizem grande declive?»
O assistente sustenta que sexta-feira passada, antes de ir-se embora, tinha visto o eminente arqueólogo fazer alguns levantamentos no sector que estava a escavar e na manhã seguinte tinha-o encontrado pouco mais para o vale, tombado no chão. Tivera um ataque cardíaco e depois rebolara inanimado no declive. O turco não mostra-se particularmente plangente, se calhar trabalhar junto do professor deixou nele, como em mim, o mesmo efeito de desgosto. O assistente, de pequena estatura, mas de passo rápido, nos antecede no lugar do infortúnio: faz a questão de nos mostrar o ponto da descoberta.
«E aquela lá em baixo, o que é? Uma tumba?» Procuro saber.
«Sim, fazia foto ali. Muito importante: tinha achado pedra com escrita, quando ocorreu» traduz Fatih.
Subo ofegando a pequena colina, seguido pelos dois. Desabados no chão distingo os restos daquele que poderia ser um edifício fúnebre. Contudo não vejo a epígrafe que devia estar colocada à entrada. Apenas aquela pedra inscrita, achada pelo professor na semana transata (e da qual tinha-me referenciado via e-mail), pode confirmar que foi sepultado aqui Giuliano.
«E o material encontrado aqui?» Procuro saber com dissimulada desestima.
«Está no barracão onde estávamos antes, outra vez durante um tempinho, depois espera que vem funcionário do governo para levar tudo» informa-me Fatih no seu italiano incerto.
Devo acelerar os tempos.
«Deveria ir à casa de banho» Digo tocando-me a barriga.
«Existe apenas no barracão.»
«Lembro-me do caminho, podem ficar aqui, obrigado.»
Apresso-me para o barracão e começo a procurar entre um monte de gavetas: tento remover algumas, são pesados. Em cada uma está escrito algo com um marcador de um azul pálido: estariam indicadas datas e sector da escavaçao da qual provem os achados.
Que dia era aquele em que o professor escreveu para mim informando-me sobre a descoberta da tumba? Controlo a gaveta do dia 9 de julho: apenas fragmentos de reboco e de cerâmica vulgar. Obvio: a descoberta deve ter sido do dia anterior, dado que o correio eletrónico mandou-me no dia 9 de manhã, depois naquela mesma noite morreu.
Puxo para fora a gaveta do dia 8 de julho e, não deu para acreditar, encontro a epígrafe!
UM fragmento de mármore, um pouco menos de um metro de largura, gravado em grego: tenho pressa, por isso esforço-me para decifrar as letras m*l conservadas; pois tiro rapidamente algumas fotos com a inseparável Nikon.
Em seguida com uma folha em papel de seda abandonada na mesa e um lápis tento um improvisado decalque: é uma técnica rudimental mas eficaz, aprendida durante a especialização na Alemanha. Esfregando o lápis sobre a folha colocada na epígrafe, os sulcos das letras cavadas deixam um vazio: a folha afigura-se toda cinzenta, menos os espaços permanecidos brancos, que delineiam precisamente o perfil das letras gravadas.
Perdi muito tempo, volto a correr ao funesto declive: «Desculpem-me... Não sei se são as curvas da viagem, não possivelmente a narração da morte violenta do professor... Aqui estou e senti-me m*l, mas agora está a melhorar. De todas as formas, o professor está aqui?»
Os dois reparam-me confusos.
«Em suma os despojos mortais: posso levá-los comigo? Encarregaram-me para levá-los de volta para a Itália e…»
«Não. Está na morgue municipal. Sei onde fica, se quiser levo-te imediatamente» põe-se cortesmente a disposição Fatih.
Agradecemos ao assistente, que se distancia esquadrinhando-se demoradamente.
Nós subimos novamente no ciclomotor.
«Gülek Boğazi» Grita Fatih um pouco após a partida.
Entre o barulho do ciclomotor e o medo não percebo nada.
«Gülek Boğazi» Insiste indicando uma garganta natural no seio das montanhas.
Miro para baixo e percebo: são as “Portas Cilicie”, o único ponto de passagem desde a antiguidade entre a Anatólia interna e a costa. Transitou daqui Alessandro Magno: um modelo de caudilho para muitos, até para Giuliano.
«Gülek Boğazi» Enfatizo, no momento em que o despenhadeiro faz-me agarrar mais forte ao condutor.
O declive, como acontece muitas vezes, é pior que a subida: o ciclomotor aparenta não ter travões e a cada curva, mais que admirar o panorama, penso na eventualidade de ir parar no chão, em seguida, no último instante, o ciclomotor vira e se avança.