PRÓLOGO
PRÓLOGO – ANTES DA MERDA TODA
Acordei antes do mundo respirar.
Não foi o telefone. Nem alarme. Foi o costume. Maldição, talvez.
Depois de anos em zona de guerra, o corpo aprende a não confiar no silêncio. A paz soa como emboscada. E dormir sem sobressalto? Só com muito álcool ou com a cabeça completamente fodida. Eu tava tentando evitar os dois.
03h17. O visor do celular piscava: Coronel Vilela.
Já sabia o que era.
Não era visita. Não era saudade.
Era chamado.
— “Diz,” eu falei, ainda com a voz áspera.
— “Tem missão. Temporária. Cobertura pro Rezende. A mulher dele tá m*l. Teu nome foi o primeiro que ele soltou.”
Respirei fundo. Rezende era irmão. Não de sangue, mas de guerra.
Se ele pediu, eu ia. Sem mais.
— “Base aérea. Seis da manhã. Dossiê já tá no teu e-mail,” o Coronel completou.
— “É contenção. Reconhecimento. Cinco dias. No máximo.”
— “Entendido,” respondi. E desliguei.
Nada de discurso. Nada de perguntas.
Se tem uma coisa que o exército me ensinou, foi que pensar demais só atrasa o gatilho.
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Vinte minutos depois, eu já tava vestido.
Calça tática, coturno firme, camiseta colada no peito. A pele ainda carregava cheiro de ferro e nicotina. O corpo, cicatrizes que ninguém via — mas que me lembravam que eu não era invencível. Só funcional.
Na cozinha, anotei um recado rápido e larguei sobre a bancada:
“Missão urgente. Sem data pra volta. – T.”
Sem drama. Sem despedida. Quem me conhece, entende. Quem não entende, não faz falta.
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A base estava fria, mesmo no verão.
Clima de guerra é assim: o ar congela até em deserto.
Os novatos me olharam como se tivessem visto um fantasma.
Pra eles, Thales Montenegro era lenda viva.
Pra mim, eu era só um cara cansado fingindo que ainda dava conta.
— “Pronto pra guerra, Montenegro?” — o Coronel soltou com aquele sorriso cínico.
— “Não sei fazer outra coisa.”
Ele me passou a pasta.
Equipe nova. Só metade conhecida. Equipamento padrão.
Missão rápida, sem heroísmo.
Contenção. Observação. Entrar, analisar, sair.
Simples.
Pelo menos no papel.
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No helicóptero, o vento batia como tapa de realidade.
Coloquei o capacete. Testei o rádio. Chequei a arma três vezes — não porque duvidava dela, mas porque confiar demais em qualquer coisa é o caminho mais rápido pro caixão.
A vista lá de cima era bonita.
Mas beleza não me comovia mais.
Pensei no Rezende.
Pensei na mulher dele.
Pensei em como a vida arranca as pernas da gente sem aviso.
Mal sabia eu…
Mas naquela hora, eu ainda andava.
Ainda comandava.
Ainda era inteiro.
E mesmo com o peito carregado de pressentimento,
eu não fazia ideia do tamanho da queda que vinha por aí.
EU NÃO PEÇO LICENÇA -Yasmin
Acordei antes do despertador, como sempre.
Não por disciplina.
Por trauma mesmo.
Quando você cresce num lugar onde o barulho da noite pode ser tiro, tapa ou grito de vizinha, o corpo aprende a levantar antes da porrada chegar.
Abri os olhos e encarei o teto mofado do quarto. O ventilador fazia um barulho irritante, parecendo que ia se soltar a qualquer momento, mas ainda era melhor que o calor infernal de São Paulo em novembro.
Sentei na cama com o corpo pesado. Os pés doíam. A lombar reclamava. A alma? Nem sei se ainda tava aqui.
Trabalhei das dezenove às sete da manhã no hospital público do centro. Emergência lotada. Gente sangrando, gritando, morrendo.
E eu ali, correndo de um lado pro outro, segurando a vida com fita crepe e fé vencida.
Sou enfermeira. Técnica, na real.
E antes que você romantize isso… não.
Não sou anjo de jaleco. Não sou missionária da saúde.
Sou só uma mulher fodida tentando pagar aluguel e manter o pouco de sanidade que restou.
Meu nome é Yasmin. Tenho vinte e cinco anos e uma coleção de traumas que daria pra escrever uma novela mexicana — daquelas que ninguém quer reprisar.
**
Fui criada por uma mãe que amava errado e um padrasto que batia certo.
Fui expulsa de casa com dezessete, grávida de um filho que perdi dois meses depois.
Morei em república, em pensão, em hospital abandonado com outras três meninas que, como eu, só queriam sobreviver.
E sobrevivi.
Na marra.
Na unha.
No grito.
Hoje moro num cubículo alugado no Capão Redondo, divido parede com traficante, vizinha barulhenta e um boteco que nunca fecha.
Mas é meu.
É pouco, mas é meu.
**
Tava lavando uma calça no tanque quando o celular tocou.
Número privado. Quase não atendi.
Mas algo me mandou atender.
— “Yasmin Tavares?”
— “Ela mesma.”
— “Aqui é do Hospital Central. Temos um chamado emergencial. Perfil restrito. Paciente de risco.”
— “Diz logo o que é. Não tenho tempo pra enrolação.”
Do outro lado, silêncio por dois segundos. Depois, a voz voltou firme:
— “Homem. Ex-militar. Recluso. Recusa tratamento. Agressivo. Histórico de trauma severo. Já trocou quatro enfermeiras.”
— “E o que tem a ver comigo?”
— “Sua supervisora indicou seu nome. Disse que você não aceita desaforo. Que tem pulso.”
— “Tenho mesmo. Mas não sou babá de macho surtado.”
Mais silêncio.
— “Pagamento em dobro. Contrato sigiloso. Carga horária flexível. Você só precisa ir até ele.”
Suspirei. Olhei pra calça pingando no tanque. Pro chão molhado. Pro ventilador caindo aos pedaços.
E então pensei: pior que o que eu já encarei… impossível.
— “Manda o endereço.”
**
Desliguei e fiquei ali parada, com o celular na mão e o coração batendo estranhamente acelerado.
Algo nessa ligação me deu um frio estranho.
Como se eu tivesse acabado de aceitar algo que vai mudar minha vida inteira.
Mas eu não recuo.
Não aprendi a recuar.
Aqui onde eu nasci, quem hesita morre.
**
Passei o resto do dia em silêncio.
Revirei as roupas mais decentes. Preparei a bolsa de emergência.
Tentei descobrir algo sobre o tal paciente. Só consegui o básico: homem, trinta e poucos, nome não revelado, mora numa mansão afastada, completamente recluso desde um acidente.
Acidente.
A palavra grudou na minha mente.
Não sei o que ele perdeu. Mas sei que ninguém se isola assim sem ter deixado algo importante pra trás.
E se tão dizendo que ele é agressivo, explosivo, impossível…
Mal sabem o tipo de gente que eu já enfrentei.
Me mandaram pra cuidar de um monstro?
Mal sabem que o monstro sou eu.
**
Naquela noite, dormi pela primeira vez com um pressentimento real:
a minha vida vai mudar.
Não sei se pra melhor.
Não sei se vou aguentar.
Mas uma coisa eu garanto:
Se ele tentar me quebrar, vai ter que resistir à mulher que aprendeu a sobreviver com o coração em ruínas e a alma em chamas.
Na manhã seguinte, fui até o Hospital Central assinar o contrato.
O céu estava cinza. O tipo de cinza que não avisa se vai chover ou sufocar.
Peguei dois ônibus e ainda caminhei sete quadras até a entrada dos fundos. Porta dos funcionários. Ninguém ali usava salto, maquiagem ou sorriso.
Fui recebida por uma mulher de jaleco branco e cara fechada. Tinha o olhar cansado de quem já viu muita merda de perto — e não confia mais em nada.
Ela me levou pra uma sala minúscula, com uma mesa de metal e uma cadeira torta. Jogou o contrato na frente como quem diz assina logo e boa sorte.
— “Contrato emergencial. Pagamento em dobro. Carga horária flexível. Permanência indefinida. Você vai pra casa do paciente.”
— “Que paciente?” — perguntei, puxando a caneta.
Ela hesitou.
— “Thales Montenegro.”
Parei.
Esse nome tinha peso.
Não só pelo som. Mas pela maneira como ela disse. Como se cada letra arranhasse por dentro.
— “Ele é o quê? Milionário psicopata? General aposentado? Demônio encarnado?”
Ela não riu. Nem reagiu. Só falou baixo:
— “Ele era soldado. Oficial do exército. Sofreu um acidente… dos feios. Desde então, mora sozinho numa mansão afastada, completamente recluso. Não aceita ajuda. Não aceita visita. Já expulsou quatro profissionais antes de você.”
— “Expulsou como?”
Ela desviou o olhar.
— “Com palavras. Com ameaças. Com o olhar. E com o tipo de dor que não aparece no laudo.”
Assinei mesmo assim.
Nome completo. Data. CPF.
Tudo ali, carimbado em papel. Como se isso fosse me proteger de alguma coisa.
— “Amanhã de manhã, um carro vai te buscar. Leva só o necessário. O resto… você vai descobrir lá.”
Ela se levantou. A reunião tinha acabado.
Mas antes de sair, parou com a mão na maçaneta. Me olhou de canto, com uma expressão que me travou no lugar.
— “Yasmin…”
— “Fala.”
— “Só não entra nessa achando que vai fazer diferença.”
— “Por quê?”
Ela demorou. E quando falou, parecia carregar anos dentro da garganta:
— “Porque ele não ficou só paraplégico.”
— “Ele ficou… perigoso.”
— “Perigoso como?”
Ela mordeu o lábio. Depois encarou o chão.
— “Como alguém que perdeu o corpo… mas não perdeu a raiva.”
— “Como alguém que queria morrer… mas sobreviveu só pra destruir tudo em volta.”
— “Ele era um homem. Hoje ele é outra coisa.”
Silêncio.
Saí da sala com as palavras dela ainda grudadas na pele.
Na rua, o céu desabou. Chuva grossa, pesada, daquelas que não avisam — só caem.
E eu fui andando mesmo assim, encharcada, com os passos pesados, com a cabeça em guerra.
No peito, um aviso que ninguém disse.
Mas que eu sentia.
Eu tava indo pra dentro da toca de um animal ferido.
E o problema de tentar curar uma fera… é descobrir que às vezes ela morde quem chega perto demais.
INQUEBRÁVEL não é só o título. É o grito.
Esse livro é sobre um homem que já teve tudo — força, farda, fôlego.
E um dia, acordou com o corpo inteiro… mas em guerra.
Perdeu os movimentos das pernas.
E junto com eles, perdeu o chão, o controle, e tudo que dava sentido à palavra “homem”.
E antes que você imagine um mocinho paciente, calmo, pronto pra recomeçar… esquece.
Thales ficou amargo. Fechado. Impaciente com a vida, com os outros e principalmente com ele mesmo.
Porque ninguém ensina como continuar vivendo quando seu próprio corpo te abandona.
Ninguém prepara o orgulho pra depender de cadeira de rodas.
Pra engolir a raiva.
Pra pedir ajuda.
Esse livro é sobre isso.
Sobre a fúria da impotência.
A vergonha que ninguém fala.
A solidão de não se reconhecer mais no espelho.
Yasmin não chega como cura.
Ela chega como colisão.
Porque também foi quebrada.
Porque sabe o que é lutar sozinha.
Porque não tem medo de dor — já vive nela há anos.
E o que nasce entre os dois não é romance.
É sobrevivência.
É confronto.
É uma guerra entre duas almas feridas que, por algum motivo, não desistem uma da outra.
INQUEBRÁVEL é sobre levantar sem saber como.
É sobre reaprender tudo: andar com o olhar, tocar sem mãos, amar com cicatrizes abertas.
Não é leve.
Não é bonito.
É visceral.
E verdadeiro.
Porque o corpo pode parar.
Mas quando a alma decide resistir…
ninguém segura.