capítulo 1 Thales

1469 Words
THALES – DIAS ANTES DA QUEDA A garrafa já ia pela metade. O charuto queimava devagar entre meus dedos. E o silêncio da madrugada era o único som que eu respeitava. A varanda da cobertura dava vista pra cidade inteira. São Paulo acesa, fedida, pulsando caos — igual eu. Lá embaixo, a vida acontecia. Aqui em cima, eu só assistia. Naquela noite, não tinha missão. Não tinha farda. Não tinha guerra de verdade. Só as que moravam em mim. Tirei a camisa. Deixei o vento bater no peito suado. Estava quente. Corpo quente. Mente fria. Mistura perfeita pra fazer merda. Peguei o celular. Três chamadas perdidas. Uma mensagem da assessoria. Duas da amante da semana. Ignorei todas. Mulher demais cansa. Mentira demais pesa. E eu não sabia mais separar uma coisa da outra. O copo encostou na boca. O uísque desceu como se abrisse espaço pra respirar. Mas nem isso resolvia. Porque o problema nunca foi o álcool. Foi o que vinha depois dele. A raiva. O vazio. A lembrança do que eu era antes da farda. Antes do sangue. Antes de me tornar um homem que nem eu reconhecia. A verdade? Eu não tava vivo. Tava sobrevivendo com luxo. Um fantasma bem vestido. A fumaça do charuto subiu devagar. Me lembrou minha mãe dizendo que tudo que sobe… uma hora cai. Eu ri. Cínico. Áspero. Pronto pra desafiar o destino. (...) — “Hoje eu não quero pouco. Quero barulho.” — falei no viva-voz, com a garrafa na mão e a paciência no chão. — “Quero o tipo de noite que faz a vizinhança rezar pra polícia bater.” Do outro lado da linha, o riso veio na hora. — “Diz aí, general... vai rolar operação hoje?” — “Vai rolar carnificina,” respondi. “Traz bebida, mulher, música alta e cigarro barato. Quero cheiro de pecado nessa casa até amanhã.” Desliguei sem esperar resposta. Eles viriam. Sempre vinham. Era assim. Quando o peito apertava, eu explodia no exagero. Quando o silêncio ameaçava engolir, eu metia som alto e gente vazia na sala. E fingia que tava tudo bem. Abri a segunda garrafa. Acendi outro charuto. Deitei no sofá sem camisa, pernas abertas, cabeça pesada. O relógio marcava meia-noite. O céu, limpo. A alma, podre. Bati a cinza no chão mesmo. Olhei o celular. A foto de perfil ainda era da última missão. Farda. Arma no peito. Medalha no canto. Mentira estampada. Eu era a p***a do soldado perfeito. Por fora. Por dentro, só entulho e ressaca existencial. Porque ninguém via o que eu engolia calado. Ninguém ouvia o que ainda gritava na minha cabeça quando as luzes apagavam. O povo achava que eu era só mais um ex-militar cheio de história de glória. Mas ninguém perguntava o que ficou depois da missão. Ficaram os rostos. Os gritos. As decisões que eu tive que tomar olhando no olho de alguém. Gente demais morreu com meu aval. Soldado demais tombou porque eu mandei avançar. Inocente demais virou dano colateral. E eu? Eu voltei. Com as medalhas no peito… e o inferno na memória. Já fiz mãe chorar de um lado e pai se orgulhar do outro. Já fui chamado de herói e de assassino na mesma missão. E o pior? Nem sei mais quem eu sou no meio disso tudo. Às vezes, eu sonho com aquele garoto que queria entrar pro exército pra “fazer a diferença”. Hoje eu só queria que ele não tivesse existido. A farda protegeu meu corpo. Mas destruiu minha alma. E agora, tudo que sobrou… É esse homem aqui. Bebendo sozinho. Fumando a própria culpa. Chamando os outros pra festa como quem implora por esquecimento. Porque o silêncio dói mais que tiro. E eu… eu já tomei mais tiro emocional do que o corpo aguenta. Me chamaram de covarde por ter pedido dispensa. Mas ninguém viu o dia em que ela me encarou. A mãe. Aquela mulher pequena, magra, cheia de raiva no corpo e morte nos olhos. Ela veio até a base com a camisa ensanguentada do filho nos braços. Treze anos. Um tiro na barriga. Estava no lugar errado, na hora errada. A bala? Da nossa operação. Disseram que foi acidente. Dano colateral. Mas ela não quis saber. Ela me olhou como se eu fosse o próprio demônio. Cuspiu no chão, apontou o dedo na minha cara e gritou: — “Você matou meu menino!” E eu… eu não consegui responder. Porque ela tava certa. Talvez eu não tenha puxado o gatilho. Mas fui eu quem mandou invadir. Fui eu quem aprovou a entrada. Fui eu que não revisei o perímetro. Fui eu. E desde então, eu ouço aquela voz. Toda noite. Na cama. No banho. No espelho. O menino aparece nos meus sonhos. Deitado. Frio. Olhos abertos, perguntando: “Por quê, senhor?” E eu não sei. Não sei até hoje. Aquele dia me tirou a honra, a paz, a missão. Eu larguei tudo. Me afastei com o mínimo de dignidade que me restava. Preferi sair como “instável” do que continuar como máquina. Hoje dizem que virei empresário. CEO de uma empresa de segurança privada. Treinamento de elite. Consultoria pra operações especiais. Falo bonito, uso terno, assino contratos. Mas por dentro? Eu sou só o soldado que matou o filho de uma mulher que ainda me assombra. E a verdade? Não foi o exército que me quebrou. Foi o olhar dela. A campainha tocou. Abri a porta com o copo na mão e o peito aberto. — “Demoraram.” — “Tava selecionando as melhores, p***a,” respondeu Breno, o mais cafajeste do grupo, entrando com um cooler na mão e dois sorrisos pendurados no braço. As mulheres vieram atrás. Altas, maquiadas, cheias de curvas e malícia no olhar. Perfume doce, decote profundo, risada ensaiada. Cada uma pronta pra uma noite de exagero e esquecimento. — “Essa casa tá muito quieta, Montenegro,” soltou uma delas, encostando em mim. “Vamos sujar isso tudo com prazer?” — “A festa é de vocês,” respondi, com a voz baixa e suja. “Eu só forneço o campo de batalha.” Logo, a música subiu. O uísque virou água. O sofá virou palco. O chão, pista de dança. E a sala, puteiro de luxo. Corpos colados, bocas na minha, mãos no meu peito, risos nos meus ouvidos. Bebi de uma, beijei outra, mordi a terceira. Perdi a conta de quantos corpos esbarraram no meu. De quantos gemidos ouvi sem saber o nome de quem soltava. Uma sentou no meu colo, rebolando ao som do grave. Outra me puxou pela nuca e sussurrou: — “Hoje você vai esquecer de tudo.” Mal sabia ela… que eu só fazia isso porque já tinha lembrado demais. E entre um gole e um beijo, entre uma dança e um amasso, eu continuava vendo: o rosto do garoto. o grito da mãe. o sangue na calçada. a culpa queimando feito ácido. Mas ninguém ali sabia. Pra eles, eu era o Montenegro. O fodão. O gostoso. O ex-militar que agora vivia como rei. Só eu sabia da verdade. Eu era um homem tentando morrer por dentro enquanto fingia estar vivo por fora. E naquela noite, a festa era só mais um jeito de se afogar… sem deixar o corpo submergir. Acordei com a boca seca e o gosto de ressaca grudado na língua. O quarto fedendo a sexo, bebida e cigarro. O sol entrava torto pela fresta da cortina. Luz demais pra quem queria continuar no escuro. Na cama, duas mulheres nuas. Uma com a perna jogada em cima de mim. A outra abraçada no travesseiro, com a maquiagem borrada e um sorriso torto nos lábios rachados. Nem lembrava o nome de nenhuma. Afastei o braço da primeira com cuidado. Levantei devagar, como quem levanta de um campo minado. A cabeça latejava. O estômago revirava. O peito… vazio. Olhei em volta: garrafas no chão, taças viradas, camisetas jogadas, calcinha na maçaneta. O espelho do armário refletia um homem de cueca, suado, marcado de batom e com os olhos de quem já morreu por dentro. Era eu. Peguei um cigarro da mesa, acendi. Traguei fundo. O primeiro do dia. Ou o último da noite que não acabou. Sentei na beirada da cama, olhando pras duas. Belas. Entregues. Vazias como eu. — “Parabéns, Montenegro…” — murmurei com desdém. — “Mais uma noite de merda pra coleção.” Passei a mão no rosto, tentando afastar o cansaço da alma. Mas não saía. Nunca saía. A festa tinha acabado. Mas o peso? Esse só começava. E no fundo, eu sabia… Era questão de tempo até alguma coisa — ou alguém — me cobrar essa vida que eu tava tentando enterrar no luxo e na luxúria.
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