Levantei.
Andei nu até o banheiro, com o cigarro ainda entre os dedos.
A água caía quente, escorrendo pelo corpo como se tentasse arrancar alguma culpa.
Mas culpa não sai com shampoo.
Culpa gruda.
Encostei as duas mãos na parede fria do boxe. Fechei os olhos.
A fumaça do cigarro no canto da boca.
A água no rosto.
E os fantasmas... esses nunca me deixavam sozinho.
Fiquei ali uns bons minutos. Respirando. Morrendo mais um pouco por dentro.
Quando saí, o quarto ainda estava na mesma cena: duas mulheres, uma bagunça e o cheiro azedo da noite passada.
— “A festa acabou,” avisei, andando até o closet e pegando uma calça de moletom.
— “Já?” — uma delas resmungou, espreguiçando como se tivesse direito à permanência.
— “Já. Veste a roupa e desce.”
— “Você nem vai tomar café com a gente?” — a outra perguntou, rindo, enrolada no lençol.
Virei devagar, com o olhar duro.
— “A cama foi favor, não contrato.”
As duas se entreolharam, riram, e começaram a juntar os restos da dignidade.
Enquanto elas se vestiam, uma ainda teve a ousadia de se aproximar.
Chegou perto, ficou na ponta dos pés, e deixou um beijo no canto da minha boca.
— “Até a próxima, general…”
Não respondi.
Só fechei a porta do quarto assim que saíram.
**
Na cozinha, tia Lara já estava com a xícara na mão.
Camisa de botão, cabelo preso, olhar sério.
Era o oposto da minha mãe — e, por isso mesmo, a única que sobrou da família.
— “Tá cedo pra esse fedor de festa,” ela comentou sem tirar os olhos do jornal.
— “É minha casa,” respondi, pegando o café e servindo no copo mesmo, sem frescura.
— “Mas é meu pulmão,” ela retrucou. “E esse cheiro tá me dando enjoo.”
Dei um meio sorriso, o único que conseguia de manhã.
Tia Lara morava comigo desde que a mãe morreu.
Não por pena.
Por dívida.
Ela cuidou da minha mãe quando o câncer levou o resto que a vida não tinha destruído.
E agora cuidava da casa — e, de longe, de mim.
— “Vai sair hoje?” ela perguntou.
— “Talvez.”
— “Só tenta não voltar com mais duas desconhecidas e um trauma novo, tá bom?”
Ela disse sem ironia, sem drama.
Só com a verdade nua e crua, do jeito que a gente se tratava.
Levantei a caneca.
Bati de leve na beirada da pia.
— “Prometo nada.”
Peguei a chave do carro em cima da bancada.
O alarme piscou na garagem.
Audi preto, blindado, motor nervoso.
Presente que me dei depois do primeiro contrato milionário.
— “Vai onde?” — tia Lara perguntou da cozinha.
— “Resolver merda,” respondi sem olhar pra trás.
— “Só não resolve tua vida que é bom…”
Dei um meio riso.
Sem tempo pra conselho.
Desci com o sol cortando o céu.
O tipo de manhã que deveria trazer paz.
Mas em mim, só trazia pressa.
Abri a porta, entrei, liguei o som alto.
Rap batendo. Uísque no porta-copo. Cigarro já entre os dedos.
Coloquei o óculos escuro, afundei o banco e pisei no acelerador.
A cidade era meu tabuleiro.
E eu, o rei.
Passei sinal fechado.
Xinguei motorista lerdo.
Olhei pras vitrines como quem queria provocar.
Dois caras no farol me reconheceram. Apontaram. Um fez gesto de respeito. O outro, inveja.
Deixei rolar.
Era esse o papel. O Thales Montenegro que todo mundo conhecia.
Mas o cara dentro do carro…
esse tava se arrastando.
No retrovisor, vi meu reflexo.
Olhos mortos.
Rosto duro.
Postura de quem tava indo em direção a alguma coisa…
mas sem saber se queria chegar.
Estacionei em frente ao galpão dos caras.
Ali rolava tudo que não podia sair nas fotos do feed.
Farra.
Racha.
Adrenalina.
Destruição.
Saí do carro, bati a porta com força.
— “Bora fazer merda, que a vida tá muito parada!” — gritei pro grupo.
O grito voltou em coro:
— “É disso que eu tô falando, Montenegro!”
Eles riram.
Gritaram.
Brindaram.
E eu?
Eu só queria um acidente que parecesse escolha.
Os caras prepararam a pista improvisada numa estrada isolada, sem polícia, sem regra, sem freio.
Moto de um lado. BMW do outro.
Eu no meio.
Audi roncando, escapamento cuspindo raiva.
— “Vai correr mesmo, Montenegro? Tá na vibe ou só quer se matar bonito?” — alguém gritou no meio da zoeira.
Eu ri. Acelerei.
— “Hoje eu quero o mundo me engolindo pelo retrovisor.”
O povo vibrou.
Mulher subiu no capô da caminhonete, short curto, top colado, bandeira na mão.
— “Atenção, vagabundo… no três!”
Ela gritou. O som estourava.
O cheiro de borracha queimada misturava com perfume barato, álcool, testosterona.
Dois beijos no meu pescoço.
Uma mão na minha coxa.
A loira do vestido vermelho enfiou metade do corpo pela janela e sussurrou:
— “Se ganhar, eu te espero sem calcinha no banco de trás.”
Eu só ri.
— “Eu não corro por prêmio, princesa. Eu corro pra esquecer que ainda tô vivo.”
**
— “UM…”
— “DOIS…”
— “TRÊS!”
Os carros dispararam.
O ronco dos motores fez a noite tremer.
Eu pisei fundo.
Curva seca.
Velocímetro subindo.
Coração batendo no ritmo da morte.
O mundo passou em borrão.
A galera gritava nas laterais.
Fogos no céu. Música no talo.
Tinha gente filmando, vibrando.
Outros apostando se eu ia voar ou bater.
Eu ria.
Gritei dentro do carro:
— “É ISSO, p***a! VAI, VAI, VAI!”
Estava no limite da curva, no fio da sanidade, no grito do peito.
E naquele momento, eu era tudo:
raiva, dor, gasolina, carne, fumaça e ego.
**
Cruzei a linha primeiro.
Buzina. Grito. Mulher correndo pro meu lado.
Pulou no colo, me beijou com gosto de vodka e desejo.
Outro me abraçou pela janela.
— “Montenegro, p***a! O rei da pista voltou!”
A mulher se agarrou no meu pescoço como se eu fosse troféu.
— “Tá me ouvindo, campeão? Ganhei minha noite no banco de trás!” — ela gritou, rindo alto, esfregando o corpo no meu.
Dei risada.
Mas por dentro?
Nada.
Nem calor. Nem t***o. Só o gosto velho do tédio revestido de loucura.
Outro cara apareceu com mais uma garrafa.
Champanhe de luxo, roubada de alguma adega de rico.
— “Estoura essa p***a, Montenegro! Hoje é tua noite!”
Peguei.
— “Minha noite sempre é quando o mundo quer me esquecer,” respondi, e abri a garrafa com estalo seco.
Espuma voou no rosto da loira, na roda dos bêbados, no vidro do carro.
A galera gritou.
Bebeu no gargalo.
Pulou.
Dançou.
E eu ali.
No centro da euforia.
Com a alma implorando silêncio.
Acendi um cigarro. Traguei fundo.
A fumaça entrou como alívio, saiu como raiva.
— “Tu é louco, Montenegro.”
— “Não,” corrigi. “Eu sou livre. E liberdade demais… quebra homem.”
Ela não entendeu. Nem precisava.
Uma segunda mulher já encostava. Sorriso no canto, dedo no meu peito.
— “Vem comemorar direito comigo.”
Balancei a cabeça.
— “Só se me prometer que não vai tentar consertar o que tá quebrado.”
Ela riu.
Como todas riam.
Achavam charme.
Achavam pose.
Mas era só dor.
Bem disfarçada.
**
Fiquei mais uma hora.
Vi gente vomitar, t*****r no capô, brigar por causa de aposta.
O caos tava servido.
E eu? Só observava.
Estava no banco do carro, cigarro quase no filtro, cabeça tombada pra trás, ouvindo a batida grave da música como se fosse o som do meu peito falhando.
Foi quando o celular vibrou no bolso da calça.
Olhei a tela.
Coronel Vilela.
O mundo ao redor continuava em festa, mas na minha cabeça… o silêncio se instalou na hora.
Atendi.
— “Diz,” falei, voz arranhada de uísque e fúria contida.
— “Tem missão.”
Direto. Sem frescura. Sem oi.
Jeito dele. Jeito nosso.
— “Temporária. Cobertura pro Rezende. A mulher dele piorou. Teu nome foi o único que ele disse sem hesitar.”
Fechei os olhos.
Rezende era irmão.
Daqueles que não nasceram do mesmo sangue, mas que a guerra selou.
— “Base aérea. Seis da manhã. Dossiê já tá no teu e-mail,” ele continuou.
— “É contenção. Reconhecimento. Cinco dias. No máximo.”
Traguei o resto do cigarro até o amargo invadir a garganta.
— “Entendido,” respondi.
E desliguei.
Sem drama. Sem dúvida. Sem pensar duas vezes.
**
Levantei do banco, joguei o cigarro no chão e esmaguei com a sola do coturno.
A mulher do vestido vermelho ainda dançava no capô.
Me viu, sorriu, levantou o copo.
— “Vai fugir agora, campeão?”
Cheguei perto dela, encostei o rosto no dela e sussurrei:
— “O tipo de lugar que eu vou agora… mulher nenhuma segue.”
Ela franziu o cenho.
Antes que perguntasse mais, entrei no carro.
Fechei a porta. Liguei o motor.
Enquanto a galera ainda gritava meu nome…
eu já tava a caminho do fim.