CAPÍTULO 3 – YASMIN
Tem noite que a gente dorme. E tem noite que a gente volta pro inferno com os olhos fechados.
Aquela foi uma das segundas.
Não teve grito. Nem choro. Nem insônia. Só aquele tipo de pesadelo que não faz barulho, mas te suga inteira por dentro. Que te prende numa lembrança que você passou anos tentando esquecer — e mesmo assim, ela volta. Com cheiro, com gosto, com dor.
E a minha pior lembrança… era o dia que perdi meu filho.
Eu tinha dezessete anos. O corpo frágil, a mente cansada, o coração uma bagunça. Morava em uma república com outras meninas, todas perdidas, todas tentando sobreviver. Dividia colchão com uma desconhecida, banheiro com cinco, dignidade com ninguém. Não tinha casa, não tinha paz, não tinha escolha. Tinha só um quarto emprestado e um namorado que prometia amor eterno entre um tapa e outro.
Quando descobri a gravidez, o mundo girou. E depois parou. Não contei pra ninguém. Não porque queria esconder… mas porque ninguém ia se importar. Eu já sabia como o mundo tratava mulheres como eu: como lixo. E filho de lixo, pra eles, é só mais um número no abandono.
No terceiro mês, acordei com dor. Dor de rasgar. Dor que não avisa. Dor que te obriga a rastejar até o banheiro tentando acreditar que é só um susto. Sentei no vaso. O sangue escorreu quente, grosso, vivo demais.
Chamei por alguém. Ninguém ouviu. As meninas dormiam. Ou fingiam.
Me encolhi no chão imundo, tentando segurar com as mãos o que meu corpo rejeitava. Senti a vida do meu filho sair de mim… como se nunca tivesse existido. Chorei até soluçar. Até vomitar. Até desmaiar.
Não teve hospital. Não teve ambulância. Não teve "vai ficar tudo bem". Teve só o chão frio, a parede rachada e minha alma despedaçando em silêncio.
Quando acordei, horas depois, eu estava sozinha. Tinha sangue nas pernas. Sangue no chão. Sangue no meu peito. E um buraco dentro de mim que não fechou até hoje.
Eu fiquei. Mas ele não.
Desde então, carrego esse luto disfarçado de força. Esse vazio que ninguém vê, mas que me atravessa todo dia.
E não foi só isso que me destruiu.
Minha mãe morreu quando eu tinha treze. Morreu devagar, como quem cansa de respirar. Apanhou por anos de um homem que dizia amar. Um dia, ela não levantou mais. Sangrou na cozinha. Caiu com a cabeça no chão. Eu vi. Eu segurei a mão dela. Eu gritei por socorro. E ninguém veio.
No velório, o mesmo homem que matou minha mãe me obrigou a chamá-lo de pai. Me criou na base do medo. Me ensinou que mulher boa é a que obedece. Que dor se engole. Que trauma é frescura.
Eu cresci ouvindo que não valia nada. Que ninguém ia querer uma menina igual a mim. Cresci me odiando. Me cortando escondida. Me odiando por existir. Me odiando por não ter conseguido salvar ela. Me odiando por ter fracassado como filha, como mulher, como mãe.
Fugi de casa com dezessete, grávida e perdida. E perdi tudo.
Hoje eu tenho vinte e cinco. E ainda acordo com o gosto do sangue na boca.
Não tem glamour. Não tem superação clichê. Tem dor. Tem revolta. Tem sobrevivência.
Acordei com a roupa colada no corpo de tanto suor. O lençol embolado entre as pernas. A respiração falha. Me encolhi na cama como se isso fosse impedir a dor de voltar. Mas não impede. Nunca impediu.
Levantei, com os pés doendo, a cabeça latejando e o peito oco. Fui pro banheiro. Encostei na pia, olhei no espelho e vi a mesma coisa de sempre: uma mulher cansada demais pra sonhar e forte demais pra desistir.
— Só mais um dia, Yasmin… só mais um.
Mas a verdade é que cada dia pesa mais que o anterior. E ninguém carrega isso por mim.
E se tem uma coisa que eu aprendi, é que ninguém te salva. Ou você levanta, ou fica no chão.
E eu já sangrei demais pra ficar no chão de novo.
**
O lugar onde eu vivia era um nojo. Literalmente.
Paredes descascando, mofo em tudo quanto é canto, chão rachado, fiação exposta. Quando chovia, o teto pingava na tomada da cozinha e fazia barulho de curto. Quando fazia sol, a gente assava dentro do cubículo.
Dividia o espaço com baratas, ratos, e um traficante que morava na porta ao lado. Ele me chamava de “mulher braba” porque uma vez tentei enfiar um cabo de vassoura na cara dele quando veio querer bater na namorada grávida. Depois disso, ninguém mais encostou em mim. Nem ele, nem os outros.
A favela respeita quem sangra calada e morde quando precisa.
Na rua, todo mundo sabia que eu era sozinha. Sem família, sem rede, sem apoio. Mas também sabiam que eu era o tipo de mulher que morde de volta. E às vezes, só isso já basta pra ninguém mexer.
Tinha gente que me olhava com pena. Outros com medo. Mas ninguém com amor.
E tudo bem. Porque eu também tinha desaprendido o que era isso faz tempo.
Minha geladeira era velha, barulhenta, e quase sempre vazia. O armário rangia cada vez que eu abria. No fundo dele, só tinha um pacote aberto de arroz, dois ovos, e uma caixinha de sal grosso. Com sorte, eu fazia um café preto, forte e amargo, como eu.
A vizinha do 23 gritava com a filha todo santo dia. Um bebê chorava no andar de cima como se carregasse todos os traumas do prédio. E o rádio do boteco da esquina tocava a mesma música faz três meses.
Era essa a minha realidade. Cinza, barulhenta, fedida. Mas era minha.
E mesmo assim… Eu era a única que não abaixava a cabeça pra ninguém ali dentro.
Porque a dor me moldou. E o mundo me ensinou a ser pedra antes que tentassem me quebrar de novo.
**
Coloquei o jaleco surrado dentro da bolsa, amarrei o cabelo no alto com um elástico frouxo e peguei o crachá de identificação pendurado na maçaneta da porta. A foto nele era antiga. Eu ainda sorria naquela época. Hoje, só mostrava os dentes se fosse pra morder.
Desci as escadas correndo, desviando de lixo, cocô de gato e uma poça que ninguém sabia se era água ou esgoto.
Na rua, o ônibus já vinha lotado. Subi pela porta da frente mesmo, joguei o cartão no visor e segurei no ferro de cima, com o corpo espremido entre dois marmiteiros suados e uma senhora com uma sacola de roupas.
Dormi em pé por duas estações. Acordei com o tranco do freio e o som da cobradora gritando "desce aí, filha!"
Trabalhava no Hospital Municipal do centro. Plantão de 12 horas na emergência. Correria o tempo todo. Gente gritando, morrendo, sangrando. A gente tentava segurar com fita, pano, garra… o que dava. Com sorte, salvava. Com azar… sepultava.
E ninguém chorava. Nem os pacientes. Nem a gente.
Ali, lágrima era luxo.
Passei o crachá na catraca e entrei. O cheiro de hospital grudava na roupa, na pele, no osso. Desinfetante, sangue, suor, álcool. Aquilo era minha rotina. Aquilo era minha zona de guerra.
E por mais que eu odiasse tudo ali… era o único lugar onde eu me sentia útil. Onde minha dor virava ferramenta. Onde minha frieza era força. Onde ninguém perguntava se eu tava bem — porque sabiam que eu nunca tava.
Ali, eu era só mais uma farda branca tentando manter alguém vivo. E isso, de algum jeito torto, me dava motivo pra seguir.
A sala de medicação tava um caos, como sempre.
E mesmo no caos, dava pra ouvir as vozes rindo baixinho vindo do corredor.
Duas enfermeiras do noturno, ainda com a maquiagem borrada da noite passada, cochichavam apoiadas na bancada.
— “Eu juro, Débora… se tu visse o homem que entrou ontem no bar do lado…”
— “Que bar?”
— “O da esquina! O boteco metido a gastrobar. Entrou mudo, saiu calado… mas aquele terno, minha filha… o terno falava.”
— “E o nome?”
— “Thales Montenegro.”
— “Cê tá zoando.”
— “Juro pela minha chapinha. Alto, cara de poucos amigos, voz grossa, olhar de quem te desmonta inteira sem tirar a camisa.”
— “Se olhar já desmonta, imagina se encostar.”
— “Cê é doida… Ele não é de conversa. Mas o garçom disse que é alguém importante. Mandaram fechar uma mesa só pra ele.”
Elas riram, baixaram o tom. Mas eu já tinha ouvido.
Thales Montenegro.
Não conhecia. Mas o nome grudou.
O tipo de nome que parece inventado pra botar medo ou t***o. Ou os dois.
Fingi que não liguei. Mas continuei ouvindo.
— “E o jeito que ele olhou pra Letícia? Menina... ela ficou travada. Disse que foi como se ele soubesse de tudo que ela esconde.”
— “Sabe aquele tipo que parece que enxerga além da roupa?”
— “Exato. E o pior… não mexe. Só observa. Silêncio que grita. Imagina ele bravo.”
Elas gargalharam.
Eu larguei a prancheta com força em cima da mesa de inox.
— “Tem paciente esperando na 12. Ou vão passar o plantão comentando homem bonito?” — cortei seca.
Elas se calaram na hora.
E eu voltei pro que tava fazendo.
Mas por dentro… o nome dele ainda rodava feito aviso.
Thales Montenegro.
Homem de silêncio, olhar que pesa e nome de tempestade.
Não sei o que me deu.
No meio do intervalo, sentei num canto do vestiário, abri o celular e digitei no i********::
@thalesmontenegro.
Apareceu de primeira.
Perfil fechado. Foto de perfil com camisa social aberta, corrente no pescoço, olhar direto pra câmera como se tivesse te julgando.
E julgava mesmo. O feed era um desfile de ego: terno alinhado, carro importado, fundo de mansão, close na barba feita.
Ex-militar. Empresário. Arrogante. Rico. E sabendo disso.
As enfermeiras não tavam mentindo.
O homem era bonito. Mas não era só isso.
Ele tinha aquele tipo de presença que irritava.
Aquela pose de quem nunca teve que pedir nada duas vezes.
De quem nasceu pra dar ordem — e se você desafiar, ele te quebra no olhar.
Fechei o aplicativo com raiva de mim mesma.
— “Bonito demais pra prestar…” — murmurei. — “E ainda por cima deve feder a perfume caro e ego inflado.”
Mas era tarde.
O nome dele já tinha grudado.
E quando o destino quer sacudir sua vida, ele começa assim: com uma curiosidade b***a…
e termina te deixando de joelhos diante do furacão.