capítulo 4 Yasmim

1364 Words
CAPÍTULO 4 – YASMIN (uma semana viva, e ainda assim doendo) Uma semana. Sete dias inteiros de plantão, correria, grito, sangue, corpo pendurado no osso. Sete dias acordando antes do sol, dormindo depois do medo, e comendo quando dava. Ou melhor: quando sobrava. Meu corpo era uma máquina velha, cansada, que ainda funcionava na base do “só mais um”. Só mais um curativo. Só mais uma maca. Só mais uma morte. Só mais uma dor que não é minha… mas marca como se fosse. ** O hospital era caos com cheiro de álcool e desespero. Tudo rangia: porta, pulmão, fé. A sala de emergência vivia lotada. Mãe desesperada, filho com febre, homem esfaqueado, idosa com parada, criança tossindo sangue. E eu no meio, como sempre. Com o jaleco surrado, os olhos secos e a alma fria de tanto engolir emoção sem ter tempo pra sentir. Eu não podia sentir. Porque quem sente, quebra. E eu já quebrei uma vez. Nunca mais deixei. ** Vi de tudo naquela semana. — Uma senhora com AVC no corredor. — Um garoto de onze anos com o braço pendurado por pele. — Um pai implorando pra gente salvar a mulher dele. — Um recém-nascido roxo que a gente tentou reanimar por vinte e cinco minutos. Vinte e cinco. E ele não voltou. Nem todos voltam. ** Teve também as piadas idiotas dos residentes. Os médicos arrogantes que falavam gritando. O chefe de enfermagem que só aparecia pra cobrar. A enfermeira nova que chorou no segundo plantão e pediu pra trocar de setor. E eu lá. Com meu cabelo preso por um elástico frouxo. Com a foto no crachá que ainda sorria. Com a alma que já não acreditava em quase nada. ** Uma semana. Sete dias de gritos abafados. Sete dias sem falar com ninguém além dos pacientes. Sete dias em que eu olhava o celular e não tinha nenhuma mensagem. E tudo bem. Porque também não tinha ninguém pra mandar. ** Na sexta-feira à noite, o ônibus atrasou. Peguei o último da linha e desci na rodoviária quase 3h da manhã. Eu ia direto pra casa. Mas antes… parei no banheiro. ** Foi ali que aconteceu. ** Entrei pra lavar o rosto. E antes que eu ligasse a torneira, ouvi. — “Socorro…” ** O grito era fraco. Quase um sussurro. Corri pro último box. Empurrei a porta com o ombro. E ali estava ela. Uma menina. Devia ter uns vinte. Pálida. Assustada. Com as pernas abertas e as mãos segurando a barriga. — “Calma. Eu sou enfermeira, tá? Você tá com quanto tempo?” — “Dois meses…” — ela murmurou. — “Começou agora… tá saindo sangue…” E tava mesmo. O chão já tinha manchas. O vestido dela tava úmido. Ela tremia inteira. Meu corpo reagiu no automático. Abaixei, segurei as mãos dela, respirei fundo. — “Vai ficar tudo bem, me ouve? Respira comigo. Inspira. Isso. Segura. Solta…” Ela tentou. Chorava. Mas tava consciente. E o pulso tava ali. Forte. Vivo. Lutando. Liguei direto pro SAMU. — “Banheiro rodoviária. Gestante em sangramento leve. Código rosa. Dois meses. Responsiva.” Enquanto esperava, rasguei minha blusa, fiz compressa, falei com ela o tempo todo. — “Você não vai perder. Não vai. Me escuta… vai dar certo.” Mas por dentro… eu tava voltando. Voltando pro meu chão sujo. Pro meu sangue escorrendo. Pro meu desespero ignorado. Só que dessa vez, eu tava ali. Dessa vez, alguém ia sair com vida dali. ** A ambulância chegou. Subi junto. Segurei a mão dela até o hospital. — “Você vai ver seu filho. Vai ouvir o coraçãozinho dele batendo. Vai passar.” Ela só chorava. E eu também. Mas calada. Como sempre. ** No hospital, fizeram ultrassom. E o som veio: batimentos. fortes. claros. vivos. Ela não perdeu. Ela não perdeu. ** Fui até o banheiro do hospital. Tranquei a porta. Abaixei a cabeça. Minhas mãos tremiam. O sangue ainda nelas. Mas não era mais o dela. Era o meu. Era o dele. ** Encostei na pia. Olhei no espelho. E vi. A menina de dezessete anos que sangrou sozinha num chão gelado. O choro veio seco. Veio engasgado. Veio brutal. Caí no chão. Dobrei os joelhos. A testa encostada nos braços. E ali, sem ninguém, sem testemunha, sem apoio... eu chorei até não respirar. ** — “Eu tentei…” — sussurrei. — “Eu tentei salvar ele…” — “Mas ninguém me ouviu.” — “Ninguém veio.” — “Ninguém... me segurou.” ** As palavras saíam entrecortadas, sujas de mágoa antiga. — “Eu não consegui salvar o meu bebê…” — “Mas ela ficou…” — “Ela ficou…” ** Fiquei no chão por longos minutos. Banheiro frio. Luz fraca. Silêncio de madrugada. Eu era só uma mulher desmoronando em silêncio. Chorando o filho que nunca nasceu. E a menina que morreu junto com ele. ** Quando levantei, minhas pernas tremiam. Mas lavei o rosto. Respirei fundo. E encarei o espelho de novo. A dor ainda tava ali. Mas agora… tinha alguma coisa diferente. Um sopro. Um sussurro. Um resto de força nascida do sangue dos outros. Talvez eu não tenha conseguido salvar o meu. Mas naquela noite… eu fui a mulher que eu precisei e não tive. E só isso… já valeu o peso de continuar. Saí do banheiro ainda com o gosto do choro entalado na garganta. A cabeça latejava, os olhos queimavam, mas eu mantinha a postura. Sempre mantive. Caminhei pelo corredor, pronta pra ir embora, quando o som veio: — “Emergência! Maca no trauma! Acidente militar! Vítima grave!” Instinto. Corri. Vi o pessoal empurrando a maca com força. Sangue escorrendo pelos lençóis. Um homem desacordado, rosto sujo de terra, os braços arranhados. Mas o que me fez congelar não foi isso. Foi o estado das pernas. Uma delas torcida de um jeito antinatural. A outra… a outra parecia que tinha sido rasgada por dentro pra fora. Músculo exposto. Osso fragmentado. Ausência total de movimento. — “Coluna comprometida.” — disse um dos médicos correndo ao lado. — “Sem resposta nas pernas desde o resgate aéreo.” — “Sem resposta?” — perguntei, mesmo sabendo a resposta. — “Nada. Zero. Nem dor, nem reflexo. Nem espasmo.” Engoli seco. — “Quem é ele?” — “Thales Montenegro. Ex-militar. Oficial de elite.” O nome dele ecoou e o mundo… desacelerou. Thales Montenegro. Os gritos do hospital viraram ruído de fundo. Os passos apressados dos médicos viraram eco longe. Tudo em volta escureceu, menos ele. A maca deslizou diante de mim em câmera lenta. Eu vi tudo. O corte aberto na sobrancelha, os músculos contraídos em espasmo involuntário, o sangue seco misturado com a terra, a tatuagem no ombro, a pulseira hospitalar pendurada, e o detalhe mais brutal: a perna esquerda... pendendo sem vida, como um galho quebrado. ** Meu coração socou o peito. E, por um instante, eu não era enfermeira. Eu era só uma mulher olhando um homem que parecia ter caído do céu direto pro inferno. Não sabia por que, mas ele doía em mim. Antes mesmo de me ver. Antes mesmo de abrir os olhos. E quando abriu… Meu mundo parou. ** Dois segundos. Foi o tempo que ele levou pra despertar. Os olhos pesados se ergueram com esforço, vermelhos de dor, afogados de trauma. Mas encontraram os meus. E me prenderam ali. Sem anestesia. Sem preparo. Sem volta. O mundo ao redor voltou a girar. Gente gritou, médicos cortaram roupa, alguém ordenou raio-x. Mas ele… ele só me olhava. Como se, naquele mar de vozes, minha presença fosse a única coisa audível. Como se minha alma tivesse falado primeiro. ** Não teve romance. Nem faísca bonita. Teve só um choque. Bruto. Nu. Dolorido. O choque de dois mundos quebrados se reconhecendo pela primeira vez. ** — “Prepara a sala de cirurgia, agora!” — alguém gritou. E a maca sumiu pelos corredores. Mas aquele olhar? Aquele olhar ficou em mim. Cravado. Como quem grita sem voz: “Não me deixa sozinho aqui.”
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