A moto estaciona na barreira e vejo um vapor levar o rádio até a boca, me olhando de forma suspeita. Claro que ele está passando alguma informação para alguém. RD joga a ponta do cigarro no chão, apagando-a com o pé, e vem em nossa direção com aquele jeito largado de sempre, os braços balançando ao lado do corpo. Ele faz um toque com o cara que me trouxe, chamando-o de Mineirinho. Retribuo o sorriso que ele me lança e desço da moto com dificuldade, mas agradeço ao rapaz.
Manu: Obrigada– Digo, lançando um sorriso que não é retribuído.
Ele troca algumas palavras rápidas com RD antes de sair acelerando. Saio do meio da rua e vou para a calçada enquanto RD grita para eu esperar. Olho para os caras na barreira, e todos abaixam a cabeça, evitando qualquer contato visual comigo.
RD retorna a barreira e continua conversando com os caras, ele parece passar alguma instrução. O sol ainda está quente, o ar abafado e o suor começa a escorrer pela testa. Deve estar uns 50 graus hoje. Desisto de esperar e começo a subir o morro. À medida que vou subindo, sinto os olhares das pessoas em mim.
Viro na esquina e um Palio encosta ao meu lado. Continuo andando, evitando olhar para o carro.
RD: Ei, Manu! Espera aí! – Ouço a voz dele atrás de mim e sinto um alívio imediato.
Ele está no banco do motorista e baixa o vidro para falar comigo do lado do carona.
RD: O Terror mandou te buscar assim que você pisasse no morro. Disse que vocês precisam desenrolar essa fita. – Ele fala num tom sério, m
Manu: Fala pra ele que eu não tenho nada pra conversar com ele. Eu não vou, RD. Não quero conversa com ele. – Respondo firme, enquanto mantenho os braços debruçados na janela do lado do carona e meu olhar direto no dele.
RD: Não sou menino de recado, não. c*****o! Quer falar isso tudo aí, vai falar na cara dele parceira. – Ele fala, ajeitando o boné. – Sobe no carro e resolve logo essa p***a.
Manu: Pois então ele vai ficar sem ouvir nada. Porque eu não vou, ponto final. – Respondo, mesmo com meu coração batendo acelerado. – Ele que fique lá remoendo o que for que seja. Mas de mim ele só vai na ter silêncio partir de hoje.
RD: Tá bom, então. Vai e fica muda, mas vai. – Ele fala, cruzando os braços e encostando no.banco do motorista. – E olha, vou ser bem sincero, não concordo com essa p***a toda que aconteceu, não. Terror passou do limite, foi vacilão, mas também, p***a, tu beijar outro cara na frente dele? Tu achava que ia dar o quê? Paz e amor?
Meu sangue ferve na hora.
Manu: Serio? Você tá querendo dizer que a culpa é minha agora? Que eu provoquei ele? – Pergunto indignada, meu tom subindo sem eu perceber. – Ele é um homem adulto! Não tem justificativa pra o que ele fez, e nem tenta jogar isso nas minhas costas, porque eu não vou carregar culpa de macho doente, não!
RD: Não tô falando que a culpa é tua, p***a! Só tô dizendo que, c*****o, tu sabe como o Terror é. O cara é pilhado, tá ligado? Não dá margem pra ele surtar. – Ele responde, colocando uma mão na cabeça e a outra no volante, tentando se explicar. – Não tô passando pano, não, mas tu beijar outro cara na frente de todo mundo foi chamar problema pô. Terror não é santo, nunca foi. Mas, mano, tu sabia que ia dar merda.
Ele respira fundo, ajeitando o boné de novo, como se tentasse achar as palavras certas.
RD: Olha só, não tô justificando o que ele fez, mas p***a todo mundo sabe que o cara tava mexido contigo. Tu é diferente das outras, Manu. E isso deixa ele ainda mais descontrolado. Ele não sabe lidar com sentimento, tá ligado?
Ele me encara, e vejo um traço de preocupação no rosto dele.
RD: Só vai lá e troca ideia, mano. Resolve essa p***a. Na moral mermo.
Manu: Eu nem sei o que falar pra ele, entende? – Respondo, soltando um suspiro pesado enquanto desvio o olhar pro chão. – Eu tô cansada... de tudo isso. Não sei se quero ouvir ou se quero falar. Só sei que o que aconteceu ontem... – Minha voz falha, e eu paro por um momento, tentando controlar as emoções. – Eu não consigo esquecer. Não é tão simples assim.
Levanto o olhar pra ele, buscando alguma resposta, mas RD apenas me observa, esperando eu continuar.
Manu: Eu não sei, de verdade. Você acha mesmo que ele vai querer ouvir qualquer coisa que eu tenha pra dizer? Ou vai virar só mais uma briga? – Questiono, minha voz mais baixa, quase um sussurro. – Eu tô... com medo dele.
Fico ali, encarando RD, esperando alguma palavra, mas ele apenas me encara de volta.
RD: Mano, vou te falar real... Desde que ele chegou aqui, só tá trancado em casa, mano. Nem sai. Só bebendo, se drogando, largado. Não toma banho, não come, da nem pra reconhecer. – Ele solta um suspiro pesado, apoiando as mãos no volante. – Nunca vi o Terror assim. Só teve uma vez, e foi quando a tia Marta ficou daquele jeito lá, que tu já sabe. Tá ligado? Aquela tristeza ... é a mesma. – Fala olhando na frente.
Ele vira o rosto pra mim, me olhando nos olhos.
RD: Se você puder, por consideração, troca essa ideia com ele. Não é nem por ele, tá ligado? É por mim, pela moral que eu tô te pedindo. Eu tô preocupação com o cara, e tu é a única pessoa que pode dar um jeito nessa p***a. Se tu for... eu vou ficar suavão. – Ele termina, voltando a ajeitar o boné.
O silêncio se instaura enquanto eu tento processar o que ele acabou de dizer.
Manu: Tá bom, ... Eu vou. – Respondo com a voz mais baixa do que eu esperava, como se admitir isso fosse uma vergonha. – Mas só se você ficar por perto, tá? Não quero ficar sozinha com ele.
Meu coração dispara só de pensar em encará-lo de novo.
Manu: Você me promete isso? Ficar por perto? – Olho diretamente pra ele.
RD: Fechou, parceira. Fico de plantão. Se rolar qualquer coisa, eu tô ali do lado de fora. – Ele responde, dando uma batidinha no volante como se fosse pra me tranquilizar.
Abro a porta do carro, sentindo um nó na garganta.
Ele dirige com calma, mas sigo em silêncio, observando o caminho. Ele toma uma rota diferente, longe da boca e da casa do Terror, indo para o outro lado do morro. O ambiente vai mudando, ficando mais tranquilo e afastado. A rua é de pedra, irregular, ladeada por terrenos vazios e algumas construções paradas no meio do caminho. Poucas casas parecem ter moradores, e o silêncio é quase estranho comparado ao outro lado do morro.
Quando ele estaciona, vejo uma casa simples à nossa frente. Bem diferente da outra casa. A casa parece mais velha, com janelas pequenas. Na frente dela, duas motos estão paradas, com uma certa distância da entrada. Mais ao longe, os vapores se mantêm atentos, segurando aquelas armas enormes que nunca largam.
RD desliga o carro e olha para mim, mas não fala nada. Apenas faz um gesto com a cabeça, indicando que eu deveria descer.
Olho para a casa novamente e depois para ele, tentando buscar algo em seu rosto, mas RD mantém a mesma expressão.
Manu: Ele tá aí? – Pergunto baixinho, quase com medo de ouvir a resposta.
RD: Tá. Desde ontem.– Ele responde curto, abrindo a porta do carro.
Respiro fundo antes de fazer o mesmo. Assim que desço, sinto os olhos dos vapores sobre mim. Eles não falam nada e logo abaixam a cabeça.
Ele caminha até a porta e me espera ao lado. O peso no meu peito só aumenta, mas dou o primeiro passo em direção ao que quer que me espere lá dentro.
A memória do que aconteceu ainda está fresca, como se cada palavra dele ainda estivesse rodando a minha cabeça. Não sei se vou conseguir ajudar, não sei nem se ele quer ser ajudado. Mas, ao mesmo tempo, não quero carregar a culpa de não ter tentado.
Talvez a dona Joana tenha razão. Talvez ele só precise de alguém que o escute, alguém que veja além da máscara de frieza que ele insiste em usar. Alguém que ele ame de verdade.Talvez eu não seja essa pessoa, mas vou pelo menos tentar ajudá-lo assim como ele me ajudou. Respiro fundo e dou mais um passo em direção à casa..