Foram os dias mais longos da minha vida.
No hospital, o tempo parecia andar com preguiça. Arthur ficava quietinho, respirando com a ajuda dos aparelhos, aquele bipe constante me lembrando a cada segundo que meu filho não podia mais viver na condição em que a gente vivia.
O quarto era apertado, branco, com cheiro de álcool e medo. E mesmo assim, parecia mais seguro que o barraco que eu chamava de lar.
As enfermeiras eram boas comigo. Me ofereciam café, tentavam me distrair. Mas o meu mundo tava todo naquele rostinho pálido, nos olhos que abriam devagar, e na mão pequena que segurava o meu dedo com menos força do que o normal.
À noite eu m*l dormia. Ficava sentada na poltrona desconfortável ao lado da cama dele, pensando nas contas acumulando, no aluguel atrasado, nos boletos de farmácia. O salário da lanchonete m*l cobria a comida da semana. Às vezes eu fazia milagre. Outras, só chorava em silêncio quando Arthur não via.
Foi num desses dias que Ayla apareceu. A médica. Aquela mulher serena, com olhos que pareciam ver mais do que mostrava.
Ela entrou com um sorriso leve e uma pastinha na mão.
- Bruna… posso conversar com você um minutinho?
Assenti, ainda com os olhos no Arthur.
Ela se sentou ao meu lado, cruzando as pernas devagar.
- Eu venho pensando em como te ajudar. Eu sei que você faz o possível, mas o Arthur precisa mais. Um ambiente limpo, seco, seguro.
- Eu sei… eu só não tenho como mudar tudo de uma hora pra outra, doutora. O aluguel já tá apertado, e com ele internado, nem tô conseguindo trabalhar direito… - minha voz falhou no final.
Ela me olhou com um carinho difícil de explicar.
- Meu irmão tem um apartamento em Laranjeiras. Pequeno, mas bem localizado. Arejado. Seguro. Eu conversei com ele… e ele topou alugar pra você, com um valor simbólico. E o que você não puder pagar, eu te ajudo.
Fiquei sem saber o que dizer. Olhei pra ela tentando entender se aquilo era real mesmo ou algum tipo de brincadeira c***l do destino.
- Você tá falando sério?
- Tô. Ele é um homem difícil… mas tem um coração justo. E eu senti que você precisava de um ponto de virada. Um respiro.
Meus olhos se encheram d’água na hora. Engoli o choro com força. Eu não gostava de parecer fraca. Mas a verdade é que eu tava cansada. Muito cansada.
- Eu não tenho móveis, não tenho fogão, não tenho quase nada…
- A gente dá um jeito. Uma coisa de cada vez.
Naquele momento, olhando pra Arthur dormindo, eu soube: era isso. Era agora. Eu precisava aceitar. Pelo meu filho.
Por mim.
Porque às vezes, mesmo quando a vida só oferece escuridão, alguém acende uma luz pequena e é nela que a gente aprende a caminhar.
Depois que Ayla me contou sobre o apartamento, eu fiquei em silêncio por uns bons segundos.
Sentia a garganta fechar.
Eu queria gritar, rir, agradecer tudo ao mesmo tempo. Mas só consegui apertar a mão dela, como quem segura uma boia em alto-mar.
Ela sorriu de volta. E então completou:
- Mas ainda precisamos de uns dias. Minha mãe… Dona Lúcia, ela insistiu em mandar uma pessoa de confiança fazer uma boa limpeza. Quer deixar tudo pronto pra quando vocês forem visitar.
Dona Lúcia.
O nome soava como alguém que se importa.
E isso era raro demais.
Ayla continuou:
- Assim que Arthur sair dessa fase crítica e puder ir pra casa, a gente marca pra ir lá. Eu te acompanho. Se você gostar, começamos a organizar a mudança.
Eu quis dizer que não precisava de tanto. Que não queria incomodar. Mas a verdade?
Era tudo o que eu mais queria.
Um lugar. Um recomeço.
Uma chance de não ver meu filho definhar cada vez que chovia.
Assenti com um sorriso contido.
- Obrigada, doutora… de verdade.
Ela tocou meu ombro com gentileza.
- Você já carrega o mundo sozinha, Bruna. De vez em quando, deixa alguém te ajudar a equilibrar.
Dois dias depois, ainda no hospital, recebi visita da Jaqueline.
Ela chegou com uma bolsa cheia de biscoito, refrigerante, um desodorante e aquele humor que nem doença consegue derrubar.
- Trouxe minha presença ilustre. A ala toda ficou mais bonita agora.
Sorri, pela primeira vez em horas.
Nos sentamos num banquinho do corredor enquanto Arthur dormia. Esperei um pouco, e então soltei a bomba:
- Vou sair da favela, Jaque.
Ela parou de mastigar.
- Como assim?
- Uma médica que atendeu o Arthur… ela conseguiu um apartamento pra gente. Num lugar melhor. Mais seguro. Mais saudável. Assim que ele sair daqui, vamos conhecer. E se der certo, é pra lá que a gente vai.
Jaqueline ficou em silêncio por um instante. Depois, deu um sorriso torto.
- Então agora eu vou ter que pegar dois ônibus pra te visitar?
Rimos juntas.
Mas logo ela ficou séria.
- Tô feliz por você. De verdade. Mas… cê tá preparada? Lá fora é outro mundo, amiga. E você sempre foi Rocinha. Aqui é sua raiz.
Baixei o olhar.
Ela tinha razão.
Era a rua onde aprendi a correr, o beco onde beijei o primeiro namorado, o bar onde minha mãe pedia fiado.
Era ali que a vida me formou mesmo que cheia de cortes.
- É. Aqui é minha raiz. Mas Arthur é meu galho novo. E se ele não puder florescer aqui… então é minha hora de voar.
Jaqueline me abraçou forte.
Me apertou mais forte no abraço, e por um instante, achei que era só emoção.
Mas quando se afastou, ela me olhou sério, os olhos cheios de uma preocupação que não tinha aparecido antes.
- E quando o Canário souber disso, Bruna?
As palavras caíram como pedra no meu peito.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. O nome dele ainda me causava calafrio não por amor, nem por saudade, mas por tudo o que ele representa: controle, ameaça, ausência.
Mesmo preso, Canário ainda tinha olhos soltos por aí.
Gente que sabia de tudo.
Gente que falava demais.
- Ele tá preso, Jaque. - respondi, quase como uma prece.
- Mas não calado. E você sabe disso. Você acha que ele vai aceitar numa boa que você tá indo embora, levando o Arthur? E que ainda por cima vai morar num canto que ele não controla?
Suspirei.
Olhei pro corredor, como se esperasse ver ele ali de costas, como um vulto do passado.
- O Arthur é meu. Sempre foi. Ele nunca se importou com isso. Nunca comprou um pacote de fralda, nunca me acompanhou num posto de saúde, nunca segurou a mão dele num hospital. Agora que tô tentando dar um mínimo de dignidade pro meu filho… ele não tem mais voz sobre isso.
Jaqueline abaixou os olhos, compreensiva, mas ainda inquieta.
- Você tá certa. Só… se cuida, tá? Porque mesmo sem voz, tem homem que se acha dono. E você sabe o tipo de homem que ele é.
Assenti.
- Se ele vier, eu tô pronta. Eu tenho coragem. E agora… vou ter endereço novo, chão firme e a Ayla do meu lado. Pela primeira vez, não tô sozinha.
Ela sorriu.
- Nem nunca esteve. Mas agora tem mais gente segurando sua mão.
Olhei pra porta do quarto, onde Arthur dormia em silêncio.
- Por ele… eu enfrento o Canário, a favela, o mundo inteiro.