CAPITULO 3

1254 Words
Rafael insistiu três vezes. Na primeira, eu disse não. Na segunda, ele zombou da minha cara de viúvo cansado. Na terceira, eu já estava tão imerso em papelada, relatórios, e na merda da lembrança do Canário me olhando com aquele sorrisinho de escárnio, que aceitei. - Vai, chefe… um bailezinho no morro, cerveja gelada, mulher bonita. Você tá precisando de um pouco de vida. Vida. Se ele soubesse o quanto aquilo me parecia distante. Chegamos depois da meia-noite. Era um daqueles bailes improvisados, mas que funcionavam como relógio: som no talo, paredão de caixa, luz piscando, multidão dançando apertado como se o mundo fosse acabar ali mesmo. Eu me sentia um peixe fora d’água. De novo. A diferença é que agora eu estava sem farda, camisa preta, calça jeans, disfarçado de civil comum o que, convenhamos, não enganava ninguém. Rafael já estava enturmado, rindo com dois copos de cerveja na mão e o braço em volta de uma garota que provavelmente tinha metade da idade dele. Eu fiquei mais atrás, observando. O instinto nunca dorme. Gosto de ver antes de ser visto. Foi aí que meus olhos pararam nela. Na verdade, ela, parou tudo. Não sei explicar o que foi. Talvez o modo como ela dançava, sozinha, como se o mundo estivesse distante dali. Não era vulgar. Era... presença. Uma mulher pequena, cabelo preso num coque bagunçado, corpo marcado pelo esforço e não pelo silicone. Rosto limpo, pele morena clara, olhar de quem já viu demais. Meu corpo reagiu antes da mente. Dei um passo à frente. Quis me aproximar. Me aproximei devagar, quase sem pensar. Ela me viu. E não baixou o olhar. Não sorriu. Não recuou. - Você mora por aqui? - perguntei, mais pela obrigação de quebrar o gelo do que por desconhecimento. Ela ergueu uma sobrancelha, sorriu de lado, sem humor. - Depende. Você é polícia em serviço, ou homem fora de hora? A resposta me atingiu como um tapa sem mão. Inteligente. Rápida. Fria. Me fez engolir seco e rir, por dentro. - Não tô em serviço. - Então devia aproveitar. Aqui ninguém tá pedindo currículo nem ficha criminal. Ela virou de costas, mas não foi embora. Continuou dançando, só que agora consciente da minha presença. Fiquei ali, parado, observando. Um misto de curiosidade e desconforto. Por que ela estava me mexendo assim? Mulheres nunca foram meu forte. Não por falta de desejo mas porque eu sempre acabava sendo mais duro do que devia. Na cama, muitas voltavam o rosto. Umas choravam. Outras diziam que eu era frio, bruto, vazio. E talvez fossem todas certas. Mas ali, naquela noite, com aquela mulher dançando no meio do caos… eu me senti pequeno. E, de alguma forma, exposto. Ela não me era totalmente estranha. Eu não conseguia lembrar de onde uma foto, um cruzamento qualquer de olhares no meio de uma multidão. Mas o rosto dela ficava ali, martelando em alguma gaveta da memória. Continuei observando, mais próximo agora. Ela não dançava para ninguém. Não ria à toa. Não bebia como quem esquece, mas como quem sobrevive. E então, tudo mudou num segundo. Dois moleques, uns vinte e poucos anos, empolgados demais pela bebida e pela própria ignorância, passaram por ela rindo alto, um deles dizendo algo que eu não consegui ouvir mas o gesto foi claro. Um puxão de braço, leve, mas invasivo. Ela virou na hora, o olhar cortante. - Tira a mão de mim, o****o. O cara ainda riu, como se aquilo fosse graça. O amigo puxou mais forte, já com a arrogância que só macho burro tem quando se acha no direito. Antes que ela reagisse de novo, eu já estava ali. Instinto. Fúria. No fundo, eu nem pensei. - Solta ela, seu cuzão do carälho. Minha voz saiu firme, sem rodeios. O tom que costuma silenciar ambiente. Funcionou. Os dois me olharam com aquela cara de “quem é você?”, até que o menorzinho reconheceu algo no meu rosto. Talvez a pose de polícia, talvez o olhar. Recuaram, xingando baixo, e se afastaram pela multidão. Ela ficou parada por um segundo, como quem não acredita no que acabou de acontecer. Mas ao contrário do que eu esperava, não me agradeceu. Ela me olhou e o olhar não era de gratidão. Era de raiva. - Você acha que eu não sei me defender sozinha? - disse, com a voz baixa, mas cortante. - Eu só impedi um i****a de te encher o saco. - E eu te pedi ajuda? Silêncio. O som do baile continuava ao redor, mas entre nós dois tudo parecia parado. Eu podia ter virado as costas. Podia ter dado um passo atrás e deixado ela ali com a própria raiva. Mas eu fiquei. - Se fosse com outra mulher, eu teria feito o mesmo. Ela riu, debochada. - Pois é… o problema é esse. Você acha que toda mulher precisa ser salva. Eu quis dizer algo. Corrigir. Me explicar. Mas não saiu. Porque talvez… ela tivesse razão. Ela balançou a cabeça devagar, como quem já está acostumada a se decepcionar, e virou de costas. E mais uma vez, eu fiquei ali parado. Com a sensação de que ela levava alguma coisa embora. Não sei o nome, nem de onde veio, nem por que me atingiu daquele jeito. Mas fiquei ali, parado, assistindo suas costas sumirem na multidão como se tivesse deixado cair algo importante e não soubesse o quê. Rafael apareceu logo depois, rindo alto com dois copos na mão. - Você sumiu, parceiro. Arrumou alguma coisa? Eu só dei de ombros. - Nada que valesse a pena. - Então bora resolver isso. Ele apontou com o queixo para uma mulher que dançava mais à frente. Bonita. Olhos escuros. Vestido colado no corpo. Daquelas que sabem exatamente como chamar atenção e estão acostumadas com ela. Quando nossos olhares se cruzaram, ela sorriu. Um sorriso prático, direto. Aquele tipo de mulher que não perde tempo com rodeios. Ela veio até mim sem dizer muita coisa. O toque foi imediato. Mão no meu peito, perfume doce demais. Uma frase ao pé do ouvido. Convite sem poesia. Aceitei. Em um quarto barato de motel, ela se jogou na cama com uma rapidez ensaiada. A luz vermelha do abajur deixava tudo meio vulgar, meio teatro. Ela queria o jogo. O controle. Queria que eu entrasse no ritmo dela. Mas eu não conseguia. Tirei a camisa, ela se aproximou, sentou no meu colo. Começou a me beijar como se pudesse quebrar alguma coisa em mim. Mas não tinha nada ali que valesse o esforço. Meu corpo reagia no automático. Mas a cabeça? Em outro lugar. Lembrei do olhar da mulher do baile. Da resposta atravessada. Do jeito como ela se defendeu, mesmo depois de eu ter achado que a estava ajudando. Eu devia estar ali com aquela mulher na cama, corpo oferecido, pele quente. Mas tudo em mim era frio. Fiz o que era esperado. Ou quase. Não demorou até que ela percebesse. - Você tá aqui ou tá pensando em outra? - ela perguntou, a voz embriagada de tédio. - Nem em você. Nem em ninguém. Ela riu, seca, e se afastou. - Tu é todo errado, né? - Mais do que você imagina. Ela se virou, puxou a coberta e apagou o abajur sem dizer mais nada. Fiquei deitado olhando pro teto, ouvindo o som abafado do ar-condicionado velho. E pela primeira vez em muito tempo, eu me perguntei: Por que ninguém consegue me tocar de verdade? Ou talvez... por que eu não deixo?
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