Capítulo 4

1173 Words
A música já tocava lá no morro quando a Jaqueline chegou na minha casa com uma sacola cheia de tralha e uma animação que me cansava só de olhar. - Vamos, Bruna! Hoje é dia de esquecer homem, esquecer a vida, e fingir que a gente nasceu rica, leve e cheia de opções. Revirei os olhos, mas deixei ela entrar. Arthur já tinha dormido, e eu só queria esvaziar a cabeça. Desde a prisão do Canário, a favela tava em silêncio demais e todo mundo por aqui sabe que o silêncio é só a pausa antes da próxima bomba. - Sério, Jaque, não sei nem por que tô indo. Aquilo ali só serve pra gente se irritar com homem fedendo a perfume barato e achando que é dono do mundo. Ela riu e puxou uma saia minha da gaveta. - Justamente! A gente vai dançar, rir da cara deles e lembrar que não precisa de ninguém. Só de uma amiga fiel e um copão de Gin bem gelado. Apesar de mim mesma, eu ri. Vesti uma blusinha justa, amarrei o cabelo num coque improvisado e passei um batonzinho só pra dar uma cor. Olhei no espelho e por um segundo não me reconheci. Era estranho ver uma mulher ali que ainda conseguia parecer inteira, mesmo depois de tudo. Mas a noite tinha planos próprios. E eles nem sempre combinam com os nossos. O lugar tava lotado. O som no talo, o chão vibrando, e aquele calor abafado que só baile de morro tem. Dançamos um pouco, rimos, bebemos. Eu até esqueci da vida por alguns minutos. Até ele aparecer. Um cara parado mais pro canto. Alto, expressão fechada, camisa preta colada no corpo. Tinha postura de quem vigia, não de quem curte. Ele me encarou por um tempo que me incomodou. E então veio a tal confusão. Dois babacas puxaram meu braço. Você conhece o tipo bêbado, ousado, s*******o. Eu reagi, claro. Nunca precisei de homem pra me defender. Mas aí ele entrou. Veio como se fosse meu salvador. Voz firme, tom de autoridade. Mandou os caras soltarem, e eles soltaram. Nem contestaram muito. Mas eu não gostei. Não gostei do jeito. Do gesto. Da suposição de que eu precisava da proteção dele. Quando ele se aproximou, achou que eu iria agradecer por ter me defendido. - Você acha que eu não sei me defender sozinha? Foi o que eu disse. E ele ficou meio sem reação. A gente trocou umas palavras, rápidas, afiadas. E eu fui embora. Mas o rosto dele… ficou. Estávamos descendo a ladeira quando Jaque quebrou o silêncio. - Tá brava ainda com o cara do baile? - Tô. Ele entrou no meio como se fosse dono da razão. Odeio isso. Se fosse com outra mulher, beleza… mas comigo? Eu me garanto. - Tá, mas… ele era bonito pelo menos, né? - ela riu. - Bonito? Era. Mas frio. Sabe aquele tipo que transa calado, vira de lado e dorme como se tivesse resolvido um problema? Ela caiu na gargalhada. - Eita! Tu tirou isso tudo de um olhar? Eu parei de rir e fiquei pensativa por uns segundos. - O rosto dele… eu conheço. Não sei de onde ainda. Mas tenho quase certeza que ele é polícia. Mais do que isso: acho que ele tava na operação que prendeu o Canário. Jaqueline arregalou os olhos. - Bruna… tu tem certeza? - Não. Mas alguma coisa nele... me reconheceu. E pior, alguma coisa em mim reconheceu ele também. Jaqueline ficou em silêncio. Eu também. Porque às vezes, o perigo não vem com fuzil nem algema. Às vezes, ele vem de camisa preta e olhos que encaram fundo demais. Dias se passaram e eu seguia com aquela sensação estranha de quando o corpo tá cansado, mas a cabeça não para. Arthur dormia, quietinho, encolhido no colchão que ficava num canto do nosso barraco. O ventilador velho fazia um barulho irritante, mas pelo menos empurrava o ar abafado de um lado pro outro. Acordei de madrugada com um gemido. Não foi grito, nem tosse. Foi um som baixinho, abafado, como se meu filho estivesse lutando contra o próprio corpo em silêncio. Levantei num pulo e fui até ele. A pele quente. Molhada de suor. As bochechas ardendo. “Filho… Arthur… fala com a mamãe…” Ele abriu os olhos devagar, com a respiração curta. Tentou falar, mas só saiu um chiado. Não esperei mais nada. Peguei ele no colo com o coração disparado e corri para a UPA mais próxima. Não sei como cheguei até lá. Só lembro do aperto no peito. Do medo de perder. Do peso do corpo dele, leve demais, quente demais. **UPA. seis horas da manhã. Emergência.** Fui atendida rápido. Talvez pela urgência nos meus olhos, talvez por milagre. Foi quando conheci a Dra. Ayla. Uma mulher de trinta e poucos anos, jaleco branco, sorriso calmo e um olhar firme. O tipo de gente que fala devagar pra não machucar, mas também não alivia a verdade. Ela examinou o Arthur com todo cuidado. Pediu exames, colocou ele no oxigênio, falou com os enfermeiros como quem conhece o peso de cada palavra. Eu só observava, tentando não desabar ali mesmo. Depois de um tempo, ela veio até mim, com uma prancheta na mão e a voz baixa. - Bruna, seu filho vai precisar ficar internado. Está com uma infecção respiratória. O quadro é estável, mas é sério. Senti o chão fugir por um segundo. - Meu Deus… foi de uma hora pra outra… Minha voz saiu fraca, como se pedisse desculpas. A médica me olhou nos olhos. Com gentileza, mas sem rodeios. - Não é de uma hora pra outra. Essas coisas vão se acumulando. E, pelo que os exames mostram, ele tem sinais de exposição prolongada à umidade, poeira, mofo… Baixei o olhar. Já sabia. Não precisava ouvir. Mas doía do mesmo jeito. - Eu… a gente mora num barraco. As paredes vivem úmidas. O ventilador é velho, e quando chove entra água pelo chão. Mas… eu limpo. Tento manter tudo no jeito. Faço o que posso… Ela tocou meu ombro com cuidado. - Eu sei que você faz. E você é uma mãe maravilhosa. Mas às vezes o amor não basta. O ambiente onde a gente vive também cria feridas. Segurei o choro. Porque naquele momento, o que eu mais queria era ser forte. - Ele vai ficar bem? - Vai. Com o tratamento certo, sim. Mas vai precisar de mais do que remédio. Vai precisar de ar limpo. De teto seco. De espaço. E disso… a UPA não pode oferecer. Só você pode. Só você pode. Aquelas palavras ficaram grudadas em mim. Na cadeira dura do quarto, vendo Arthur dormir com os tubos no nariz e o peito subindo devagar, eu me fiz uma promessa silenciosa: "Se esse lugar tá matando meu filho aos poucos, eu vou sair dele. Nem que seja com um colchão nas costas e ele no colo." Nem Canário, nem polícia, nem morro, nem medo. Por ele, eu vou embora!
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