CAPÍTULO 8

1303 Words
O dia começou com a notícia que eu mais esperava: Arthur receberia alta. A médica que veio nos avisar sorriu ao me ver chorar de alívio. Foram dias sufocantes, dormindo em cadeira dura, me perguntando se ele ia resistir. E ele resistiu. Como sempre. Pequeno, mas forte. Ayla apareceu pouco depois, com o mesmo jeito calmo de sempre. Disse que nos levaria direto pro apartamento pra conhecer antes de voltarmos à Rocinha. Arthur dormia no meu colo no caminho. E eu, quieta, olhava pela janela do carro, sentindo o coração embolado. - Tá tudo limpinho. Minha mãe passou a tarde supervisionando. Assenti com gratidão. - E seu irmão… ele vai estar lá? - Vai. Achei justo. É o imóvel dele. Não pensei muito nisso. Na minha cabeça, seria algum senhor sisudo, talvez alguém indiferente. Alguém que só assinaria papéis e nos deixaria em paz. Mas quando a porta abriu… era ele. O homem do baile. O mesmo que se meteu no meio de uma confusão pra me “salvar” e que depois teve a audácia de dizer que eu era o problema. Ele me olhou com aquele rosto travado de sempre. Os braços cruzados, o cenho pesado. - Você. - soltei, no susto. - Você também. Ayla olhou de um pro outro, confusa. - Vocês se conhecem? - Nos esbarramos num lugar barulhento. - respondi, antes que ele falasse mais. A visita seguiu estranha. O apartamento era lindo na simplicidade. Iluminado, arejado, seguro. Mas eu m*l conseguia me concentrar com ele ali. No corredor, enquanto Ayla mostrava os cômodos, eu me encantava com cada detalhe, mas não relaxava Ele me encarava todo momento, como se tentasse desvendar algo. Nos despedimos. Eu saí com Arthur no colo, o coração disparado, sem saber se tava indo pra uma nova vida ou entrando num jogo que eu não entendia. No carro, a caminho de casa, Ayla dirigia em silêncio. Mas eu não conseguia mais guardar. - Você devia ter me contado que ele era o homem do apartamento. Ela me lançou um olhar rápido. - E eu ia contar. Mas achei que fosse melhor te apresentar ao lugar primeiro. Porque sei que você precisa. E você merece. Fiquei quieta por alguns segundos. Então joguei a pergunta que queimava: - Quem é ele, Ayla? De verdade. Ela respirou fundo. - Marcelo é meu irmão. E também é delegado da Civil. O mundo parou por dois segundos dentro da minha cabeça. - Delegado. - Sim. E antes que você pergunte ele não vai te perseguir. Ele pode parecer duro, mas ele é correto. E se ele abriu esse apartamento pra você, é porque de algum jeito, ele acredita que você merece uma chance. Fiquei em silêncio o resto do caminho. Arthur dormia no banco de trás, e eu só conseguia olhar pra estrada. Agora eu sabia quem ele era. E mesmo sabendo que ele podia ser um perigo… a verdade nua e crua era: Ele também era o homem que vinha me tirando o sono. O barraco parecia menor naquele dia. Ou talvez fosse eu que estivesse maior. Jaque me ajudava a dobrar as roupas, caladas. Cada peça tinha história. A camiseta que Arthur usava quando teve febre, a minha blusa mais arrumada, comprada num brechó com o troco do pão. - Certeza que é isso mesmo, Bru? - ela perguntou, dobrando um lençol. Não é só por mim. É por ele. - apontei com o queixo em direção à janela, onde dava pra ver, lá embaixo, o carro branco de Ayla parado. Arthur já tava no banco de trás, quietinho me esperando. Peguei a caixa de sapatos com os documentos e guardei na mochila. Jaque olhou em volta e soltou: - É estranho te ver indo. Sabe? A gente cresceu aqui. Assenti, respirando fundo. - Eu me sinto arrancando um pedaço de mim. Mas se eu ficar, outro pedaço vai morrer. Ela parou o que fazia e me abraçou. Forte. - Canário não vai gostar. - Não me importa. - respondi, mesmo com a voz trêmula. - Vai ser a primeira vez que eu tomo uma decisão sem pensar no que ele pode ou não achar. Carregamos duas sacolas com as roupas. Jaque colocou os brinquedos de Arthur numa sacola plástica azul. - Tô indo pra outra vida, mas você vem comigo. Tá? - falei, pegando a chave da porta pela última vez. Ela sorriu, emocionada: - Sempre. Mesmo que tenha que cruzar a cidade pra tomar café contigo. Fechei a porta devagar, como quem enterra algo. Lá fora, Ayla me esperava com paciência, encostada no carro. Entrei. Olhei uma última vez pra escadaria torta da favela. E pensei em tudo o que deixava: memórias, medos, amores errados, sobrevivência. Arthur sorria tranquilo. Ele não sabia, mas naquele dia, a gente rompeu um ciclo. E mesmo carregando pouco peso nas mãos, eu levava comigo o que mais importava: dignidade, amor e coragem. A chave girou com um estalo baixo, e pela primeira vez em muito tempo, senti que não estava entrando num espaço emprestado. Era pequeno, claro, cheiroso. As janelas abertas deixavam entrar uma brisa suave, e o chão limpo refletia a luz de fim de tarde. Arthur havia pego no soninho nos braços de Ayla. Jaque abriu a porta da frente carregando as duas sacolas. Eu entrei por último, o coração batendo forte. - Bem-vinda à sua casa, Bruna.- disse Ayla, com aquele tom de quem entende que o novo também assusta. O apartamento já não estava vazio como na visita. Dona Lúcia, mãe da Ayla e do Marcelo, havia deixado algumas coisas por ali. Um fogão. Um colchão de casal no canto do quarto. Uma geladeira. Pratos, copos, jogo de talheres. Coisas que pareciam luxo pra quem vinha do chão batido da favela. Fiquei parada olhando a cozinha por uns segundos. Quase pedi desculpas por entrar. Era difícil aceitar tanto cuidado vindo de gente que nem me conhecia direito. - Sua mãe fez tudo isso? perguntei pra Ayla. Ela assentiu com um sorriso. - Ela não faz muito barulho… mas quando se apega, ela cuida. Enquanto Ayla se despedia, dizendo que voltaria depois para trazer mais algumas coisinhas, Jaqueline e eu começamos a colocar tudo no lugar. Montamos o cantinho de Arthur primeiro. Espalhamos os brinquedos dele num tapetinho velho que ela trouxe de casa. O colchãozinho dele foi posto ao lado da minha cama que era só um colchão no chão, mas agora era nosso. - Parece outro mundo… - Jaque disse, enquanto ajeitava os travesseiros. Assenti, mexendo nos lençóis. - É. Aqui… parece que o ar não pesa tanto. Ela me olhou com carinho, mas também com medo. - Você sabe que vai precisar se esconder direito agora, né? Parei. Encostei na parede e disse com firmeza: - É por isso que vou te pedir uma coisa. - Claro. - Não conta pra ninguém onde é esse apartamento. Ninguém. Nem vizinho da favela, nem amiga de infância, nem crush do i********:. Ela riu fraco, mas logo ficou séria. - Tá bom. Palavra de sangue. Só eu e você. Segurei a mão dela, agradecida. - Não é só proteção minha. É por ele. - olhei pro quarto, onde Arthur já dormia no colchão novo. - Esse lugar é mais que um apartamento. É a chance de a gente viver sem correr. Jaqueline ficou até mais tarde, me ajudando a arrumar as roupas no novo guarda roupas embutido. Tomamos café em canecas, também deixadas por Dona Lúcia, sentadas numa pequena mesa. E quando ela foi embora, me abraçou como quem sabia que algo importante tava começando. Fechei a porta atrás dela. Tranquei duas vezes. E ali, no silêncio da minha nova casa, encostei na parede e deixei as lágrimas caírem. De alívio. De medo. De esperança. Eu tinha pouco. Mas pela primeira vez, era meu.
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