Desde que ela se mudou, tudo parece ter saído do lugar.
As investigações estão de pé. Canário ainda tem capangas soltos. A favela segue sendo um ninho de informações malditas. O trabalho continua.
Mas a minha cabeça… não.
Bruna.
O nome, a boca, o olhar debochado. A tatuagem no braço, o filho no colo.
A mulher que me desafiou num baile e depois apareceu no meio do meu território como se o universo estivesse de s*******m comigo.
Eu sabia que era perigoso.
Ela tem história com bandido.
Ela carrega no corpo o nome de um criminoso que eu ajudei a colocar atrás das grades.
Ela é instável, impulsiva, intensa.
E eu sou… racional. Disciplinado. Treinado pra não me perder.
Mas tô me perdendo.
Depois que ela entrou naquele apartamento, a avenida ali virou “atalho”.
Mesmo quando não era o melhor caminho.
Mesmo quando tinha trânsito.
Mesmo quando eu não precisava passar por ali.
Era só virar à direita, descer mais duas ruas… e pronto: a fachada do prédio, o portão marrom, o varal na janela do segundo andar. Às vezes dava pra ver o cobertor azul do moleque pendurado.
Não toquei a campainha.
Nunca subi.
Mas estive ali.
Duas, três, quatro vezes.
De longe.
Hoje, passei devagar de novo.
O rádio do meu carro no som baixo. Os dedos batendo no volante como se o coração estivesse nos dedos.
Não a vi.
Mas bastava imaginar.
Talvez lavando roupa. Talvez penteando o menino. Talvez deitada no colchão que minha mãe deixou, respirando o ar que ela não tinha no barraco.
E eu ali, preso entre o volante e a poŕra de um desejo que não devia existir.
Eu não posso me envolver.
Se alguém souber, se o nome dela aparecer num inquérito, se ela virar testemunha ou alvo…
Eu tô fora.
Não só do caso.
Do cargo. Da carreira.
Mas mesmo com tudo isso martelando, a única coisa que eu queria era ouvir a voz dela de novo.
Nem que fosse pra ela me chamar de “fragilizado” mais uma vez.
Aquela mulher me tira do prumo.
E, ao mesmo tempo, me lembra que eu ainda tô vivo.
E isso, pra mim… é mais perigoso que qualquer arma apontada.
Quando recebi a mensagem de Arnaldo, já sabia o que era.
O tom direto. A pontualidade. O nome sem rodeios.
Era o tipo de mensagem que só um homem que conhece suas quedas saberia mandar.
Arnaldo não era só meu superior.
Era o mais próximo que eu já tive de um pai.
Desde que entrei pra Civil, foi ele quem me ensinou a não vacilar.
A manter o foco, a cabeça fria, a mão firme.
Foi ele quem me segurou depois do meu primeiro corpo.
Quem me deu conselhos nas madrugadas.
Quem me ensinou que força, às vezes, era saber recuar.
Então, quando ele disse:
- Senta, Ávila.
…eu sentei. Como fazia quando era só um novato tentando se provar.
Ele caminhou até a janela e cruzou os braços. Silêncio por alguns segundos, como sempre fazia antes de jogar a verdade na mesa.
- Você é um dos melhores. Sempre foi.
Mas nas últimas semanas, seu foco tá em outro lugar.
- Tô trabalhando, Arnaldo. As investigações estão avançando, os relatórios.
- Estão automáticos. - ele me cortou com aquele tom firme que não permite réplica.
- Você tá cumprindo tarefa, não missão.
Permaneci calado.
- E a cabeça, Marcelo? Tá com quem?
Me remexi na cadeira.
- Você anda distraído, muda de caminho, repete patrulha onde não precisa.
Ele se virou e me encarou direto:
- É por causa da Bruna, né?
Não respondi. Nem precisei.
- Você acha que eu não percebi? O jeito como você fala dela... ou melhor, evita falar.
Ele deu a volta na mesa, parou à minha frente, apoiando as mãos.
- Marcelo, essa mulher... não é pra você.
Aquilo doeu mais do que deveria.
Não porque ele estava sendo duro, mas porque eu sabia que vinha do cuidado.
- Ela foi mulher de um traficante. Carrega o nome dele tatuado no corpo. Tem uma criança que pode ser usada como isca. Você sabe onde isso pode dar?.
Falei baixo, quase como um tiro m*l dado:
- Ela tá tentando sair dessa vida. Cuidar do filho. Eu vi isso de perto.
- Você tá tentando salvá-la… ou tá apaixonado?
Meu peito apertou. O nó na garganta veio antes da resposta.
- Talvez os dois.
Ele suspirou. O tom dele mudou não mais o superior, mas o homem que me conhecia melhor do que ninguém:
- Filho... você é como um filho pra mim.
Aquela palavra me travou por dentro.
- E por isso, tô te dizendo: não caga tua vida por causa de uma mulher que ainda pode virar alvo, testemunha, problema. Se você se envolver, e essa história virar B.O, nem eu posso te proteger.
- Eu não quero proteção.
- Então seja homem pra bancar as consequências. Mas pensa, Marcelo. Pensa com a cabeça que eu ajudei a moldar. Porque eu conheço teu coração. E não quero ver você se arrebentando.
Saí da sala com o coração espremido, o respeito intacto e uma certeza dolorosa:
Quando até o único homem que você considera pai te alerta sobre uma mulher...
é porque ela tem mesmo o poder de te destruir.
Saí da sala de Arnaldo com o peso da conversa grudado nas costas.
“Ela não é pra você.”
“Pode te destruir.”
“Não vale o risco.”
As palavras dele martelavam, mas... nenhuma apagava a vontade que queimava em mim.
Eu tentei!
Tentei ser o profissional exemplar.
Tentei obedecer a lógica.
Tentei afastar o rosto dela da minha mente, apagar aquele baile, esquecer o jeito como ela me enfrentava com aquele olhar cortante.
Mas era inútil.
Bruna morava no meu sangue agora.
No jeito que eu me mexia, na forma como dormia mäl, nas punhetas mäl resolvidas que só deixavam com mais fome no lugar de saciedade.
Ela era problema.
Perigo.
E, mesmo assim, era tudo o que meu corpo pedia.
Então tomei a decisão.
Se não posso tê-la de verdade, que ao menos eu a tenha uma vez.
Que o desejo seja satisfeito.
Que o fogo seja consumido, nem que seja pra depois eu me arrepender até os ossos.
Naquela noite, voltei a passar pela avenida do apartamento. Dessa vez, não fui só de passagem.
Estacionei.
Apaguei os faróis.
Fui.
Caminhei devagar até a portaria.
E lá estava ele: Sr. Osvaldo.
Cabelos brancos penteados pra trás, camisa de botão com o nome do condomínio bordado. Ele leu meu rosto como se já me esperasse.
- Boa noite, doutor Marcelo. - disse, com aquele respeito discreto que só os mais velhos sabem ter.
- Boa, Osvaldo.
- Vai subir?
Pergunta curioso abrindo o portão.
- Vou. - respondi, seco.
Eu queria Bruna.
E não como quem quer amor.
Mas como quem precisa vencer uma guerra interna.
Queria o corpo dela na minha cama. Na parede. No chão.
Queria o gosto da boca que me desafiava, da pele que cheirava a sobrevivência e provocação.
Mesmo que fosse uma vez.
Mesmo que no dia seguinte eu voltasse a ser o delegado exemplar.
A noite era dela.
E ela seria minha.
Nem que fosse no escuro, entre lençóis suados e silêncios perigosos.
Porque certas vontades…
não nascem pra serem negadas.
O Hall do segundo andar estava silencioso.
Luz fria, cheiro de produto de limpeza.
O tipo de lugar que não chama atenção e por isso mesmo me atraía.
Hoje eu já tinha cruzado o limite antes mesmo de sair do carro.
Levantei a mão e bati. Uma vez só.
Seco. Preciso. Como se estivesse pedindo entrada pra uma cela.
Mas ali... eu queria outra prisão.
Ouvi passos do outro lado.
Passos leves, mas decididos.
Meu coração deu três batidas fortes, e pela primeira vez em muito tempo, eu perdi o controle.
A maçaneta girou.
A porta abriu.
E ali estava ela.
Cabelo preso num raäbo de cavalo. Um micro vestido, que mais parece uma camisola. De tecido fino. Preto.
A mulher que vinha me assombrando por noites inteiras.
Mais bonita do que eu lembrava.
Mais real do que eu suportava.
Os olhos dela se arregalaram quando me viu.
Mas não era medo.
Era surpresa.
Raiva, talvez. Misturada com algo que me prendeu no lugar.
- Você tá maluco? - ela sussurrou. A voz baixa, mas cortante.
Não respondi logo.
Fiquei olhando pra boca dela, pro pescoço, silhuetas de seus s***s fartos.
Cada parte dela gritava “não é pra você”.
Mas o corpo inteiro dela… me chamava.
- Talvez eu esteja. - foi tudo o que consegui dizer.
Ela segurou a porta como se quisesse fechar. Mas segurei pra que não fechasse na minha cara.
- O que você tá fazendo aqui, Marcelo?
- Me arrependendo antes mesmo de entrar.
Ela bufou, virou o rosto.
Mas eu vi.
Vi o arrepio no braço.
Vi a forma como ela mordeu o canto do lábio.
Ela tava tão no limite quanto eu.
- Eu vim porque você esta fodendo com minha cabeça, porque eu preciso te ver.
Silêncio.
Os olhos dela se encontraram com os meus.
E naquele segundo, não importava mais o que era certo ou errado.
Só importava o que ainda não tínhamos feito.
Mas sabíamos exatamente como terminaria.