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Quem visse o jeans gasto e rasgado nos joelhos, a blusa com estampa de banda de rock dos anos 1970, as botas cano alto e salto plataforma na extremidade oposta do cabelo vermelho escuro, não teria como saber quem ela era e o que fazia. Não saberiam – os interessados em decifrá-la como gente – que ela trabalhava num bar no centro. Também não saberiam que ela se chamava Trish Isabelle, que pretendia se tornar atriz profissional e vivia há pouco mais de dois anos em Paris. Morava em Montmartre com a irmã mais velha, num prédio do século XVII, com a arquitetura característica de Paris, a pierre de taille, blocos de pedra calcária.
Naquela manhã, ela caminhava para o trabalho com um livro aberto diante dos olhos e a bolsa a tiracolo balançando ao longo do corpo, quando pensou num jeito afável de dizer à irmã que detestava o carinha dela. Por mais que os dois estivessem namorando havia pouco mais de três meses, após terem-se conhecido numa boate, pela primeira vez, Simone parecia realmente interessada. Quem visse o tailleur de executiva de empresa, o cabelo loiro preso num coque baixo, a maquiagem discreta no rosto de 33 anos, os ombros retos e um ar de ligeira arrogância na inclinação do queixo, jamais imaginaria que aquela mulher no controle de tudo, havia sido fisgada por um moreno bonitão, advogado e grego. Ao conhecê-lo, Trish fez o interrogatório que os pais de ambas teriam feito se não estivessem ocupados com suas próprias vidas em Curitiba.
O grego por fim havia passado no teste. No íntimo, porém, Trish ainda desconfiava do camarada. Certa noite, Simone comentou a respeito de sua improvável alma gêmea:
–Stefanos me pediu em casamento. –falou sem sorrir.
Trish não sabia como expressar o sentimento que não sentiu. Automaticamente, estendeu-lhe a mão. Abriu a boca e, minutos depois, queria não o ter feito:
– Meus pêsames.
– O quê?
Analisou a expressão desapontada da irmã.
–Tem certeza de que quer isso, digo, se amarrar, se enforcar? – tentou não fazer cara de nojo.
A irmã fitou-a intrigada.
– Sabe alguma coisa sobre Stefanos que eu não sei? Não me esconda nada! Ele deu em cima de você?
–Nunca. – Trish riu-se e emendou: – Não sei nada sobre o grego. Mas você... sabe?
– Sei que a gente se entende, temos ótimos empregos e queremos as mesmas coisas na vida. – disse e emendou suavemente: – Gosto dele.
– Ah, sei. – deu de ombros e completou com um sorrisinho irônico: – Amor pra valer?
Simone sempre fora ótima aluna, principalmente, em matemática. As ciências exatas eram o seu forte. Por isso trabalhava na área financeira de uma empresa de computadores. Ponderação, equilíbrio e sensatez. Palavras que se aplicavam à moça que vestia terninhos bege, preto e cinza combinando com scarpins. Ao passo que a irmã mais nova combinava com outro grupo de palavras: pavio curto e impulsividade.
– Mamãe sempre diz que quem é amado é quem detém o poder, e não quem ama. – disse, abrindo a garrafa de água mineral e despejando o conteúdo no copo à sua frente.
Enquanto fitava a água deslocar-se de um lugar para outro, Trish pensou na água como a vida insípida e inodora de sua irmã.
– O que prefere Simone: poder ou paixão? – sorriu, incentivando a irmã a se abrir, se expor um pouco à luz do dia.
Ela não caiu na armadilha. Preferiu manter-se reservada como sempre.
– Paz de espírito é uma boa opção. – afirmou, bebericando a água.
– Eu troco a paz por uma tempestade dos infernos, uma paixão de encapelar a alma e arrancar o couro cabeludo do crânio – exultante, subiu no banquinho ao lado da mesa e continuou empolgada: – Um amor para sempre, alguém para abraçar durante o temporal, outro remo no barco, dedos nos dedos entrelaçados... Oh, paixão, me pegue, me agarre, mergulhe nas minhas veias e me deixe do avesso e...
– Desce do palco, maninha! – exclamou Simone, sorrindo. – É essa a sua nova personagem? Uma desmiolada balzaquiana?
Ela pulou para o chão e disse dando de ombros:
– Que nada, a desmiolada balzaquiana sou eu mesma.
– Como se você acreditasse nisso tudo, nesse arrebatamento de emoções... Pensa que me engana, não há no mundo mulher mais cínica que minha irmãzinha. – desferiu sem cerimônia.
–Acho que está confundindo cinismo com realismo, ma petit. – piscou o olho para ela.
Simone sustentou o olhar sagaz da irmã, bebericou mais um pouco da água de seu copo, ergueu-se e disse à porta da cozinha antes de sair:
– Sabe por que ainda está sozinha?
– Espero não ter de responder. – debochou.
– Era uma pergunta retórica, espertinha. Mas isso aí que você faz, debochar e ser cínica quanto ao que é realmente importante como ter uma família, um emprego estável e planos para o futuro, bem, maninha, é essa atitude que te fode a vida. – balançou a cabeça devagar e saiu.
***
Enquanto limpava as mesas e organizava-as para a a******a do bar, Trish pensava na sua carreira artística estagnada, no dinheiro curto como garçonete, no tempo que perdia tentando ser atriz de cinema na Europa. Deveria ter-se mudado para Los Angeles, como tencionara fazer antes de se decidir em viver no mesmo país que sua irmã vivia há mais de dez anos. Mas sabia muito bem que, sozinha num país estrangeiro, não aguentaria metade da pressão que sofria com os testes para os papéis que estava sempre disputando. Já não lembrava mais em quantos deles havia participado e tudo o que conseguira fora três comerciais, todos relacionados a acessórios para automóveis. Logo ela, que andava de metrô. Algumas vezes chamavam-na para uma ponta numa novela, personagens como psicopata ou secretária latina. Apenas duas cenas e já era dispensada. Tinha plena consciência da limitação de seu talento e beleza. Dava para o gasto, e não para o desperdício. Suas pretensões sempre fora o cinema underground francês, aquele tipo tachado de “cabeça” por uns e “puro tédio”, por outros. O cinema feito com orçamento restrito que cada vez mais perdia espaço nas salas de cinema, diante da invasão norte-americana.
– Precisa melhorar o seu francês. – disse o chefe, organizando a estante dos Bourbons, atrás do balcão.
– É, eu sei, por isso me escalam como a imigrante latina com duas falas: oui e merci.
Jean Pierre era alto, ruivo, usava cavanhaque longo e trançado, cabeça raspada e enormes olhos verdes. Era belga, gay e um sujeito legal.
– E até o seu merci é carregado, ma chérie. – riu-se.
– Mèrde. – brincou, estendendo-lhe uma garrafa de uísque que custava a bagatela de 200 euros a dose.
– O que aconteceu com sua carreira no Brasil? – indagou, curioso, descendo os três degraus da escadinha em frente à estante de garrafas.
– Não vingou. Na verdade, sempre gostei mais de escrever histórias e até fiz um curso para roteirista, mas, sei lá, não tenho grandes talentos para isso também.
O chefe perscrutou-lhe o rosto, mascou duas vezes o chiclete e disse criticamente:
– O que você quer ser quando crescer, Trish?
Ela riu, ajeitando o porta-guardanapo no lugar sobre o balcão.
– Não quero crescer.
– E quem quer? Nicolas, por exemplo, passou a madrugada inteira jogando X-box. Adianta ter 35 anos na cara e agir como um adolescente? – pôs as mãos na cintura e alçou as sobrancelhas de modo afetado. Continuou com a expressão séria: – Mas uma hora o tempo nos cobra a maturidade que tanto queremos ignorar. Menos para o Nic, ok! – ironizou, sorrindo com simpatia.
Ele se referia ao namorado com quem vivia há pouco mais de sete anos. Para Trish, uma vida inteira, já que os seus romances duravam exatamente dois dias após a primeira transa. Por quê? Era sempre a mesma história: garoto, aproximação, paixão, cama e nunca mais. Ela era aquele tipo de mulher que alguns homens consideravam como “mulher de uma noite só”.
–Sabia que a toda poderosa Simone joga vídeo game para relaxar?
–Não diga isso perto do Nic, senão ele vai me encher os tubos.
Trish olhou ao redor, admirando a decoração discreta do lugar, que misturava rusticidade à sofisticação. As paredes eram rebocadas, brancas, e sustentavam logo à entrada e num longo corredor, o balcão de aço diante das cadeiras altas. Em seguida, entrava-se no coração do bar, onde, num pequeno quiosque arrebatado por prateleiras de bebidas e ladeado por um balcão refrigerado de vidro, ganhava-se o espaço intimista com as cadeiras e mesas pretas em contraste com o piso de cerâmica clarinho, os vasinhos de bonsai espalhados por todos os cantos e quadros com pinturas que, para Jean Pierre, eram eróticas e para Trish, rabiscos imprecisos. Obras que o dono do lugar havia adquirido nas exposições de um amigo seu, um artista que despontava no cenário artístico parisiense.
– Quem reservou as mesas de fundo, no mezanino? – apontou em direção às mesas sobre a plataforma em forma de U, no segundo andar, e voltou-se para Jean Pierre: – Uma banda de rock como da vez anterior ou Marc Lavoine e seus súditos? – brincou.
O bar de Jean Pierre não fazia reservas, por isso mesmo quando havia mesas reservadas, era porque alguém muito importante ou famoso apareceria por lá.
–Ah, sorry, chérie, mas não posso falar. Foi-me pedida discrição total sobre a presença de Marcel Ferrer, hoje, à noite, na nossa humilde taberna. – falou com um sorrisinho m*****o. – Não espalhe, viu? O empresário dele é um armário de cinco metros e exigiu que não chamássemos a atenção da imprensa. Parece que o nosso artista está deprimido e com bloqueio para criar. – bateu palmas, esfuziante e continuou: – Voltou há poucas semanas do Japão e, agora, não sai mais de casa.
–Vi um programa na tevê sobre o tal gênio, o artista das ruas, como dizem, não?
– Oui, oui. Ele é espetacular. Sabe aquelas esculturas nas plataformas do metrô? São dele; lindas, eróticas e perfeitas. Os galhos se agarram uns aos outros como braços e pernas humanos.
–Metade dos parisienses quer incendiar aqueles troços.
–Troços? É arte, pura arte! – balançou a cabeça com irritação e emendou: – Quando construíram as pirâmides do Louvre também queriam incendiá-las, assim como com a Torre de Montparnasse. Mon Dieu, em Paris, só têm incendiários e trogloditas?
Ela não quis bater boca com o chefe. Entretanto, sabia também que Marcel Ferrer além de ser considerado um gênio e um ícone da arte que misturava teatro, fotografia, música e pintura, era uma pessoa insuportável e antipática. O filho de Lyon que através de sua arte transformava a paisagem cotidiana parisiense. O povo francês era bastante estranho.
–Então é o seguinte, beautiful girl, você ficará responsável somente pela mesa de monsieur Ferrer. Servia-o como se servisse a um rei! Ele me ama e eu o amo. Somos amigos há bilhões de anos, e se algo der errado, corto os seus pulsos e os daquele anão que está passando lá na rua.
Trish virou-se e viu um anão usando jaqueta e calça jeans.
–Quem é?
–Não faço a menor ideia. – disse indiferente e completou empertigando-se: – Agora, prepare as mesas para a nossa celebridade.
Ela preparou as duas mesas com quatro lugares, reservadas para a celebridade que não compareceu ao bar, desapontando Jean Pierre e propiciando alívio a Trish. Tinha certeza absoluta de que se o artista resolvesse ter os seus chiliques de pop star, ela o mandaria à m***a sem baldeação.
No outro dia, na coluna de variedades dos jornais, a informação sobre a passagem de Marcel Ferrer pelo BAM Bar à Manger – concorrente do Code 75 de Jean Pierre, na mesma rua – após coquetel no Palais de Tokyo. Avesso a fotografias, abaixo da imagem de um de seus quadros – a imagem em preto e branco de uma mulher nua subindo os degraus de uma escada para o nada, a legenda: Monsieur Ferrer prepara-se para a montagem da peça Tu Es Ma Came.
***
Ela prendeu os cabelos no alto da cabeça enquanto equilibrava a alça da bolsa sobre um ombro e o pacote da padaria com croissants entre os dedos. Aspirou no ar o cheiro da cidade. Fechou os olhos e experimentou mergulhar na umidade de Paris, no seu orvalho particular, caminhando sem pressa pelas calçadas antigas de ruas estreitas. Estava apaixonada por Paris, vivendo o ápice da história entre ambas e aguardando, por certo, que o desfecho fosse o amor, e não a frustração e a volta ao Brasil. Mas como uma boa projeção, a ilusão de ver na cidade a perfeição em todos os ângulos e imagens, tornavam-na refém de sua própria criação.
Talvez Paris nada mais fosse que um estado de espírito, uma vontade de amar ou o sonho acordado de um encontro marcado pelo destino.
Ao abrir a porta do prédio, sentiu outro odor, mais forte que o do croissant ou o que aroma natural da capital francesa, era tinta óleo.
Subiu a escada que levava ao seu apartamento e, à medida que se aproximava do seu andar, mais forte o cheiro ficava. No lance final da escada, bufando e quase cuspindo os pulmões, Trish encontrou a porta do apartamento ao lado do seu, aberta. A luz amarela do sol se jogando e derramando-se pelo assoalho gasto, de madeira escura, opaco. Era um apartamento antigo e velho ao mesmo tempo. Como tudo naquele bairro: antigo, velho e cult. Cenário perfeito para um escritor esquecer-se de escrever.
Deu uma olhada para o interior da sala do apartamento do vizinho e verificou que, além de não ter móveis, metade das paredes estava lixada, preparada para a primeira demão de tinta. Como não conseguiu bisbilhotar a respeito do tamanho do lugar, entrou mais um pouquinho, tentando decifrar o número de dormitórios que possuía. Parecia ter o dobro do tamanho do seu apartamentinho com a irmã. E, mesmo sendo duas vezes maior, ainda assim era pequeno. Por isso quase caiu para trás ao esbarrar no tórax de camiseta preta salpicada de lilás.
Dentro da camisa um homem jovem, loiro, olhos verdes, cabelos bagunçados na altura dos ombros e um sorriso de “credulidade nos anjos.” Ele segurou-a pelos ombros antes que desabasse no chão do alto do seu plataforma.
–Desculpe, eu...estava curiosa em relação ao tamanho desse lugar. Sabe se ele será posto para alugar?
–É espanhola? – indagou, sorrindo amplamente.
–Não, made in Brésil, e você? É croata?
Ele riu com vontade. Aparentava pouco mais de 22, 23 anos. E era lindo de doer. Coisas da França, pintores lindos, mesmo de paredes.
–Non, daqui, acabei de brotar do assoalho. – ele fez um gesto amplo ao redor de si e emendou: – Dois quartos e duas sacadas, e está à venda. Pai morreu, filhos querem o dinheiro. Quer comprar?
–Você é um dos filhos?
Ele riu mais uma vez e enfiou as mãos nos bolsos frontais do jeans, os cabelos caíram para frente do rosto e voltaram para trás, ao balançar a cabeça negando:
–Sou apenas o pintor, um dos filhos do proprietário me contratou e devo entregar o lugar pintado em dois dias.
Ambos olharam ao mesmo tempo para as paredes ásperas, calculando, mentalmente, se o prazo seria cumprido.
Trish voltou-se para o rapaz e perguntou:
–Está sozinho na empreitada?
–Oui, sempre sozinho. – respondeu com um sorriso charmoso.
Trish resolveu esconder os dentes, bastava uma perguntinha boba para atiçar o ego masculino. Deu-lhe as costas e ergueu a mão acenando por cima da cabeça:
–Bom trabalho, então.
Ouviu uma risada divertida.
Eram quatro horas da tarde quando foi acordada por um barulho alto e seco. Sentou-se na cama, descabelada. O quarto estava escuro, e ela preferiu ligar a lâmpada do abajur a do lustre. Bocejou. Mais um estrondo forte. Irritada, pulou da cama e avançou em direção à porta. Quase tropeçou no tapete de entrada ao perceber que a barulhada vinha do apartamento ao lado. Bateu forte na porta do vizinho. O pintor estava sorrindo antes mesmo de abri-la:
–Problemas? – os olhos deslizaram pelo corpo feminino enfiado num vestido indiano escuro, longo e transparente.
–Será? – indagou com ironia, alçando as sobrancelhas e emendou: – Sabe, cara, trabalho a noite inteira e preciso dormir um pouco como qualquer humano!
– Comment? Pode falar mais devagar. – ergueu as palmas das mãos para frente, num gesto de rendição.
–‘Mim’ trabalhar, Tarzan atrapalhar. – apontou para si e para ele. – Entendeu, agora? Para de fazer tanto barulho!
Ainda sorrindo, os braços cruzados em frente ao peito, ele disse tranquilamente:
–Non.
Trish arou os cabelos com as mãos e estreitou os olhos avaliando-o:
–Não o quê?
–Continuarei batendo contra a parede para acordá-la. – disse e apontou para o chão. –Preciso de abridor e companhia para o piquenique.
Ela olhou na direção em que ele apontava e viu uma toalha xadrez espichada sobre ao assoalho sujo, uma garrafa de Cabernet e uma cestinha com pães e queijos. Voltou-se para o rapaz que a observava com um sorriso que salientava as covinhas ao redor dos lábios.
–Humm, que tal?
Alarme vermelho. Todos os soldados no front, ataque do inimigo. Artilharia pesada.
–Preciso dormir, trabalho hoje à noite. – deu-lhe as costas, entrou em casa e trancou a porta.
Não dormiu.
Por que ela se meteria em complicação? Que tipo de mulher com os seus antecedentes se envolveria novamente com um homem? Preferia a segurança da solidão a dar a cara à t**a noutra fria. O que acontecera com sua última suposta história de amor? Investira dois meses em encontros com um antigo colega de faculdade. Marcelo reaparecera em sua existência através de amigos de amigos, numa festa. Ele marcara em cima e, caso não fosse bonito e autoconfiante, seria o maior dos chatos. Trish cedera à pressão. Aceitara sair com ele. Café, almoço, jantar. Em dois meses, declarou-se apaixonado. Ela não acreditou. Ele provou tatuando o nome dela no ombro. Trish considerou tal atitude brega. A obsessão do cara aumentava à medida que ela desacreditava-o e tentava descartá-lo de todo o jeito. Carência do menino? Não – ela descobriu depois – arrogância. Ele queria dispensá-la, não aceitava ser dispensado. Jogos e truques. O jogo do prazer era cansativo e inútil. Ela já acreditava que talvez gostasse de Marcelo, já que não conseguia livrar-se dele. Uma noite de amor. Marcelo teve-a em seus braços e provou a si mesmo que era viril. Duas semanas depois, Trish viu-o num restaurante jantando com uma loira com o decote até o umbigo. Não houve sofrimento ou qualquer outro tipo de dor que não o remorso por ter-se doado – nem que fosse por breves minutos – nua, toda, para o corpo do outro invadi-la. Raiva de si mesma por não acreditar nos seus instintos e na experiência que se acumulava nas costas. O que sentia era a ardência fugaz da mediocridade, isso a incomodava e até levava-a às lágrimas. Não acreditava em contos de fadas nem em príncipes, mas também não queria passar a vida inteira vivendo histórias medíocres que no fim a envergonhavam por ter participado. Eles colocavam-na num pedestal para depois chutá-lo na base. Quando se fazia de difícil, desistiam ou insistiam até conseguir o s**o, o precioso o*****o de segundos. Se ela cedia, comemoravam a vitória e os pontos no placar da masculinidade e dispensavam-na em favor da nova aventura. Trish topava entrar no jogo, aceitava a negociação, s**o por s**o. O que fazia odiar a partida era o jogador desleal, o mau perdedor, o falso ganhador. Aquele que escondia as cartas na manga, o ladrão. Custava-lhe dizer que queria apenas s**o sem amor?
Afastou os pensamentos que a incomodavam e enfiou-se na cozinha a fim de preparar o jantar. Simone não tinha hora para chegar, mas gostava de deixar um prato preparado para ela. Desde a infância eram unidas, únicas filhas de pais absorvidos pelas próprias profissões: a mãe, advogada; o pai, piloto comercial.
Derramou o espaguete na água borbulhante e o molho de tomate pronto numa tigela, que foi aquecido no micro-ondas. Esperou a massa amolecer um pouquinho, escorreu-a sobre uma travessa de inox, despejou o molho e salpicou tudo com o queijo ralado. Quinze minutos, e o jantar estava pronto. Comeu, sentada sobre o tapete, diante da tevê.
Após o jantar, telefonou para o atelier de madame Souchon. Marcou entrevista com a professora de arte para o dia seguinte. Havia alguns meses que juntava dinheiro para fazer um curso de pintura. Estava em Paris, sentia-se na obrigação de expandir seus horizontes. Já se imaginava diante do cavalete, usando boina e tingindo telas com cores que imitassem e refletissem as luzes da cidade.
Abriu os janelões protegidos pelas pequenas grades e observou na rua um casal de idosos caminhando devagar, de mãos dadas. Resmungou baixinho e encaminhou-se para o quarto. Quando o telefone tocou na sala, ela correu para atendê-lo:
–Mademoiselle Silvá? – a voz era de uma mulher. Os franceses sempre pronunciavam errado o seu sobrenome, enfatizando a última sílaba.
–Sim. – hesitou, mordendo o lábio inferior. Listou mentalmente os lugares onde devia dinheiro.
–É da Lumiére prodution, gostaria de agendar um horário para o seu teste. – disse de forma profissional.
Trish respirou fundo e sorriu.
Desligou o telefone com um teste marcado. Desta vez não seria um comercial de automóveis. Trinta segundos e duas falas para convencer o telespectador a comprar um novo inseticida.
Cantarolando, alegremente, ela seguiu para o bar de Jean Pierre