Olho pela janela e avisto a entrada de Salvatore.
Mantive o máximo de contato com mamãe – mais por que ela queria.
Com papai, nunca se quer respondi a uma só carta. O tempo curara a dor em minhas costas, mas, as cicatrizes ainda estavam lá. Mas, a dor emocional causada na alma de uma jovem de 15 anos, que se viu obrigada a despir parte do corpo, para que o próprio pai a açoitá-la, fazendo seus amigos de bolso como plateia, era demais. Era imperdoável.
O cocheiro acelerou e em poucos minutos passávamos pelo centro da cidade. Muitas coisas haviam mudado, sendo a maior mudança, o término da reforma da igreja, que muitos disseram que tinha sido um golpe do prefeito da época para conseguir votos.
A antiga capela se torna uma igreja grande e repleta de arranjos.
A carruagem seguiu rápido e vinte minutos depois, passávamos pelos enormes portões de ferro de minha velha casa.
Olhei pela janela e muitas coisas haviam mudado.
O jardim estava ainda mais arborizado e muito bem cuidado.
Os estábulos não mais existiam. Os animais ficavam soltos a alguns metros de distância numa área cercada.
A carruagem parou bem em frente a porta. Meus olhos encontraram o belo par de olhos azuis e uma cabeleira loura.
Saltei da carruagem e abracei mamãe fortemente.
– Minha filha – disse ao me apertar – senti tanto a sua falta.
– Também – olho por cima de seu ombro e meus olhos encontram um bigode com alguns fios brancos.
Afasto-me de mamãe e o observo se aproximar.
– Não vai falar com seu pai? – indaga com a voz grossa.
– Olá pai.
– Olá Audrea – diz calmamente – fez uma boa viagem?
– Sim.
Ficamos alguns segundos em silêncio.
– Vamos, temos muito o que conversar – diz mamãe me puxando pelo braço.
Adentramos no casarão e notei que muito havia mudado ali dentro também. O ambiente estava mais claro, mais arejado. As cores escuras e opacas, não mais faziam parte da enorme sala de visitas.
– Está tudo tão… lindo mãe. Você que fez?
Mamãe sorri e assente orgulhosa.
– E você querida, como está? Aconteceram tantas coisas, tantas coisas – diz eufórica – todos os seus primos casaram, até Stanley, o feinho – diz rindo.
Rio e observo tudo ao meu redor.
Oito anos se passaram e tantas coisas haviam mudado.
– Alda está fazendo seu prato preferido para o almoço – diz.
– Alda? Ela, está aqui?
Mamãe assente e eu corro para a cozinha.
– Espero que não tenha esquecido nada – digo e ela pára o que está fazendo e se vira.
– Audrea!
Corro até ela e a abraço fortemente.
Alda sempre fora minha guardiã. Sempre cuidara muito bem de mim. Me ajudava a fugir de papai quando aprontava e ele vinha atrás de mim com o chicote na mão.
– Minha filha, quanto tempo.
– Também senti muito a sua falta.
Ela me mostrou o ensopado na panela e agradeço aos céus por estar em casa.
Subi para meu quarto e constatei que nada mudara ali.
– Não mexi em nada. Queria ter uma lembrança mais viva de você – disse mamãe na porta.
Olho-a e sorrio.
Passo a mão em minha cama e percebo o quanto sentira saudade.
Os anos que passei no convento sob os cuidados de minha tia, foram os mais difíceis. Vivendo sempre sob rédea curta, ela fazia questão que eu seguisse também todos os costumes adotado pelas freiras.
Não podia se quer olhar para o lado na hora das refeições.
Se por um lado achei r**m e difícil, por outro, acabei descobrindo uma fé que jamais pensei que tivesse.
Tomei gosto pelo estudo bíblico e passei a ajudar na catequização de crianças e jovens.
– Deixarei você a sós por um momento, pedirei a Alda que coloque mais um prato – diz mamãe.
– Mais um prato? – rebato.
– Sim, temos visita – diz e sai.
Quem seria?
Desvencilho-me de tal preocupação e sigo para janela. Apesar de todos os problemas que enfrentei com meu pai, senti falta de casa.
– Espero que tenha tirado algum proveito desse seu “retiro espiritual de oito anos”.
Olho para papai de relance e tento não ser tão rude.
– Sim pai, aprendi a ser mais paciente.
– Que bom – ainda olhando pela janela, ouço-o se aproximar – Audrea – encaro-o seriamente – já faz tanto tempo, eu já esqueci, sua mãe já esqueceu…
– Não estou falando nada pai.
– Esse é o problema. Se dissesse, eu saberia que ainda está com raiva de mim, mas, ficando calada, fico na incerteza, e isso me dói – dor? Meu pai falando de dor?
– Pai, eu não estou com raiva de você e nem de ninguém. É só que… É difícil pra mim, ter de encarar oito anos de distância de uma hora pra outra, não é algo muito fácil de se fazer.
– Sei que no passado, tivemos nossas diferenças, mas, quero que saiba, que apesar de tudo que aconteceu, você é minha filha, e eu a amo Audrea. Depois do que aconteceu com seu irmão, eu… – a morte de John ainda era uma ferida que não cicatrizara na família.
Passaram-se dez anos desde a sua morte, mas, tal fato ainda era uma tormenta para a família. Evitamos durante muitos anos falar o nome de John na frente da mamãe.
– Pai, eu entendo – digo colocando a mão em seu ombro – vamos esquecer o passado e recomeçar. É disso que precisamos, recomeçar. Está bem?
Papai sorriu eme abraçou.
Por mais que eu quisesse perdoá-lo, ainda estava magoada, mas estava disposta a trabalhar isso a cada dia.
– É muito bom tê-la em casa querida.
Sorrio e ele sai.
Ele fecha a porta e eu torno a olhar pela janela.
Estava decidida a fazer algo muito diferente. Queria dar continuidade aos meus trabalhos de catequização.
Queria ocupar meu tempo estudando e aprimorando tudo que tinha aprendido.
Decidi tomar um banho e trocar de roupa.
Desço para almoço e ao chegar na sala, deparo-me com um homem alto de costas.
Ele conversava com papai, como se fossem amigos de longa data.
– Aí está ela – diz papai.
O homem se virou e me encarou com seus enormes olhos castanhos.
Ele era esguio e um pouco mais alto que eu.
– Olá Audrea, finalmente nos conhecemos.
Assento confusa.
– Este é Benicio Valtez – papai o apresenta – ele acabou de voltar da guerra, e sua família se hospedará aqui do lado.
– Na mansão do Cortês? – rebato.
– Meus pais compraram – diz – nos mudamos ainda nesta semana.
Ele falava calmo e parecia ser gentil, mas algo me dizia que por trás de toda aquela calmaria, havia um segredo, um mistério.
– Olá Ben – diz mamãe ao se aproximar – vamos a mesa? Alda já serviu.
Seguimos para a sala de jantar e nos acomodamos.
Papai sentou na ponta e mamãe ao seu lado direito.
Ocupei a cadeira da ponta do lado esquerdo, e Benicio sentou-se a minha frente.
– Então Benicio, quando será a mudança? – mamãe pergunta.
– Esta semana. Vim na frente para ajustar os últimos detalhes. Papai está ocupado com os negócios, então deixou em minhas mãos os trâmites da mudança – diz sorrindo.
O ensopado estava divino.
– Então Audrea – diz Benicio enquanto toma um gole de café – soube que passou quase dez anos num convento. Como foi a experiência?
– Inovadora – digo forçando um sorriso.
– Em algum momento pensou em virar uma freira?
Analiso sua pergunta, e sim, pensei. Muitas vezes pensei em ficar e nunca mais voltar. Mas, por algum motivo, meu coração sempre me dizia para voltar para Salvatore.
– Sim, mas, acho que não suportaria passar tanto tempo longe de casa. Já passei tempo demais fora.
Mamãe sorri.
– Benicio também passou um bom tempo fora – diz papai – foram cinco anos servindo ao país.
– E como foi a experiência? – pergunto.
– Inovadora – responde ele sorridente.
Quando Benicio foi embora, subi para meu quarto. Queria descansar. A viagem de duas semanas fora longa.
– Audrea? – mamãe aparece na porta.
– Pode entrar.
Ela entra e senta na cama.
– O que achou do almoço?
– Bom. O ensopado estava maravilhoso.
Ela sorri.
– Me refiro a Ben.
Olha-o confusa.
– O que tem ele?
– É um bom rapaz, não acha? – sinais de alerta apitaram em minha mente.
– É o que parece.
– Bem, ele, pediu para que eu lhe perguntasse se não gostaria de um jogo de criquite, amanhã tarde.
– Ele pediu?
– Sim.
Respiro fundo e busco as palavras para não sair rude demais.
– Mãe, estou entendo o que quer me dizer, mas, eu não pretendo dar a permissão para que ele me corteje.
– Porque?
– Porque não quero. Não quero ir a jogo algum, quero apenas ficar aqui e descansar.
– E vai ficar trancafiada o dia todo aqui?
– Não, amanhã irei à igreja. Procurarei saber se posso fazer meu trabalho de catequização com as crianças da cidade.
Mamãe me olha decepcionada.
– Filha, ele foi tão gentil em aceitar nosso convite para o almoço…
– Justamente no dia de minha chegada… Mãe, por favor, converse com papai sobre isso. Não quero discutir com ele logo de cara por algo tão banal.
Vendo que eu não cederia, ela assente. Relutante, mas assente.
Ela sai do quarto e eu pego meu caderno.
Adorava escrever. Tinha se tornado minha atividade favorita enquanto estive no convento. Quando não fazia os a fazeres domésticos, escrevia poesias, poemas e até histórias de romance.
Acomodei-me em minha cama e decidi descansar.
Cedo iria até a igreja para tomar informações.
Passei as mãos nos lençóis e sorri de alegria. Era tão bom estar em casa.
Mas ao mesmo tempo que sentia uma enorme alegria por estar ali, Benicio, um belo rapaz que m*l conhecia, já se tornara motivo de preocupação para mim.
Se papai pretendia dar-lhe a permissão para que ele me cortejasse, já teríamos aí um ponto de partido para uma discussão acirrada entre nós dois.
Não queria e não permitiria que ele concedesse tal coisa a um completo estranho.