O despertador tocou antes que o sol tivesse coragem de aparecer, e eu já estava de pé, sentindo cada músculo protestar por causa do esforço do dia anterior. A moto simples estacionada na garagem parecia menor a cada manhã, mas eu não podia me dar ao luxo de reclamar. A prioridade era clara: os remédios da minha vó. Nada mais importava agora.
Enquanto me preparava, olhei para as parcelas que ainda tinham que ser pagas do apartamento. Cada número, cada valor, era como um peso extra no meu peito. Eu respirava fundo, tentando organizar minha mente e lembrar que, pelo menos por enquanto, a urgência maior estava resolvida. Minha vó teria os remédios, e isso já era mais importante que qualquer conforto temporário.
A rotina da manhã começou com café forte, rápido, e uma checada na agenda do dia. A moto precisaria me levar para a loja e de volta para casa, e cada trajeto era uma lembrança da realidade que eu agora enfrentava. O vento frio batia no rosto quando eu saí, e eu senti aquela sensação estranha de liberdade misturada com resignação. Antes, eu entrava no carro novo e sentia o poder de ter o controle absoluto da minha vida. Agora, cada solavanco da moto me lembrava que conforto vinha com preço, e que sacrifícios eram inevitáveis.
Chegando à loja, respirei fundo e me joguei de cabeça no trabalho. Hoje não podia perder tempo. Cada cliente que entrava precisava sentir não apenas confiança, mas também aquele meu toque especial: charme, humor, atenção aos detalhes e a sensação de que eu realmente me importava com eles.
— Bom dia, Beto! — chamou Djalma, enquanto ajeitava os papéis na mesa. — Parece que você está com uma energia diferente hoje.
— Energia de quem não dormiu direito pensando na vó — respondi, sorrindo de canto de boca. — Mas não se preocupe, ainda sei como fazer o cliente rir e sair feliz.
E então comecei. Cada apresentação de carro era um espetáculo de atenção aos detalhes. Eu mostrava os assentos, falava da mecânica, explicava os diferenciais, mas sempre jogando um comentário engraçado ou uma piada leve para quebrar o gelo. Muitas vezes as pessoas riam, olhavam para mim com aquele brilho nos olhos que dizia: “Ele sabe como vender… e ainda é divertido.”
Os clientes mulheres, é claro, sempre davam uma olhada de admiração, mas agora eu estava mais focado em algo maior. Não era só charme ou conquista: cada venda significava um passo a mais para garantir que minha vó tivesse o que precisava. Cada assinatura de contrato, cada aperto de mão, cada sorriso satisfeito era combustível para continuar.
No meio da manhã, enquanto registrava uma venda, meu celular vibrou. Era minha vó. Eu atendi imediatamente, a ansiedade apertando meu peito.
— Alô, minha querida vó! — disse, tentando soar calmo, mesmo sentindo o coração disparar. — Como você está hoje?
— Ai, Beto… — a voz dela soava cansada, mas ainda com aquele fio de humor característico. — Você sabe que eu tô viva, né? Não precisa se preocupar.
— Vó, você tá escondendo alguma coisa de mim, não tá? — perguntei, franzindo a testa. — Eu sinto… você parece triste.
— Triste eu? Imagina, Beto! Eu tô ótima… só cansada de tanta coisa, mas isso é normal pra uma senhora da minha idade.
Suspirei fundo, sabendo que ela estava tentando me proteger, mas não podia deixar passar. — Vó… eu sei que você não gosta de me preocupar, mas eu não vou aceitar que esconda nada de mim. Qualquer coisa, eu resolvo com você.
Ela fez uma pausa, e eu podia ouvir o silêncio do outro lado da linha, o barulho suave de alguém respirando fundo, tentando ganhar coragem. — Tá, tá… você me pegou, Beto. — Ela riu, mas era um riso fraco. — Só que você não vai conseguir me convencer de nada agora.
— Vó… — falei, insistindo. — Eu sei que tem alguma coisa errada. Eu não vou descansar até saber o que é.
Ela suspirou novamente. — Tá, meu querido… eu prometo que vamos conversar melhor quando você vier me visitar. Mas agora, só quero que continue se cuidando, trabalhando direito e… — ela fez uma pausa dramática, me arrancando um sorriso — não se matando de preocupação, tá?
Eu desliguei, mas o coração ainda batia acelerado. Eu não podia esperar. Precisava fazer algo mais. Precisava encontrar alternativas, qualquer forma de ajudar minha vó sem prejudicar minha própria vida financeira.
Enquanto continuava vendendo carros, comecei a pensar em ideias. Talvez pudesse oferecer serviços extras, consultorias rápidas, entregar algum serviço personalizado para clientes especiais. Cada possibilidade era avaliada, calculada, imaginada em detalhe: o tempo que levaria, o esforço, os custos, o retorno financeiro. Tudo precisava ser eficiente, rápido, suficiente para gerar renda sem comprometer a rotina da loja.
Entre uma venda e outra, ajustava minha estratégia, conversava com clientes antigos, fazia follow-up de propostas, enviava mensagens oferecendo condições especiais, fazia questão de ser atencioso, detalhista e engraçado ao mesmo tempo. Cada ação era um passo em direção ao objetivo maior: garantir que minha vó não precisasse se preocupar, que os remédios chegassem a tempo e que eu mantivesse a estabilidade financeira mínima para sobreviver.
No fim do dia, cansado, suado, mas satisfeito com os resultados, subi na moto para voltar para casa. O vento frio batia no rosto, lembrando-me da simplicidade do veículo, mas também da liberdade que ele oferecia. Cada quilômetro percorrido era uma pequena vitória, cada semáforo superado um lembrete de que eu estava fazendo o que podia, sacrificando o que era meu para garantir o bem-estar de quem eu amava.
Chegando em casa, me joguei no sofá, ainda refletindo sobre as opções que poderia explorar. Talvez pudesse fazer algumas entregas rápidas, dar aulas de direção para iniciantes nos finais de semana, oferecer consultorias para clientes que quisessem comprar carros online. Cada ideia precisava ser analisada, mas tudo valia a pena se significasse mais segurança e saúde para minha vó.
Enquanto olhava para a moto estacionada na garagem, sentindo o cheiro de gasolina misturado com a brisa da noite, percebi algo importante: sacrifício doía, mas tinha propósito. Meu carro novo se foi, meu conforto diminuiu, mas a missão maior estava sendo cumprida. E isso me dava uma sensação de força que eu nunca tinha sentido antes.
— Vamos conseguir, vó… — murmurei, fechando os olhos e respirando fundo. — Pode não ser fácil, pode ser um caminho cheio de obstáculos, mas eu vou dar um jeito. Você merece isso, e eu não vou descansar enquanto não estiver tudo resolvido.
No silêncio da noite, enquanto o vento frio soprava pelo apartamento, eu percebi que aquele esforço, aquela dedicação intensa, estava moldando algo maior dentro de mim. Não era apenas sobre carros, vendas ou charme. Era sobre responsabilidade, amor e a capacidade de lutar por quem se ama, mesmo que isso significasse abrir mão de conforto, luxo e comodidade.
E ali, sentado no sofá, com a moto simples estacionada do lado de fora, eu jurei para mim mesmo que não importava quanto trabalho fosse necessário, quantas noites sem dormir, quantas negociações precisassem ser feitas: eu faria qualquer coisa para garantir que minha vó tivesse tudo que precisava. Eu era Beto, o galã da loja, o conquistador charmoso, mas também… o neto que lutava com unhas e dentes por quem amava.