O sol ainda nem havia surgido quando acordei com o coração pesado, a mente rodando sem parar. A ligação da minha tia na noite anterior ainda ecoava nos meus pensamentos, cada palavra dela retumbando na minha cabeça: “os remédios são caros… ninguém consegue comprar agora…” Meu apartamento parecia menor, mais silencioso, quase frio. Eu me joguei na cama, encarando o teto, sentindo a realidade pesar em cada fibra do meu corpo. Minha vó precisava de ajuda, precisava dos remédios… e eu não podia me dar ao luxo de esperar por soluções impossíveis.
Enquanto tomava café, olhei para a chave do meu carro novo, brilhando na mesa da cozinha. Ele era lindo, impecável, aquele sedã que eu tinha comprado com tanto esforço, cada parcela paga com suor e planejamento. Eu sentia um orgulho silencioso cada vez que entrava nele, o motor rugindo com aquela força que me dava a sensação de poder. Mas agora, olhando para ele, sabia que não podia mais ter aquele luxo, não enquanto minha vó estivesse precisando.
— Droga… — murmurei, apertando o café quente entre as mãos. — Não é justo, mas… é a única saída.
Minha decisão foi rápida, quase dolorosa. Eu ia vender meu carro, aquele símbolo do que eu tinha conquistado com tanto esforço, para conseguir o dinheiro necessário para os remédios da minha vó. Minha consciência não me deixava escolher outra opção. Era mais que dinheiro: era amor, responsabilidade, e a certeza de que eu não podia deixá-la sofrer sozinha.
No caminho até a concessionária, passei em frente ao meu carro uma última vez. Me aproximei, passei a mão na lataria brilhante, senti o cheiro do couro novo e o aroma característico de veículo recém-saído da loja. Suspirei fundo, como se me despedisse de um amigo. Cada detalhe me lembrava de noites de trabalho, negociações longas, risadas com clientes e até momentos sozinho, ouvindo música no caminho para casa.
— Adeus, meu amigo… — murmurei baixinho. — Você vai fazer falta. Mas a vó precisa mais do que eu preciso de você.
Cheguei à concessionária, o coração apertado, e expliquei a situação ao gerente. Ele olhou para mim com surpresa, mas compreendeu quando falei sobre a urgência, sobre a minha avó, sobre a vida real batendo mais forte que qualquer luxo. Em poucas horas, o negócio estava fechado. O valor obtido com a venda do carro foi suficiente para cobrir os remédios caros que minha avó precisava, e eu senti uma mistura de alívio e tristeza que era quase física.
Saí da concessionária, o bolso cheio de dinheiro que deveria ser usado com cuidado extremo, e senti um vazio estranho. Meu carro se foi, e com ele, parte da minha rotina confortável. Mas havia uma missão maior — minha vó precisava de mim, e eu não podia falhar.
Agora, precisava me adaptar à nova realidade: uma moto simples, comprada de última hora, seria meu meio de transporte. Ela era pequena, modesta, com alguns arranhões e um cheiro de gasolina que não combinava com meu apartamento chique ou com meu estilo habitual. Mas era funcional, suficiente para ir e voltar do trabalho, e pelo menos me daria mobilidade.
No primeiro dia usando a moto, o vento batendo no rosto, percebi o quanto havia me acostumado com o conforto do carro. Cada buraco na rua, cada solavanco, cada mudança de marcha era um lembrete da decisão que eu tinha tomado. Mas, apesar da falta de luxo, havia algo libertador naquele simples veículo. Era como se cada quilômetro percorrido me lembrasse da prioridade da vida: cuidar da família, mesmo que isso significasse abrir mão de conforto, status e aparências.
No trabalho, o dia começou como sempre, cheio de clientes, negociações e pequenas vitórias. Mas, diferente de antes, eu tinha uma tensão constante correndo por dentro: cada venda, cada conversa, cada sorriso que eu arrancava de um cliente agora vinha com a consciência de que tudo aquilo precisava contribuir para a estabilidade financeira da minha vida sem comprometer o que eu tinha reservado para os remédios da minha vó.
Entre uma negociação e outra, eu pensava nela, imaginando seu sorriso fanfarrão que agora parecia misturado com preocupação. Eu queria ligar para saber se os remédios já tinham chegado, se ela estava melhor, mas ainda não podia me permitir perder o foco. Cada segundo de distração poderia significar um cliente insatisfeito, uma venda perdida, e cada venda era essencial para manter a vida funcionando apesar do sacrifício do carro.
— Beto! — chamou Djalma, meu colega na loja, piscando para mim de longe. — Parece que você tá mais sério hoje. Algum problema?
— Nada que você precise se preocupar — respondi, esboçando um sorriso. — Só ajustando algumas prioridades, sabe? Às vezes a vida bate mais forte que a rotina, e a gente precisa se adaptar.
Ele arqueou a sobrancelha, curioso, mas decidiu não insistir. Aquele era meu lado pessoal, e nem todos precisavam entender.
A moto, apesar de simples, me lembrava de cada escolha que eu havia feito. Cada trajeto era um lembrete de sacrifício, mas também de responsabilidade. Eu precisava garantir que minha vó tivesse os remédios, que ela estivesse segura, e que a vida continuasse apesar das dificuldades.
No fim do dia, depois de uma jornada intensa de vendas, negociações e clientes satisfeitos, peguei a moto para voltar para casa. O vento batia no rosto, os arranhões na moto me lembrando que tudo tinha um custo, e eu sentia um misto de orgulho e melancolia. Eu tinha tomado a decisão certa, mesmo que custasse conforto e status. Minha vó estava segura, e isso valia mais que qualquer carro novo ou apartamento elegante.
Chegando em casa, sentei no sofá, pensando na moto estacionada do lado de fora, imaginando a reação da minha vó quando soubesse que os remédios finalmente chegariam. Suspirei, sentindo um alívio misturado com tristeza, mas também com uma determinação silenciosa. Eu faria qualquer coisa por ela, até abrir mão do que mais amava, porque família, no fim das contas, era isso: prioridade absoluta, sem desculpas, sem arrependimentos.
Enquanto me preparava para dormir, pensando no dia que tinha passado e no que ainda viria, percebi que aquela escolha, dolorosa como era, me lembrava de quem eu realmente era. Beto não era apenas charme, risadas e galanteios — era alguém que lutava, que se sacrificava, que amava de verdade. E, talvez, essa fosse a lição mais importante que eu poderia ter aprendido até agora.