Silêncio Entre Nós

1296 Words
Bruno Eu não a odeio,queria, talvez fosse mais fácil, mas tem coisa que o amor não cura,tem mágoa que se costura devagar... e sangra mesmo assim, depois daquela noite,depois de tudo, eu achei que poderia engolir o passado e recomeçar, achei que se eu tocasse a pele dela de novo, o mundo se encaixaria no lugar,mas não foi isso que aconteceu, ela voltou sim,Milena voltou,com mil versões de si mesma com a dor nos olhos, a fragilidade de quem não sabe mais quem é, e a força bruta de quem sobreviveu a tudo,mas eu também sobrevivi e minhas cicatrizes têm nome: saudade, abandono, medo, ciúmes, o nome dele Gustavo,tanto faz,as fotos ainda me assombram, a ideia deles dois juntos, vivendo uma vida que eu nunca tive a chance de viver com ela...essa ideia me destrói. Hoje, decidi,falei com ela sem rodeios: — “Acho melhor a gente manter distância.” — Ela não respondeu na hora,engoliu em seco os olhos tremiam,mas apenas assentiu. — “Por Maria, a gente mantém o respeito. Mas só isso, Milena. Eu... não tô pronto pra mais.” Doeu,ainda dói,mas não posso continuar alimentando essa coisa entre nós,esse quase, esse talvez,ela tem seus fantasmas e eu tenho os meus,Maria agora passa mais tempo com a mãe,fica lá alguns dias da semana,as vezes dorme dois ou três dias seguidos,ela me liga, feliz, contando como Milena cozinha m*l, como o tio Thiago é engraçado, como o “tio Rodrigo” leva ela pra andar de bicicleta. Ela me chama de “pai” e isso me basta pelo menos por enquanto. — “Pai, agora eu tenho duas casas!” — ela me disse outro dia, os olhos brilhando,sorri. — “Duas casas e só um coração, né?” — “Não... dois também,” — ela riu. — “Um pra você e um pra mamãe.” — Quase chorei,as vezes, quando ela dorme aqui, eu acordo de madrugada e fico olhando pro teto,pensando na vida que a gente perdeu,naquela mulher que eu conheci com olhos selvagens e boca de tempestade,naquela menina que me olhava como se eu fosse o mundo e penso em tudo o que ela se tornou,será que ainda tem espaço pra mim dentro dela? será que algum dia... vai haver perdão entre nós? não sei,por enquanto, só sei que preciso respirar,sozinho,em silêncio,e talvez, só talvez...o tempo nos ensine a recomeçar nem que seja de outro jeito. Narrado por Milena Ele não vem mais,nem pra fingir que esqueceu,mem pra brigar, Bruno… sumiu de mim com a mesma intensidade que voltou,quando ele me disse que queria manter distância, que era melhor assim por Maria, pela sanidade dele eu apenas assenti,meus olhos ardiam, mas eu não chorei,já chorei tanto que meus ossos se acostumaram com a secura da dor,entendo o que ele sent, juro que entendo,talvez eu sentisse o mesmo se os papéis fossem invertidos,as fotos…o meu corpo nos braços de outro homem,meu rosto sorrindo enquanto,mas isso não importa agora,o que importa é que estou aqui. de novo,viva,com todos os meus erros e ele não quer me ver,Maria me abraça como se nunca tivesse me perdido. — “Mãe, você lembra quando eu era bebê?” Ela me pergunta isso às vezes, com a inocência de quem acha que o tempo é só um livro com páginas ilustradas. — “Lembro, meu amor…” — Minto ou melhor misturo as lembranças que surgem em flashes com as histórias que Thiago me contou,mas sinto o cheiro o medo a dor,eu me lembro do parto debaixo da ponte,da água fria, do sangue quente escorrendo entre minhas pernas,dos gritos abafados pelo medo de ser encontrada,dos meus dedos tentando segurar uma vida enquanto eu própria estava perdendo a minha,Maria dorme no meu colo,hoje ela me disse que tem duas casas,ela acha isso mágico eu tento achar também,mas às vezes parece que tenho duas vidas e não pertenço a nenhuma. Rodrigo veio jantar conosco ,Thiago gosta dele,Maria também,Rodrigo tem esse jeito de quem carrega o passado nas costas mas sorri mesmo assim,ele não me cobra,não me julga,mas, às vezes, me olha como quem ainda quer entender por que eu fugi,por que sumi,por que rompi o silêncio mesmo sabendo que a dor viria junto, a noite, quando tudo silencia, eu me pego olhando para a porta. como se, em algum milagre, Bruno fosse entrar,com aquela expressão meio irritada, meio apaixonada,com aquele olhar de quem me conhece até o cheiro da alma,com aquele jeito de quem me odeia por me amar tanto,mas ele não vem e eu entendo.de verdade,porque, no fundo, eu também me odeio às vezes,por ter sobrevivido,por ter amado outro,por não ter morrido de vez quando tudo me dizia pra morrer,mas sobrevivi, e agora tenho uma filha que me chama de mãe, e um irmão que voltou pra mim, e uma vida simples, mas minha,talvez seja assim que recomeços funcionem,com perda, silêncio, paciência e esperança. Amanhã vou levar Maria ao parque,ela disse que quer fazer um piquenique e eu só quero vê-la sorrir,mesmo que Bruno nunca volte. mesmo que o passado ainda respire atrás das sombras,porque agora...agora, eu também tenho duas casas,uma no presente, outra na saudade, e uma esperança mesmo que frágil , de que ele, um dia, volte a bater na porta. Narrado por Thiago Nunca imaginei que fosse viver para ouvir a palavra “liberdade” sem sentir ferro, dor ou dívida amarrada a ela,mas ela veio,silenciosa, cara mas veio,me custou tudo,meu nome,minha posição,saí da Yakuza como quem abandona o próprio esqueleto,me livrei da pele, mas o veneno ainda corre ,mas agora eu respiro,voltei para Curitiba, cidade que eu amaldiçoei por anos, mas que ainda tem o cheiro da nossa infância,rua de paralelepípedo molhado,bancas de jornal,o eco de gritos que nunca cessaram na memória,Milena me recebeu no taeroporto,ela parecia menor do que antes,talvez porque agora carregue o mundo inteiro nos ombros,mas o abraço dela…o abraço dela era o mesmo e por um instante eu me senti o menino que batia nos moleques da escola por mexerem com minha irmã. — “Está livre mesmo?” — ela perguntou, a voz quase engasgada. — “Sim.” —Mentira, o que ela não sabe é que pra conseguir nossa liberdade, precisei entregar tudo,inclusive nomes,inclusive partes minhas que nunca mais vou recuperar,Rodrigo é esperto,tem aquele olhar de advogado que lê mais entre as linhas do que nos contratos,mas não falou nada,só me ofereceu uma cerveja e ficou ali, do meu lado, como um irmão substituto e por incrível que pareça, eu não odiei isso,Maria…quando ela me chamou de “tio”, quase me desmanchei ela tem o gênio da Milena, mas os olhos do… dele do Fabio é estranho pensar nisso,mas também é lindo,ela não me julga,ela me desenha,hoje fez um desenho com todos nós ,eu, Milena, Rodrigo e ela e no canto,voltar foi mais difícil do que sair,porque agora não tenho desculpas,não tenho sangue pra esconder,nem inimigos pra justificar meus monstros,agora só sou Thiago,filho de Ana e João,irmão da Milena,tio da Maria e isso devia bastar,mas não basta,porque ainda tenho pesadelos,ainda sinto o cheiro de sangue,ainda ouço a voz do meu antigo Oyabun dizendo que traidores morrem com honra ou vivem sem alma,escolhi viver,pela Milena,mesmo com o Rodrigo ali, sempre tão presente…é o Bruno que ela olha quando pensa que ninguém está olhando,mas ele não confia nela e eu entendo,eu também precisei reaprender a confiar nela, a noite, subo no telhado,fico ali olhando as estrelas, e pela primeira vez em muito tempo,só… existindo,amanhã tenho um encontro com os federais,ultimos acertos,assinaturas,papéis que vão selar o fim oficial da minha vida como Yakuza,depois disso, é página em branco e eu espero que Milena consiga escrever a dela também,com menos dor,com mais verdade,mesmo que, no fim, sejamos só nós dois…só por hoje…estou em casa.
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