Milena
Refúgio – interior do Paraná – 3 meses de gestação
Eu sumi, abandonei a torre, as armas, as alianças, os tronos,fiz o que ninguém esperava, fugi de mim mesma.Bruno bateu na minha porta por cinco dias seguidos,depois parou,ele entendeu,ou acho que entendeu, a verdade é que eu estava prestes a desabar, e não podia deixar que ninguém visse isso, não ele,não depois de tudo,perder Fábio me deixou um buraco no meio do peito, carregar o filho dele… é como tentar acender uma vela dentro desse buraco, a chama dança, mas nunca para de balançar.
Comecei a andar descalça, a cozinhar minhas próprias refeições, a dormir com faca debaixo do travesseiro,mais por hábito do que por necessidade, os homens que me seguem, poucos, fiéis, silenciosos ,ficaram no limite da propriedade,eu não queria ver ninguém,não queria sentir,mas cada dia… a barriga crescia, e com ela, o medo,eu sonhava com Fábio todas as noites,em alguns sonhos, ele ria e tocava minha barriga,em outros…ele me olhava em silêncio,com sangue na boca,com decepção nos olhos.
"Você me deixou morrer, e agora quer viver com a minha herança?"
Acordava suada,chorando.
Mês 5 — bilhete deixado pra Bruno (nunca enviado)
"Se eu te deixei foi para me proteger, você me ama, eu sei, mas também me culpa, e essa criança…é tudo que me restou de alguém que eu não sei se amei o suficiente enquanto esteve vivo."
Eu não quero que ninguém me veja quebrar,eu fui aço,fui tempestade,agora sou terra molhada, e qualquer pegada deixa marca.
Mês 6 — sangramento leve, emergência, solidão
Deitei na maca fria da clínica de uma cidade sem nome, a médica olhou minha ficha, falsificada, discreta.
—“Você precisa repouso, tem pressão alta, ansiedade.”
—“Não posso parar.” — menti, mas naquela noite… deitada sozinha…eu quis não existir, por um segundo, por um instante, eu quis apagar, na manha seguinte na varanda da casa,a barriga já aparece, minha mão repousa sobre ela,sussurro com voz rouca:
“Eu não sei o que você vai ser, mas se puxar seu pai… vai saber amar, e se puxar a mim… vai saber sobreviver.”
E então, pela primeira vez em semanas…eu resoirei aliviada,
sem medo de ser fraca.
"Nascimento em Meio à Guerra"
Narrado em terceira pessoa
Chacara Interior do Paraná – 2h43 da madrugada
A noite estava silenciosa, Milena já não dormia bem há dias, o corpo cansado, a alma mais ainda, mas foi o som metálico que a acordou, baixo, certeiro, a trava do portão externo quebrando, ela se levantou devagar, barriga alta, pesada, estava com 8 meses e meio, e algo nela… já pulsava diferente, pegou o revólver escondido na gaveta, desligou as luzes da casa, tateou pelas sombras.
—"Se for essa a minha última noite, não vão me levar ajoelhada."
Três invasores, roupas escuras, armas longas, um deles carrega uma seringa, querem ela viva, ou melhor... o que ela carrega, o primeiro homem entra pelo corredor, não vê a faca de cozinha cravada entre as ripas de madeira, Milena o acerta no pescoço, ele cai em silêncio, mas o segundo ouve o baque, grita, e aí… os tiros começam.
Milena corre,mesmo com a dor latejando na lombar, o corpo começa a tremer, as contrações surgem, desorganizadas, mas reais.
—"Não agora, bebê... por favor… me dá mais um tempo..."
Ela escorrega no sangue do primeiro, cai, o revólver voa longe, um invasor a alcança, a agarra pelos cabelos, tenta imobilizá-la.
—“Você não vai resistir, entrega, é só um bebê.”
Milena enfia o dedo no olho dele com força, e grita como uma loba.
—“É o filho do Fábio, filho da p**a!”
Ela corre, abre a porta dos fundos, chove, a lama cobre os pés, as contrações agora são rítmicas, fortes, o parto começou, ela desce pela trilha da mata, descalça ,mordendo os próprios dedos pra não gritar.
30 minutos depois em uma estrada rural, embaixo da ponte, Milena está de joelhos, sangrando, sozinha, respirando rápido, a cabeça da criança já se insinua, o céu relampeja.
—"Fábio…me ajuda, me dá força, me dá… você."
Ela morde o proprio braço, empurra com força, chora, grita e então… o choro, um grito pequeno, frágil, mas vivo.
Milena corta o cordão com a faca de emergência que escondeu na meia, enrola a filha numa blusa que vestia e pela primeira vez em muito tempo…sorri.
— "Você veio no meio da guerra, mas agora… você é minha paz."
Milena caminhando pela estrada, descalça, com a filha no colo o dia amanhece, ao longe, um carro se aproxima, Bruno sai dele, corre até ela, vê o sangue, vê a criança, e cai de joelhos, Milena olha pra ele, os olhos inchados, o rosto coberto de lama e lágrimas.
—“Ela nasceu com fome de mundo, Bruno, e eu? eu renasci junto.”
Narrado por Milena 2 semanas após o parto
Bruno está dormindo no sofá, com a bebê no peito, ela dorme tranquila, ele exausto, eu os observo da porta, braços cruzados, coração inquieto,
—“ O homem que um dia me destruiu com silêncio…agora canta baixinho pra filha de outro ”
Ele não me cobrou nada, não exigiu nada, apenas apareceu, quando eu mais precisava, e disse:
—“Você não vai fazer isso sozinha, mesmo que me odeie.”
E eu…deixei, não sei por quê, talvez porque estava fraca, ou talves porque ainda havia algo nele, que eu nunca enterrei de verdade.
2 meses depois — 3h da manhã, a bebê chora, Bruno levanta, me serve água, me cobre, me observa demais.
—“Você não precisa provar que é de ferro, Milena.”
— “E você não precisa agir como se não tivesse me odiado por anos.”
—“Nunca odiei você, só odiei te desejar quando isso me destruía.”
Silêncio, nosso silêncio é um campo minado, um dia ele beija minha testa, no outro, não olha nos meus olhos, um dia eu acordo com saudade do toque dele, no outro, quero gritar com tudo que não foi dito.
Noite tensa — discussão
— “Você ainda me deseja, Bruno?” — pergunto, ele demora.
—“Eu não sei se é desejo ou trauma.”— isso me fere, muito mais do que se ele dissesse “não”.
— “Então por que está aqui?”
—“Porque ela é a filha do Fábio, porque você é a mãe dela, porque eu nunca consegui te abandonar por completo.”
Nos beijamos naquela noite, com raiva, com desejo, com mágoa, transamos como quem briga, mas eu sabia…estávamos construindo um castelo de areia na beira da guerra.
Estou no carro, observando Bruno brincar com minha filha, cuidar da minha filha com outro, dormir com a mulher que ele nunca superou, Bruno tá preso num ciclo, e eu também, mas será que amor é isso? uma prisão quente e antiga? ou um vício do qual a gente só acorda… quando já perdeu tudo? eu ligo o carro, dirijo sozinha até o topo da cidade.
Penso:
—“Se eu não escolher, a vida vai escolher por mim, e pela primeira vez…não sou só eu que pago o preço.”