— Você é minha esposa e acabou.
Eu travo. Meu cérebro se recusa a processar essa sentença. Me recusa como se fosse um erro de sistema.
— Como assim... acabou?
— Não há volta. Assinaturas foram feitas. Palavras foram ditas. Testemunhas confirmaram. E, nesse país, nesse contexto, isso é suficiente. O que você sente ou quer, neste momento, é... irrelevante.
Allah! Eu assinei um contrato de trabalho, então... não era um contrato de trabalho.
Allah! Por que eu não li?
Claro que eu não li, estava tudo em árabe. Eu entendo bem o árabe, mas não leio. Deixei isso claro na contratação.
— Irrelevante? — repito, com a voz embargada, quase rindo de nervoso. — Eu sou uma pessoa! Eu tenho uma vida! Eu não sou um... um pedaço de papel trocado!
Ele dá de ombros. Dá. De. Ombros. Como se eu fosse uma questão menor. Uma gota fora do balde.
— Seu baba. Você é a vontade dele sendo realizada. Ele desejou muito que você voltasse às suas origens. Saísse daquele país medíocre. E....temos negócios juntos, que envolvem bilhões, então unimos o útil ao agradável.
— Meu pai está envolvido nisso? Então é tudo armação desde o início? Vocês me atraíram como uma mariposa tonta para a luz?
Ele respira fundo. Como se tivesse acabado de relatar um atraso no voo, não um casamento forjado.
— Aceite seu destino.
Sinto meu estômago revirar. Ele fala de casamento como quem fala de ativos. Como se eu fosse uma porcentagem numa planilha de Excel. E eu sou só a peça improvisada no tabuleiro do meu pai e dele, homens que nem conheço.
— Eu não vou aceitar isso. — Sussurro, tentando manter alguma dignidade de pé. — Eu vou à embaixada. Vou chamar a polícia. Eu vou... sair daqui. Nem que seja a pé!
Ele ri.
Ri alto.
Um riso irritante, orgulhoso, quase performático. O tipo de riso que faria qualquer terapeuta cobrar hora extra.
— Você pode tentar, mas não vai conseguir nada. Eles comem na minha mão como um passarinho manso.
— Isso é sequestro! — disparo, tremendo da ponta do pé ao último fio de cabelo preso com grampo.
— Isso é tradição. Você é filha de um dos homens mais importantes desse país. — Ele rebate, sem piscar. — E... não me decepcione. Ou pior... não me irrite. Eu posso ter a mulher que eu quiser... e não estava muito desejoso em me casar, mas como tudo tem um "mas"... quando eu te vi, gostei. Nunca desejei algo tão violentamente na minha vida.
— Me viu? Onde?
— Vi sua foto se candidatando para a entrevista, meio sem graça, sem filtro, com o cabelo um pouco bagunçado... mas foi quando vi você chegando ao hotel que tudo fez sentido. Com aquela sua grande mala rosa — ridícula, barulhenta, cheia de adesivos de lugares que claramente você sonha em conhecer ou inventou que já conheceu. Tropicando nos próprios saltos, esbarrando nas portas giratórias, como se tivesse entrado por engano num mundo que não era seu. Mas estava ali. E tinha algo nos seus olhos — uma mistura de raiva, orgulho e confusão — que me prendeu. Mulheres se jogando aos meus pés é algo que já me entedia. Mas você... você estava tentando parecer forte enquanto carregava o peso do mundo naquela mala cafona. E foi ali que eu soube. Senti algo que não costumo sentir. Então é isso, Layla. Aceite seu destino.
Ele se aproxima mais uma vez. A voz baixa, firme, como uma sentença.
— E pode crer, você será recompensada. Nunca mais lhe faltará nada. Terá as melhores roupas. Joias. E não se preocupe — não sou tão c***l quanto você pensa. Não sigo os costumes. Você não precisará usar hijab. Eu não sou Sheik. Embora todo rico árabe vocês julguem ser um. Sabe o que é um Sheik?
— Sei. Sheik é ligado à religião. Meu pai era.
— Exato. E eu não sou. Ser sheik exige mesquitas, preces e moralidade. Eu prefiro liberdade. A minha. E a sua... agora depende de mim.
— Allah! Que absurdo! Eu tinha uma vida! E você arrancou isso de mim!
Ele ri. Não um riso alegre — um riso debochado, daqueles que provocam mais do que ofendem.
— Eu? Não, Layla. Seu pai fez isso. Eu só aproveitei a oportunidade.
Ele dá um passo na minha direção, olhos cintilando de ironia.
— Vida? É disso que está falando? Daquela existência patética que você levava?
Ele faz uma pausa teatral.
— Naquele apartamento minúsculo em... como é mesmo o nome do bairro? Mococa? — ele repete o nome como se fosse um palavrão exótico, e eu quase rio, apesar do ódio.
—Mooca.—corrijo, quase rindo.
Ele continua:
— Com parede descascando, colchão torto e vizinho gritando funk às três da manhã? Aquilo era vida pra você?
Ele sorri, cínico, como se fosse um presente envolto em veneno.
— Layla, vida... vida de verdade, você vai ter comigo.
— Pelo visto, andou pesquisando minha vida — devolvo com sarcasmo, tentando não ranger os dentes.
Ele sorri. Devagar. Como quem saboreia o próprio veneno.
— Se quiser chamar de "pesquisa" três investigadores trabalhando exclusivamente pra mim... então sim, eu pesquisei. Você acha mesmo que eu me casaria sem saber exatamente com quem estava lidando?
A maneira como ele fala — com aquela calma arrogante — me dá vontade de jogar o vaso mais próximo na cabeça dele. Mas continuo escutando, porque, aparentemente, o show ainda não acabou.
— Confesso que tive minhas dúvidas — continua ele, agora passeando pelo quarto como se estivesse avaliando a mobília de uma vitrine qualquer. — Quando vi onde você morava... hesitei.
Ele me lança um olhar de soslaio, carregado de desprezo e algo mais que não sei nomear.
— Mas então eu a vi. E, Layla... você me agradou de imediato. Havia algo em você... algo indomável.
Já estou me preparando pra revidar, talvez com uma boa dose de ironia, quando ele completa, com a calma de quem fala sobre o tempo:
— Ah, e caso ainda tenha dúvidas: se eu quiser saber a cor da sua calcinha, eu sei. Sei a gaveta em que guarda, o dia da semana em que costuma usar determinada peça... e até quais você separa pra ocasiões especiais.
— Você acha que está no controle, mas não está. — minha voz sai firme, mesmo com o medo se retorcendo dentro de mim. — Porque eu não sou um objeto. Não sou um bibelô que você coloca na prateleira e mostra pros amigos.
Ele me observa por um segundo que parece durar uma eternidade. Então, com um gesto sutil, se afasta e vai até a janela. Cruza os braços atrás das costas, como se estivesse ponderando. O sol do deserto entra pelas frestas da cortina e o contorna como uma pintura viva.
— É... talvez eu tenha subestimado a sua reação. — ele diz, finalmente. — Achei que resistiria, claro, mas não com tanta... veemência.
— Que bom. Agora me tire daqui.
Ele se vira devagar, e o olhar que me lança dessa vez não é só de autoridade. Tem algo mais. Um lampejo de... desafio? Interesse?