Hora? Hora de quê?

840 Words
Ele sorri sem se afetar com as minhas palavras. Allah... Esse homem vai me desgraçar de um jeito que nem reza forte conserta. — Vamos, gazela. Dance comigo. — Ele estende a mão como se isso fosse normal. Como se o mundo já não tivesse virado de cabeça pra baixo. Ele começa a se mover. Não dançar — desfilar em forma de dança. Cada passo dele é uma coreografia de controle e charme. E, claro, alguém me empurra suavemente pelas costas, como quem diz "vai, é sua vez de enlouquecer em público". E eu vou. Não por obediência. Mas porque meu corpo precisava se mexer. Pensar em movimento, respirar enquanto o cérebro gritava "foge!". Meus pés seguem o ritmo, mecânicos no início. Tipo boneca de corda em crise existencial. É ridículo. Tudo isso é um teatro de areia e cetim, e eu sou a figurante promovida sem querer à protagonista de uma peça que ninguém me deu o roteiro. Mas danço. Porque é isso ou surtar de vez. Vejo um velhinho na cadeira de rodas chorando litros. Deve ser o tipo que se comove em casamentos. Allah! Eu me casei? É isso? A música muda, agora é mais forte, mais vibrante. Tambores surgem do nada. Homens entram no salão com espadas erguidas, vestes brancas impecáveis, passos marcados como uma marcha ancestral. A dança das espadas começa. Ardha. Eu reconheço o nome, minha mãe já tinha me mostrado vídeos. Mas ao vivo... é outra coisa. Arte, é poder, é história vibrando no chão de mármore. Eles dançam em formação, os pés marcando o tempo com precisão, os braços levantando as espadas num ritmo que parece invocar algo antigo — algo que pulsa debaixo da pele como tambor de guerra. Khaled está no centro. Claro que está. Liderando, como se tivesse nascido para isso. Com a espada em punho, ele corta o ar — elegante, preciso, como se o destino fosse apenas mais uma coisa sob seu controle. E eu? Eu estou ali, cercada de mulheres sorrindo, perfumadas, usando vestidos de cores intensas, com joias que tilintam a cada passo. Elas me ajeitam o véu. Uma delas passa um leve perfume nos meus pulsos. Outra me entrega um copo com algo doce — provavelmente chá de flores com especiarias. Eu tento dizer: "Gente, tem um engano, eu vim só traduzir." Mas ninguém ouve. Ou pior: ouvem... e acham fofo. 😟 As mulheres me cercam. Cantam. Riem. A festa é delas. O casamento é delas. E eu sou só... o centro de tudo. O ritual continua. Agora, Khaled vem até mim. A música suaviza. Ele ergue o braço, oferecendo a mão como se estivesse pedindo licença a uma deusa. — Ya layl, ya 'ayni... — canta uma das mulheres atrás de mim. A noite, meus olhos. Ele segura minha mão, leva aos lábios e me faz girar devagar. Todos aplaudem. Todos sorriem. E eu? Sorrio também. Porque é isso ou desmaiar de tensão. Ou... talvez outra coisa. Porque, naquele giro, com os olhos dele me acompanhando, algo dentro de mim vacila. Não é só medo. Não é só raiva. É... calor. Esse homem me dá calor. Ele me conduz até a mesa, onde pratos ornamentados são trazidos. Tâmaras com mel, cordeiro com pistache, arroz com açafrão, doces brilhando como joias de açúcar. Tudo é oferecido a mim primeiro. E Khaled insiste, com a delicadeza de um lobo bem treinado: — Kuli, habibti. Coma, minha querida. A forma como ele fala "habibti" não é comum. Tem peso. Tem uma i********e indecente para alguém que nem sabe o que eu gosto no café da manhã. Pego um pedaço. Mastigo. Tudo tem gosto de sonho que não é meu. Mas o olhar dele? É como se estivesse me comendo com os olhos, e não com etiqueta de príncipe. Com fome e eu estremeço inteirinha. — Está linda — ele diz, em português. — Como eu imaginei. — Que bom. Porque eu estou vivendo um pesadelo em câmera lenta. Ele sorri. Me ignora. Ou melhor: me escuta, mas continua mesmo assim. Como se soubesse que meus "nãos" ainda estão distraídos. Frágeis. Ele dança mais uma vez. Dessa vez, comigo. Agora mais lento. Mais íntimo. As mãos dele encostam na minha cintura com a precisão de quem sabe o que está fazendo. Muito bem. O corpo dele se aproxima. O calor atravessa o espaço entre nós como eletricidade. Pura. Silenciosa. Aterradora. Ele não fala nada. Só me guia. E meu corpo, o traidor, segue. Não por vontade. Mas porque o corpo parece ter entrado em modo automático. Sobrevivência com maquiagem e batom. Ou... um tipo novo de vulnerabilidade. A música toca. Nossos corpos se movem. Meu peito encosta no dele por um segundo longo demais. O perfume dele... Allah, o perfume. É madeira quente. Jasmim. Saliva e pecado. Meus dedos se curvam nas costas dele. Quase sem querer. Quase. Quando a música termina, ele se curva levemente. As mulheres vibram. — Yalla... — uma delas diz com um sorriso cúmplice. — Está na hora. Hora? Hora de quê?
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