Capítulo Dois
THOMAS DINESH
É estranho olhar para o mundo e não me enxergar nele. O que estou fazendo aqui? Qual o meu propósito, minha missão? Posso ser bom em muitas coisas, mas não em responder essas perguntas.
Deixo as baquetas caírem no prato de ataque da bateria, finalizando a música. Gotas de suor percorriam por minhas têmporas, a minha respiração estava descontrolada e, meu corpo, trêmulo. Eu precisava extravasar a minha raiva, e geralmente a bateria ajuda nisso. Mas hoje, porra... Nunca me senti assim antes.
O motivo é simples: fui expulso de uma sorveteria cheia de criancinhas brancas e pais preconceituosos. Não leve isso a sério, jovem, estou apenas te mandando embora e dizendo para nunca mais voltar aqui, quer dizer, você entende, não é? Não é nada pessoal, apenas vá para o inferno com a sua raça. Com todo o respeito.
Os meus pais não sabem, e nem irão ficar sabendo. Já lidam com muita m***a, e se posso os poupar disso, irei. Algumas vezes penso que estou aqui para pagar pelos pecados de outra vida, para aprender uma lição, para ser testado, ou apenas sou um maldito azarado.
Subo as escadas do porão, fechando a porta atrás de mim. Só posso tocar bateria aqui em baixo, devido ao isolador de som. A janta está pronta, e, como sempre, meu pai está atrasado.
— Como foi a aula hoje? — Minha mãe perguntou, jogando o pano de prato no ombro.
Três dias passaram-se desde o primeiro dia, e tudo estava razoável. Jace ainda senta comigo no refeitório, estamos muito próximos e eu comprei um caderno de desenhos. Tyna também se junta a nós, mas sei que apenas faz isso porque não tem opção melhor, e tenho certeza que a nossa companhia não é pior que almoçar no banheiro.
Travis, por outro lado, havia se juntado ao grupo do seu irmão Gabriel, mas ainda assim achava alguma forma de nos incomodar, seja mandando bolinhas de papel durante as aulas, fazendo palhaçadas para chamar atenção ou perguntando se eu e Jace já oficializamos o namoro. É um completo i****a.
Revirei os olhos.
— Nada de mais, o mesmo de sempre — falei, mas ela ainda estava me olhando — o professor de física é legal, mas Derisse continua em primeiro lugar na minha planilha de professores preferidos que eu talvez não pegue recuperação na sua matéria. Mas ainda é cedo para dizer isso.
— E aquele garoto, o... — Fez uma careta ao pensar enquanto pegava um prato e me entregava.
—Jace? — A sua expressão mudou, como se eu tivesse dito algo incrível. — Ainda conversamos. Mas acredito que seja porque ele não conhece mais ninguém.
— Talvez seja, e vocês estão se conhecendo. — Sorriu. — E...
Coloquei a comida e, apenas quando estávamos sentados de frente um para o outro, ela prosseguiu.
— Tommy, eu sei o que aconteceu hoje. — Engoli a comida com força, quase me engasgando com a lasanha. Tentei não transparecer o meu nervosismo e permanecer neutro.
— O que? — A olhei.
Ela era bem diferente de mim. Desde a minha infância, tento achar algo em nós que seja similar; algo físico. Somos parecidos quando o assunto é ansiedade, temos a mania de enrolar o cabelo com o dedo, e cantarolamos quando estamos bravos, como uma forma de acalmar. Mas meus olhos são os olhos do meu pai, tudo em mim é dele e da minha família paterna. Minha mãe e os pais dela são brancos, de cabelos lisos e traços delicados.
Os meus traços são marcantes, grosseiros. Não há nada de delicado em mim.
— Na sorveteria. Não quero que volte lá. — Assim que falou, a porta da sala foi aberta e meu pai colocou a pesada blusa de frio no sofá.
— Não vamos falar sobre isso agora. — A olhei com seriedade. Não quero que ele descubra, não quero causar problemas.
Ela apenas arqueou uma sobrancelha como se dissesse ''você que sabe''.
Finalmente estava trancado no meu quarto, jogado na cama, ouvindo música e fazendo uns rabiscos. Não conseguia parar de balançar minha perna, e me peguei mordiscando os cantos do polegar.
Jace tocando guitarra, um pássaro trancado na gaiola.
Fechei o caderno, imaginando como a minha mãe havia ficado sabendo do que aconteceu. Será que ela conhece alguém que estava lá? Na verdade, nem sei se isso importa. O que importa é que estou proibido de entrar naquele lugar, mas não é como se eu quisesse, depois do que aconteceu.
Não vou dizer que estou acostumado com isso, porque não estou. Na Índia eu não passava por essas situações, mas acho que o universo encontrou outra forma de me amedrontar, colocando diversas dificuldades por onde passo. Não apenas eu, como minha família também.
Encarei o teto do quarto, automaticamente o comparando com o quarto que eu dividia com minha irmã. Lembro do mofo se espalhando pela parede, a tinta esfarelando, fazendo com que o quarto nunca ficasse totalmente limpo. Balancei bruscamente a cabeça, como se isso fosse afastar os pensamentos.
Algumas lágrimas caíram no pássaro trancado, manchando a grade, fazendo com que ela parecesse estar aberta. Segundos depois, minha mãe bateu na porta. Sei que era ela porque eu sabia a força que ela ou meu pai usava na hora de bater na porta, inclusive a forma de andar.
— Pode entrar — passei a mão pelos olhos e me sentei — está destrancada.
Ela me olhou com pena. Talvez eu tenha chorado mais do que imaginei. Sentou-se na beirada da cama, mantendo uma certa distância. Passou os olhos pelos desenhos, os admirando.
— Fez hoje? — Perguntou, sem tirar os olhos do caderno.
— Sim. — Sussurrei.
— Ficaram lindos... — E olhou profundamente para mim. Seus olhos castanhos ainda me olhavam com pena. — Você quer conversar sobre o que aconteceu? Sei que é difícil, mas não faço ideia de como é estar na sua pele. Sou sua mãe, Tommy, quero ajudar de alguma forma. — Suas palavras me confortaram, e instantaneamente comecei a chorar. Ela aproximou-se e enxugou minhas lágrimas.
— Eu sei que conversamos antes de viajar, mas — solucei — não pensava que seria tão rápido, eu não sou i****a nem nada, sei que algo iria acontecer, mas dói tanto. — Eu tentava segurar o choro, mas quanto mais eu tentava, mais difícil era.
— Oh, Tommy. — Ela me abraçou. — Você é tão forte. Sinto muito que esteja passando por isso, sei que não entendo completamente, mas estamos nessa juntos, nós três. Te amo mais que tudo, por isso eu e seu pai queremos lhe dar um bom ensino. — Lentamente balancei minha cabeça, concordando. — Você não está sozinho. Se algo acontecer, diga a mim ou ao seu pai, as pessoas não podem sair impunes. Nós não desistimos nunca. Está certo?
Não a respondi. Desviei o meu olhar do dela, observando um pôster de Black Sabbath na minha parede.
— Thomas, está certo?
— É, tanto faz.
Ela deu um beijo na minha bochecha e saiu do quarto. Escutei o som da sua voz ao conversar com meu pai, mas não entendi o que estavam falando. Espero que não tenha contado a ele.
Mas de uma coisa ela está certa: minha mãe não sabe como é viver como eu vivo. Com esse medo constante, essa preocupação que não vai embora, nem por um segundo. Não posso ficar vulnerável, mesmo em momentos onde me sinto bem. Ela cresceu num lar incrível, e meus avós são ótimos. Não estou dizendo que eles não tinham problemas, e sim que não eram os mesmos que eu tenho, que meu pai tem.
Na teoria, tudo é certo. A vítima sofre, denuncia, e pronto, o réu cumpre uma pena e está tudo resolvido. Risos, risos. Maior piada do século.
━━━━━━━ ● ━━━━━━━
A terra fria de baixo dos meus joelhos me lembra que preciso sair dali. Preciso correr, chamar ajuda. Meu cérebro ainda está processando o que havia acontecido, Gabriel sumindo gradualmente do meu campo de visão.
Que. p***a. Foi. Essa?
Escuto passos ao meu lado, e meu coração congela. Sinto uma mão tocar meu ombro, me apertando com força.
— Thomas? — Sinto um pouco de medo na sua voz. Era Jace.
Olho para ele, que está com uma expressão confusa e amedrontada.
— O que aconteceu?
━━━━━━ ● ━━━━━━━
Acordo no outro dia com a cabeça explodindo de dor. Ótimo dia, amo minha vida, vamos nessa, Tigers! Na real, não faço ideia de qual seja o mascote do colégio. Mas é sempre assim, não é? Qualquer nome genérico que dê para gritar.
Me arrumo rapidamente e tomo, sozinho, o café da manhã. Meus pais já estão trabalhando essa hora, então sou apenas eu com meus pensamentos fúteis. Eu tinha a opção de não ir à aula, largar tudo e nunca mais aparecer. Mas o problema é que eu quero, tive a oportunidade de ser melhor e quero isso. E mesmo que seja difícil pra c*****o, é a minha vida.
Há uma notificação de Jace no meu celular, perguntando se eu queria carona até a escola. Tudo bem que minha casa é estupidamente perto do colégio, mas passar um tempo com ele seria legal. O aguardo chegar em sua picape vermelha, estacionando de m*l jeito, atropelando a grama em meu jardim.
— Vamos, cabeça de bagre. — Buzinou freneticamente, mesmo quando viu que eu já estava perto o suficiente para olhá-lo com desgosto.
— Obrigado pela carona — falei, me ajeitando no banco do passageiro — muito maneiro da sua parte.
Eu e Miller nos conhecemos bastante. Apesar de eu apenas estar aqui há pouquíssimos dias, nos damos bem. Já estávamos próximos o suficiente para dizermos coisas sem sentido, fazermos palhaçada e nos entendermos apenas com um olhar. Nunca tive isso antes, um amigo que me entenda e me ajude da forma que ele faz.
Seu carro tinha o cheiro de madeira recém cortada, de fazenda. Ele tinha dinheiro, a família dele era rica, isso eu sei. Mas ele não tinha cara de quem acordava no instante em que o sol nascia, dava comida aos bezerros e colhia espigas de milho.
Seguimos em silêncio até a escola, parando em uma vaga no estacionamento.
— Obrigado de novo. — Sorri.
— Relaxa. — Disse pegando sua mochila que estava no banco de trás, e saímos do carro.
Travis.
Fixei meus olhos nele, por um tempo. Continuei andando ao lado de Jace pela passarela, segurando meu caderno de desenhos com a mão direita, a mão esquerda apertando fortemente a alça da mochila. m***a, merda... respira, você consegue, você consegue.
Antes que pudéssemos passar por ele e o evitar completamente, Willis veio em nossa direção com aquele sorriso i****a estampado no rosto.
— Nem vou comentar, cara. Nem vou dizer nada. — Segurava um riso. — É que sei lá, tá muito cedo. Vou poupá-los disso por agora. Mas tá anotado, tá anotado aqui — bateu o indicador na testa — isso não se faz.
— Ei, Travis.
Ele andou conosco até a porta do colégio, conseguindo me impressionar ao guardar a língua na boca, e não sair por aí dizendo m***a. Mas o irmão dele estava a vir na nossa direção quando parei de frente para meu armário.
— Gabriel? — Travis disse.
Tinha algo de errado naquele olhar. Medo. Reconheço esse olhar de longe. Jace estava a sete armários de distância, mas sei que podia escutar.
— Vi vocês chegando mais cedo, você e... O outro. — Inclinou a cabeça em direção á Jace. — É uma grande ironia você tentar esconder algo, Thomas.
Gabriel estava com seu cabelo ensopado, as gotas de água caindo e escorrendo por sua testa. Travis ainda o olhava com medo, e não pude deixar de imaginar o que estaria acontecendo entre eles. O irmão de Gabriel era bem mais forte e malhado que ele, e, mesmo assim, apresentava uma postura submissa.
— Você já é indiano, ser um viadinho de m***a não impressionaria ninguém. — Riu, debochando.
— Gabriel, vamos ali comi... — Travis tocou no seu braço, mas parou de falar assim que Gabriel o fuzilou com o olhar. O garoto o soltou, engoliu seco e desviou os olhos para o chão.
— As pessoas percebem, Dinesh. Comentam. Se você quer tanto assim chamar a atenção, por que não começa fazendo um discurso sobre como a vida é difícil, e blábláblá?
— Gabriel. — Bati a porta do meu armário, olhando-o com seriedade. — Eu não sou homossexual, e mesmo se fosse, isso não seria da sua conta e nem de outra pessoa. Não se preocupe com a vida das pessoas, cara. É a vida delas. — Apesar do tom sério, falei calmo. Não queria provocar uma briga, muito menos com um garoto que consegue me quebrar feito um graveto. — E eu sei que a vida é difícil, e não só para mim. É para todos. Mas apenas quando você for expulso de um lugar devido à sua cor de pele, você terá o direito de me dizer o que devo sentir ou não. — Passei por ele, que ficou parado no mesmo lugar.
Algumas pessoas olharam para nós, mas nada que provocasse uma aglomeração. Eu sentia que o sangue de Gabriel Willis fervia, sem ter uma resposta pronta ou sem poder me dar um soco sem levar suspensão. Afinal, é isso que as pessoas fazem quando perdem a razão, não é?
O importante é que eu finalmente havia me posicionado. Não deixei ninguém falar m***a e sair impune, não fui fraco. E, sendo sincero, admirei Gabriel por tentar chegar a um ponto, sem levantar o tom de voz ou chegar dando um soco no nariz. Ele realmente tentou parecer correto, como se fosse um político branco dizendo o que pessoas de outra cor devem ou não sentir. Não vou ficar de cabeça baixa, não vou me esconder.
Pensei que seria fácil lidar com as coisas se eu apenas não rendesse, me calasse. Mas dessa forma, me enxergam como um covarde, que não tem coragem de se impor e se defender. E eu não sou assim. Eu não fujo da luta. Posso perder, mas não fujo.
Sentamos juntos, assim como no primeiro dia. Eu, Jace Miller, Travis Willis e Tyna Larson.
— Fala sério, não é como se o Draco tivesse outra opção — Tyna o defendeu — ele era apenas um garoto!
— Todos somos, Tyna. Mas ele teve sim opção de ser uma pessoa melhor, fazer o certo! — Jace debateu.
— Ele estava fazendo o certo para ele e para sua família. Era muita pressão! — Socou a mesa.
Eles estavam levando muito a sério a discussão, como se fosse real. Travis comia em silêncio. Foi a primeira vez que o vi tão quieto, com o olhar perdido, sem saber o que fazer. Isso me dava pena, sei como é se sentir deslocado. Peguei o lápis que estava em cima do caderno de desenhos - que carrego para todo o lado - e o desenhei.
Fiz os cabelos loiros da altura das têmporas caindo por seus olhos, as mãos no seu sanduíche, os traços das maçãs do rosto e do pescoço. Ele olhou para mim, sentindo o meu olhar pesado. Por um momento, pareceu não entender, mas notou os meus olhos saindo da sua direção e indo ao papel. Sei que ele sorriu, mas tentou esconder. Não queria que eu soubesse seu segredo. Que, na verdade, era um grande b***a mole. Mas ele permaneceu na mesma posição até eu fechar o caderno.
— Não, nós TEMOS que assistir Harry Potter. Não acredito que vocês nunca viram! — Tyna olhou para mim e para Travis, espantada. — É lei universal, garotos. A vida de vocês vai mudar depois disso. — Disse como se fosse a coisa mais incrível do mundo. — Tenho os DVDs em casa, nós podíamos ir para lá assistir o primeiro filme, pelo menos. — Olhou para nós três. — O que acham?
— É... — Jace olhou para mim. — Am... — Rolou os olhos, apertou os lábios formando uma linha e forçou um sorriso. — É que...
— Eu topo. Se você gosta tanto, deve ser bom. — Falei, dando de ombros.
— Okay. Parece legal. — Travis concordou.
Jace permaneceu em silêncio, mas cedeu quando ficamos o encarando.
— Tá, tá bom. — Ele disse.
Estávamos no estacionamento, a aula havia acabado. Gabriel estava em uma roda de pessoas do outro lado da rua com Billie, Ian e Dave. O que o novato fazia no meio deles? Ah, provavelmente era porque todos ali possuem a mesma cabeça oca. O sol queimava os carros, e Jace não tirava o seu moletom de forma alguma. Gabriel virou a cabeça na nossa direção, nos olhando de queixo erguido, e voltou a atenção para a sua conversa.
— Vocês ainda estão me olhando. — Murmurou. — Ah, claro. Querem ir no meu carro? — Revirou os olhos.
Tyna bateu palmas rapidamente, animada, e foi saltitante até a picape. Sentei no banco do carona, assim como antes, e Tyna foi o guiando até sua casa. Eu não precisei dos fones de ouvido, Jace tem um ótimo gosto musical.
Quanto colocou a mão esquerda na parte de cima do volante, a manga do moletom deslizou para baixo, e eu vi. Dezenas de cicatrizes se estendendo pelo pulso, e quanto mais eu olhava, mais cicatrizes apareciam. Elas não acabavam, e sei que continuavam até o seu antebraço.
Desviei os meus olhos para a frente, não queria que ele me pegasse olhando. Lentamente, Jace puxou a manga da blusa, olhando para os lados e para Tyna e Travis, pelo retrovisor interno.
JACE MILLER
Hoje o dia tinha sido bom. Na aula, eu e Thomas discutimos sobre música e desenho; tópicos que amamos. Eu havia levado minha guitarra para tocar no intervalo, e ele simplesmente adorou. Fiquei contente com isso, pois ninguém além dos meus pais me viu apresentar antes, e eles geralmente acham uma perda de tempo.
Termino de afinar o meu baixo, o coloco no suporte da parede e ligo a TV. Essa era a casa ''de fazenda'' dos meus pais; tinha tudo e mais um pouco. As paredes do meu quarto possuem guitarras, baixos e violões e, no canto do cômodo, tem um órgão. Por meu irmão ter ido embora de casa quando se formou, peguei o quarto dele que era maior, e meus pais, que queriam fazer do quarto um santuário, me julgam até hoje.
Não estou dizendo que não os amo; é claro que amo. Mas será que gosto deles? Ainda me pego pensando nisso. Está passando um filme de ação, mas não consigo focar nele. Meus pensamentos me prendem no passado, me torturando. Pego o meu celular, e leio as conversas antigas com Gabriel, irmão de Travis.
''Você vai chegar que horas?''
18:34
''Estou indo.''
18:40
''Não conte para NINGUÉM o que aconteceu, tá me ouvindo? Não podem saber disso. Caralho...''
21:23
''Ok.''
21:24
Esse dia foi bizarro, no mínimo. Conheci Gabriel Willis na antiga escola que estudei, e também conheci Travis lá. E Gabriel era bem diferente; como falei, parecia um mórmon. Com seu cabelo perfeitamente partido, as roupas limpas e cheirosas, sempre com um sorriso no rosto e sendo simpático com as pessoas. Me pergunto o que aconteceu para ele mudar tanto.
Ou será que eu aconteci?
Tudo ocorreu no final do ano passado, não consigo afastar as lembranças. Portanto, fecho os olhos e as deixo me inundarem, como água do mar me afogando. Então me afogo, e arde. Minha garganta, meu nariz, tudo arde e não consigo respirar.
Aos meus dezesseis anos, eu não sabia para onde estava indo, qual caminho estava seguindo, e nem quem eu era. Eu estava confuso, e Gabriel também.
Éramos amigos, não tão próximos como eu e Dinesh somos agora, mas éramos bons amigos. Percebi, nos gestos, que talvez fôssemos mais que isso. Mas era errado, não era? Somos ensinados desde crianças que isso é errado. Talvez o errado já estivesse a andar ao nosso lado.
Gabriel tinha uma namorada na época. Não era uma namorada, na verdade, porque ele nunca conseguia manter um relacionamento sério. Mas não deixou de ter a traído. Comigo.
Depois do que aconteceu, nunca mais nos falamos. Fui á casa dele no final do ano, bem na última semana de aula, e depois disso - e das mensagens onde ele pedia que eu não contasse o que havia acontecido -, nunca mais o vi.
Até o primeiro dia de aula.
Quais as chances? Quer dizer, existem tantas escolas em Kansas City, por que ele está na mesma que eu? Por que ele mudou tanto? E, antes de tudo, por que ele está se comportando como um b****a?
— Jace! — Meus pensamentos são interrompidos quando escuto meu pai gritar por mim. — Venha aqui agora!
Reviro os olhos, já sabendo o que me espera. Desço a larga escadaria de mármore. Meu pai está vestido como um palhaço (não literalmente), como se morasse na França.
— Ajeite meu colarinho. Preciso estar impecável, hoje vamos a uma reunião muito importante. — Olhou sobre os meus ombros, enquanto esticava seu pescoço. — Está deslumbrante, Katie.
Minha mãe estava usando um vestido longo e vermelho, com um grande decote. Por cima, um casaco de pelo. Os saltos faziam um barulho agudo enquanto ela andava, machucando meus ouvidos. Sempre tão exagerados.
— Você pode se virar com o jantar, não é? — Perguntou. — Estamos com muita pressa, querido — ia dar as costas e se retirar, mas girou-se e continuou a dizer — e ah, o seu pai precisa te dizer uma coisa. — Comprimiu os lábios em uma linha, os apertando até ficarem brancos. Em seguida, nos deixou á sós.
— Você conhece a família Willis, não é? — Meu coração congelou.
Ele não podia saber, não tinha como. Mas qual seria o outro motivo para ele estar falando isso?
— Sim, p-por que? — Gaguejo, deixando o meu nervosismo extravasar. Tiro as mãos do seu colarinho e dou um passo para trás.
Ele aparenta estar tranquilo, ou tão bravo a ponto de estar calmo, o que, claro, é o pior tipo de raiva.
— São uma família de arquitetos e engenheiros. Respeitados, ricos, e, mais importante: querem comprar uma das nossas fazendas. E claro que fiquei sabendo que os filhos dos Willis são da sua sala, então...
— O que? — Apoiei no batente.
— Faça amizade. Agrade-os. Preciso que gostem de você, falem bem de você para os pais. — Disse enquanto dava uma última olhada no espelho.
— Gabriel é um b****a, pai. É um daqueles valentões estúpidos que não passam de uma chacota. — Falei, lembrando dos seus lábios nos meus. Afastei a lembrança rapidamente.
— Apenas não faça nada e******o, está bem? Agora preciso ir. — Andou apressadamente até a porta principal, prestou continência e me deixou sozinho.
Eu entendo que eles precisam vender as fazendas (compradas por preços altos, vendidas por preços altíssimos), mas eu não vejo necessidade de me colocarem no meio. Por um lado, eu entendo. É importante que os pais de Gabriel e Travis tenham uma boa impressão sobre nós e confie na minha família para fechar o contrato. d***a.
━━━━━━ ● ━━━━━━━
Ao sair do hotel, escuto passos correndo pela floresta, mas não me preocupo em conferir o que é. Está tarde, e provavelmente é um aluno fazendo besteiras. Caminho, com cuidado, até a quadra de natação, pois eu havia esquecido umas roupas mais cedo.
Tudo devia ser feito com o máximo de cautela possível, pois o toque de recolher é às 19h25, e eram 22h e algo, então os professores não podem farejar meu rastro.
Passo pela cabana de ferramentas, sentindo o cheiro dos pinheiros e da grama. O cascalho faz sons engraçados à medida que piso neles. Finalmente estou na porta da quadra, mas antes que eu a abro, escuto vozes femininas perto de mim.
Olho sorrateiramente para a esquerda, e vejo Tyna e Jane sentadas com as costas apoiadas na parede da quadra, conversando sobre algo que, certamente, não é da minha conta. Elas não percebem a minha presença, então apenas entro no local e fecho a porta atrás de mim.
━━━━━━ ● ━━━━━━━
''Quer uma carona até a escola?''
06:33
''Claro, valeu''
06:35
Coloco o celular no bolso da calça, verifico a base em meus pulsos e tudo parece estar ok. Meus pais chegaram bem felizes ontem, então concluo que tudo ocorreu bem. Por enquanto.
Acabo de abotoar minha calça e coloco a blusa de frio, encarando o jardim do lado de fora da janela. O sol batia por todo o canto, e eu já havia começado a suar. Sei que não preciso usar a blusa, que a base já disfarça bastante, mas eu não vou saber o que fazer se alguém descobrir os cortes e contar para meus pais. Não consigo prever as suas reações, mas sei que não seriam boas. Minha mãe está ao lado do jardineiro enquanto ele cuida das alfazemas, e imagino seu rosto triste, as lágrimas brotando nos olhos e suas mãos tremendo enquanto me pergunta o que está acontecendo. Não posso arriscar.
Desço as escadas e meus olhos se encontram com os do meu pai, que me olha como se dissesse ''lembre-se da conversa de ontem''.
— Obrigado de novo — Thomas diz. Ele não para de agradecer desde quando lhe mandei a mensagem.
— Relaxa — respondo, rindo um pouco.
Saímos do carro e andamos em silêncio até a entrada da escola, e vejo Travis nos encarando. Ele mantém um sorriso estampado na cara, como se tivesse escutado uma piada, cuja ele quer rir, mas ainda não entendeu o significado.
Ele fala umas idiotices e se junta á nós, porém fico surpreso por ele não ter nos irritado. Nos dias passados, ele tentou andar com Gabriel, Billie e Ian, mas foi em vão. Fora rejeitado como brócolis no prato de uma criança.
Abro meu armário e coloco minha mochila e uns livros dentro dele.
— Vi vocês chegando mais cedo, e... O outro. — Era a voz de Gabriel. Não tinha como confundir.
Travei a mandíbula, respirando fundo. Fingi mexer no armário, apenas para que ele não mirasse a sua atenção em mim, mas meu coração acelera quando ele começa a irritar Thomas. Travis tenta impedi-lo, mas para no meio da fala. Meu pulso coça, e preciso sair dali o mais rápido possível.
Thomas revida, e uau, eu nunca o vi posicionar assim antes e, pelo que ele me contou das últimas vezes que nos vimos, ele nunca havia feito isso. Estou orgulhoso.
Gabriel fica sem palavras, é claro. Me pergunto se ele está tendo uma crise de identidade: sabe o que quer, mas se recusa a aceitar, assim como eu. Porém, não jogo minhas frustrações em outras pessoas. Vejo Thomas e Travis saírem na frente, enquanto Gabriel continua parado no mesmo lugar.
— Por que está fazendo isso? — Pergunto, batendo o armário com força. Algumas pessoas estão nos olhando.
— Estou mentindo, Miller? — Sei que ele está morrendo de vontade de dizer para todos o que eu sou, mas ele não vai. Tenho um segredo na manga.
— Depende do ponto de vista — me aproximo para que apenas ele me escute — não sei o que está pensando, mas não vai se resolver assim. Se temos questões m*l resolvidas, fale comigo. E espero de verdade que Travis não saiba de nada. — Ele me olha no fundo dos olhos, e vejo apenas raiva ali.
Uns fios estão grudados na sua testa, ele realmente não parece bem.
— Ele sabe. Achei que estávamos sozinhos, mas ele chegou em casa um momento depois, mas foi embora assim que nos viu pela janela. — Engoliu seco. Não era raiva o que eu via nos seus olhos; era medo.
Suspirei, piscando várias vezes. Eu não acreditava nisso. Ele poderia contar para os pais de Gabriel, ou para o meu pai, ou para alguém da escola. A notícia se espalharia, e daria tudo errado. Encostei no armário, com dificuldade para respirar.
— Jace, eu... — Gabriel aproximou-se.
— Não, não venha tentar me consolar. Você tem se comportado como um b****a ultimamente, tratando eu e meus amigos como lixo. Fica longe de mim, Gabe. — m***a, o chamei de Gabe. Eu apenas o chamava assim antigamente.
Bati os pés fortemente até o banheiro, lavei meu rosto e encarei meu reflexo no espelho.
Estou fodido.
Após a aula de Física, conversei com Travis. Ele me explicou o que aconteceu e o que havia visto. Contou para Gabriel um dia após chegarmos na escola, então seu irmão não sabia a tanto tempo. Durante a conversa, Travis prometeu que não contaria a ninguém, e que isso também envolvia o seu irmão. ''Não quero fazer m*l a você nem a Gabriel, por mais que ele seja um b****a. Meus pais o expulsariam de casa, e não estou brincando. Fica tranquilo, isso não será mencionado novamente''.
Travis passou o resto do dia triste, e imagino que estivesse se questionando mentalmente. Não tem como saber.
— Não, nós TEMOS que assistir Harry Potter. Não acredito que vocês nunca viram! — Tyna falou, encarando os garotos. Disse mais umas coisas que não prestei atenção, e depois ficou me encarando.
— É... Am... — Olhei para Thomas, esperando que ele me ajudasse nessa.
— Eu topo. — Falou. Ele certamente não entendeu o que eu estava querendo, mas não o julgo, ele é mau em perceber essas coisas.
E então, fomos para a casa de Tyna no meu carro. Enquanto dirigia, senti a manga da blusa escorregar, e discretamente a puxei, olhando para os lados e no retrovisor. Lembrei de quando lavei meu rosto, provavelmente molhei o pulso e a base saiu. m***a, espero muito que não tenham visto isso.