Gustavo
A noite sempre foi meu território.
Não pela beleza — porque não há beleza na escuridão — mas porque nela ninguém faz perguntas.
E eu sou um homem que vive de respostas silenciosas.
O porto estava especialmente quieto naquela madrugada, o tipo de silêncio que anuncia morte.
Os contêineres empilhados formavam sombras altas, e o cheiro de ferrugem misturado ao sal queimava minhas narinas. Mas eu gostava daquilo.
Ambientes assim revelam quem realmente somos.
— Eles atrasaram — murmurou Viktor ao meu lado, limpando a garganta como se o ar pesado o incomodasse.
Ele era eficiente, mas nervoso demais. Não servia para noites como aquela.
Eu apenas mantive o olhar fixo no relógio.
— Quem atrasa uma entrega para a máfia ou é i****a… ou está tentando morrer. — respondi.
Ele engoliu seco. Gostava do medo que causava. Medo mantém as pessoas obedientes, e obediência mantém o sangue longe de mim.
Ou mantinha.
Caminhei até a beira do píer, onde a água batia contra a madeira velha. O vento frio passou pela minha camisa e me trouxe algo familiar: um incômodo, uma sensação antiga, como se a terra estivesse prestes a mudar de eixo.
Senti isso poucas vezes na vida.
Nunca significou coisa boa.
— Chegaram? — perguntei sem me virar, ouvindo passos atrás de mim.
— Ainda não… — Viktor começou.
— Então cale a boca.
O barulho cessou.
Foi então que ouvi.
Um som suave, quase imperceptível, como o arrastar de um tecido leve contra o chão úmido. Meus dedos tocaram o cabo da arma por instinto. A luz de um poste oscilou. Olhei para a direita.
E a vi.
Sozinha, caminhando devagar entre os contêineres, como se estivesse atravessando um templo sagrado e não um porto onde pessoas desapareciam todos os meses. A névoa parecia se abrir para deixá-la passar — ou talvez fosse impressão minha, fruto de noites demais sem dormir.
Ela não deveria estar ali.
Nenhuma mulher sensata estaria.
Nenhum ser vivo com instinto de sobrevivência escolheria esse lugar.
Parei.
Por um instante, esqueci de respirar.
Pele pálida, quase luminosa sob a luz morta do poste.
Olhos azuis que não abaixaram ao encontrar os meus — um erro fatal para quem encara um homem como eu.
Cabelos escuros presos pelo vento.
Passos lentos, precisos, como se cada movimento fosse calculado.
Aquele tipo de beleza não pertence ao meu mundo.
Não pertence a mundo algum.
Ela parou a poucos metros, a distância exata para que eu puxasse o gatilho sem errar.
Só que eu não puxei.
— Você está perdida — falei, voz baixa, mais ameaça que aviso.
— Não — respondeu, simples.
E sorriu.
Um sorriso pequeno, perigoso.
Como se soubesse exatamente quem eu era… e ainda assim tivesse escolhido se aproximar.
Viktor deu um passo para frente, pronto para intervir, mas levantei um dedo. Ele parou no ato.
A mulher inclinou levemente a cabeça.
— Você é Gustavo Galanis.
Não foi uma pergunta.
Foi uma constatação.
E isso me irritou mais do que deveria.
— Quem é você? — exigi.
Ela deu mais um passo, aproximando-se demais, ignorando todas as regras — da máfia, da rua, do instinto.
Seu perfume, suave e gélido, misturou-se ao cheiro amargo do porto.
Senti meu corpo reagir antes do meu cérebro permitir.
— Selena — respondeu, como se meu nome tivesse sido escrito para combinar com o dela.
— Eu vim procurar você.
Eu ri. Não de humor, mas de descrença.
— Normalmente, quem vem me procurar acaba morto.
Ela não recuou.
Não piscou.
Não demonstrou medo.
— Normalmente — repetiu ela, com uma calma que me fez cerrar os punhos — homens como você não param de andar quando veem alguém aproximar.
Mas você parou.
Ela estava certa.
E isso… isso me desestabilizou.
— O que você quer comigo? — perguntei.
Seu olhar percorreu meu rosto como se pudesse decifrar cada cicatriz que eu escondia.
— A verdade, Gustavo — disse.
— A sua verdade.
Por um segundo — um único, maldito segundo — senti algo que não sentia desde o tiro que quase me matou anos atrás:
Medo.
Não da morte.
Da vida.
Da possibilidade de que aquela mulher fosse uma rachadura no meu mundo…
ou o início de sua ruína.
O vento mudou naquele instante, levantando a névoa como se alguém tivesse puxado um lençol invisível. Selena continuou parada diante de mim, firme demais para alguém que dizia buscar “a verdade”.
Eu a estudei com atenção.
Cada detalhe.
Mulher assim não chega perto de mim sem motivo.
— Você tem cinco segundos pra falar — rosnei. — Antes que eu decida que não vale a pena te ouvir.
Ela não se moveu.
Nem piscou.
— Então me ouça — disse, com uma calma que nenhum dos homens que já enfrentei sequer fingiu ter. — Porque, se não me ouvir… você morre.
Viktor engasgou. Metade dos meus homens teria puxado a arma. Eu, não.
Eu fiquei completamente imóvel.
Não pelo aviso.
Mas porque percebi outra coisa.
Ela acreditava no que dizia.
E isso… me intrigou.
— Fala — ordenei, a voz fria como o metal na minha cintura.
Selena deu um passo para o lado, desviando a luz do poste que iluminava apenas metade de seu rosto. A outra metade ficou engolida pela sombra, fazendo parecer que eu falava com duas versões dela: a humana… e a outra.
— Você acha que sua família te expulsou por honra — começou. — Por traição. Por medo.
Ela ergueu o olhar.
— Mas não foi por isso.
Uma fisgada atravessou meu peito, fria e precisa, como se tivesse sido plantada anos atrás e ela tivesse acabado de tocá-la.
— Toma cuidado com o que vai dizer — avisei.
Ela inclinou a cabeça, como se estivesse avaliando se eu era capaz de ouvir o resto.
— Eu sei por que tentaram te m***r, Gustavo.
O mundo pareceu prender o ar.
Eu dei um passo à frente.
Viktor recuou dois.
— E por que teria você essa informação? — perguntei devagar, perigoso.
Selena aproximou-se.
Agora estávamos perto demais.
Perto o suficiente para eu sentir o calor do seu corpo e a frieza da intenção por trás de seus olhos.
— Porque eu estava lá — respondeu.
A frase caiu entre nós como um tiro.
Meu maxilar travou.
— Mentira. — Minha voz saiu baixa, sem controle. — Eu lembro de quem estava lá. Não havia mulher nenhuma.
Ela sorriu — um sorriso que não alcançou os olhos.
— Não havia mulher… porque eu não queria ser vista.
Aquela resposta me atingiu como uma lâmina.
Rápida.
Cruel.
Precisa.
Meu corpo inteiro ficou alerta.
Minha mão foi para a arma sem que eu percebesse.
Selena continuou:
— Eu sei quem puxou o gatilho.
— Eu sei quem mandou.
— Eu sei o que sua família escondeu.
E eu sei que eles vão tentar de novo.
Minha respiração ficou pesada.
As palavras dela me atravessavam como se encontrassem brechas que eu nem sabia que existiam.
— O que você quer? — perguntei, cada palavra arranhando por dentro.
Ela ergueu o rosto, os olhos azuis firmes no escuro.
— Quero te ajudar a destruir quem tentou te destruir. — Ela se aproximou mais, quase encostando. — Quero acabar com todos eles.
Minha voz saiu num sussurro furioso:
— Por quê?
Selena deslizou os dedos pelo meu peito — não como carinho, mas como quem confirma uma decisão.
— Porque sua família destruiu a minha.
E você… é a única arma que me falta.
O porto ficou silencioso como um túmulo.
E, pela primeira vez em anos, senti o destino se mover.
Não a meu favor.
Não contra mim.
Mas me usando.
E Selena…
Selena acabava de me entregar a chave para abrir a gaveta onde guardei meus monstros.
Uma chave que eu jamais imaginei querer novamente.