A Moça e o Monstro

1376 Words
A guerra durou menos do que parecia para quem estava no chão da laje, mas tempo demais para quem tinha o coração exposto. Catarina ainda tremia quando o último tiro ecoou ao longe, um som seco que anunciava não paz, mas pausa. Havia um silêncio estranho no morro. Não era calmaria. Era anestesia. Dona Nilva segurava o terço com tanta força que os dedos estavam brancos. — Acabou? — Catarina perguntou, a voz trêmula. — Acabou nada. — a avó respondeu. — Só deu intervalo. Catarina passou a mão no rosto, sentindo o cheiro forte de pó e adrenalina grudado na pele. O coração ainda batia rápido, a respiração curta, o corpo em alerta mesmo sem saber contra o quê. O estalo forte da porta abriu de repente. V.K entrou. Não pediu licença, não bateu, não anunciou. Apenas entrou. Ele estava suado, respiração pesada, uma pequena marca de sangue na lateral da camisa — não dele, mas de alguém que tocou nele durante o confronto. Seus olhos ainda carregavam a intensidade da guerra. A ferocidade não tinha saído. Mas o primeiro lugar que ele olhou foi ela. E quando a viu viva, inteira, respirando, os ombros dele — por um segundo — relaxaram. Um segundo só. Mas relaxaram. — Tu tá bem? — ele perguntou, sem tirar os olhos dela. Catarina engoliu seco. — Eu… tô. — Tô perguntando se tá bem, não se “tô”. — Tô viva. Ele fez um som baixo com a garganta. Quase irritado. Quase aliviado. Dona Nilva se levantou e pôs as mãos na cintura. — TU É DOIDO, MENINO?! — ela gritou. — O quê? — ele respondeu, sem olhar para a velha. — Entrar assim feito um capeta, abrir a porta no chute, assustar minha neta! — Melhor assustada do que morta. Catarina sentiu a explosão interna, aquela mistura de raiva com alívio que só ele conseguia provocar. — Eu falei pra tu não ficar na janela. — V.K continuou. — E eu falei que não fiz de propósito. — ela respondeu. — Tu nunca faz nada de propósito, né? — O que isso quer dizer? — Que tu atrai problema sem tentar. — E você acha que é o quê? A solução? Ele ergueu o queixo. — Talvez. A sinceridade na voz dele a pegou de surpresa. — Tu tá tremendo. — ele disse, encarando as mãos dela. — Eu… não tô. — Tá. Ele deu dois passos para frente. Ela recuou instintivamente até encostar na parede. Ele parou ali, perto o suficiente para ela sentir o calor, o cheiro de pólvora misturado com o suor dele. — Olha pra mim. Ela não olhou. — Catarina. — ele repetiu, desta vez mais baixo, mais firme. Ela levantou os olhos. Os dele não eram de monstro naquele momento. Eram de homem cansado, exausto, sujo de guerra, mas ainda assim totalmente presente. — Tu tá bem? — ele perguntou outra vez, a voz mais lenta desta vez. — Eu tô… assustada. — Normal. — Eu quase morri. — Não quase. — Como você sabe? — Porque eu tava olhando. Ela piscou. — Olhando… o quê? — Onde tu tava. Catarina sentiu o mundo balançar um pouco. Ela abriu a boca, mas não conseguiu responder. Então ele completou: — Se tu tivesse na janela mais dois segundos… tinha tomado tiro. — Meu Deus… — Eu te mandei entrar por isso. — Você tava preocupado? O silêncio dele respondeu antes da fala. — Eu tava… cuidando. — ele corrigiu, evitando a palavra que realmente importava. Dona Nilva respirou fundo, cansada. — Menino… — Fala, velha. — Tu agradeceu minha neta já? — Agradecer o quê? — Ela ajudou um dos teus lá na bica, e tu sabe. V.K virou lentamente para Catarina. Um dos soldados tinha contado. Claro que tinha. Ele passou a língua nos dentes, como se escolhesse as palavras com cuidado — algo raro nele. — Tu ajudou meu soldado? — ele perguntou. — Ele tava sangrando. — E tu achou que devia meter a mão? — Se eu não ajudasse, ele morria. — Morrer faz parte. — Não pra mim! O tom dela o surpreendeu. — Não pra mim. — Catarina repetiu, mais firme. — Se alguém tá sangrando do meu lado, eu ajudo. Ele encarou ela por longos segundos. E então disse: — Obrigado. A palavra parecia pesada demais na boca dele. Como se ele não estivesse acostumado a usá-la. Catarina apenas piscou. — Eu não fiz por você. — ela disse. — Eu sei. — Fiz porque era certo. — Eu sei. Ele deu mais um passo — e ela sentiu o chão sumir. — Mas eu tô agradecendo igual. Ela respirou fundo, tentando manter a compostura. — Não tem porquê. — Tem. — Você não precisava agradecer. — Precisava sim. Ele inclinou a cabeça, analisando o rosto dela de cima a baixo. Não como homem que deseja. Como homem que tenta entender. — Tu ainda tá tremendo. — Não é nada. — É sim. Ele levantou a mão devagar — muito devagar, como se desse tempo para ela recuar se quisesse. Ela não recuou. Os dedos dele tocaram o queixo dela, leves, quase cuidadosos demais para um homem como ele. — Respira. — ele disse. Catarina prendeu o ar antes de soltar devagar. Ele aproximou o rosto alguns centímetros. Não era intimidação. Era estudo. Um estudo silencioso do efeito dela nele — e o dele nela. — Tu… não tem medo de mim? — ele perguntou, sincero. — Não do jeito que você quer que eu tenha. — Que jeito é esse? — O medo que faz as pessoas abaixar a cabeça. — Tu não abaixa. — Não. — Por quê? — Porque eu vejo coisa nos seus olhos que você tenta esconder. — Que coisa? Ela engoliu, mas disse: — Humano. Os olhos dele escureceram. — Não fala isso. — ele disse baixinho, quase como aviso. — Por quê? — Porque eu não sou. — Você é sim. — Não sou. — É. Ele se afastou um passo, como se precisasse de ar. — Catarina… — O quê? — Tu fala demais. — E você aparece demais. — Eu apareço onde eu quiser. — Eu reparei. Ele soltou o ar pelo nariz, como se ela fosse seu maior incômodo e sua distração favorita ao mesmo tempo. — Escuta. — Estou. — O morro não vai ficar quieto nos próximos dias. — Eu percebi. — Então fica dentro da tua casa. — Não posso viver trancada. — Pode sim. — Não posso. — Vai ficar trancada sim. Se eu mandar. — E se eu não obedecer? Ele deu um passo e disse: — Tu vai obedecer porque eu tô mandando. Ela ergueu o queixo, irritada. — Eu não sou sua. — Não falei que é. — Então por que quer controlar onde eu piso? — Porque tu anda como se não tivesse perigo nenhum. — Eu me viro. — Não se vira. — Me viro sim. — Não se vira porque tu é teimosa. — Sou. — E porque tu é burra. — Eu não— — Burra no sentido de não sentir medo. Silêncio. Um silêncio quente. — Tu tinha que ter medo. — ele disse, mais baixo. — Por quê? — Porque eu não sei lidar com quem não tem. Ela engoliu seco. — Então… quem é o monstro aqui? — ela perguntou. — Eu. — E quem é a moça? — Tu. Eles ficaram ali, frente a frente, cada um respirando com dificuldade diferente — ela por nervosismo, ele por contenção. Ele baixou o olhar. — Fica dentro da laje. — V.K— — Fica. E antes que ela respondesse, ele virou-se e saiu, batendo a porta atrás de si. A laje ficou silenciosa. Dona Nilva respirou fundo. — Menina… — O quê, vó? — Tu mexeu com o monstro. — Eu não fiz nada. — Então se prepara. — Pra quê? — Porque ele vai voltar. Catarina se encostou na parede, coração acelerado. E soube que a avó estava certa. Porque não era só ele que tinha voltado ali. Algo dentro dela também tinha. Algo perigoso. Algo novo. Algo que ela, até aquele momento, não tinha coragem de admitir.
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