Entre Tiros e Olhares

1255 Words
O silêncio que antecedeu o primeiro disparo parecia um grito preso no peito da Vila Kennedy. Até o vento segurou a respiração. E então, de repente— TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ! Tiros cortaram o ar como navalha, ricocheteando em paredes, derrubando pedaços de reboco, acordando cachorros, calando rezas e acendendo o medo em cada canto do morro. Catarina se encolheu atrás da janela, mas não conseguia afastar o olhar da cena lá embaixo. Era impossível tirar os olhos dele. V.K avançava pelo beco como se fosse parte do chão. Movimentos rápidos. Passos calculados. Cabeça baixa, arma erguida. Ele parecia invencível — e, ao mesmo tempo, tão humano que aquilo doía nela. — Menina, sai da janela! — Dona Nilva puxou seu braço. — Eu preciso ver! — Precisa rezar! — Eu tô rezando vendo! — Isso não é rezar! — É o que dá pra fazer! Outro disparo ecoou. PÁ! Catarina levou a mão à boca, suprimindo um grito. Um dos soldados do morro caiu no chão. — NÃO! — ela sussurrou. Lá embaixo, V.K percebeu. Ele correu até o soldado ferido, puxou-o para trás de um muro e gritou: — COBRE A p***a DO FLANCO! — TÔ FECHANDO, CHEFIA! — MIGUEL! PEGA O GAROTO! — TÔ PEGANDO! Catarina sentiu o coração bater como se fosse explodir. V.K segurou o menino pela gola, puxando-o com força antes que outra bala o acertasse. — AGUENTA ESSA MERDA! — ele rosnou. — NÃO MORRE AGORA! — Chef… — o garoto gaguejou, sangue na boca. — EU MANDO TU NÃO MORRER! — Eu tô… tô tentando… V.K pressionou a ferida com a mão, mesmo que o sangue escorresse por entre seus dedos. — Fecha a boca e respira. — Tá doendo. — Melhor doer do que morrer, p***a! Outro tiro passou a centímetros da cabeça de V.K. Catarina gritou, mesmo sabendo que ele não escutaria. — VAI PRA DENTRO, MENINA! — Dona Nilva insistiu. — Eu não vou! — Ele não precisa de tu olhando pra morte dele! — Eu preciso ver se ele… se ele tá bem. — Ele nunca tá bem! É bandido, não santo! Catarina ignorou. No beco, V.K empurrou o garoto ferido para dois homens. — LEVA PRA CIMA! — TÁ! — CORRE! E então ele se levantou. Sem hesitar. Sem medo. Sem pensar. Um tiro atingiu a parede ao lado da cabeça dele. Outro atingiu o chão, levantando poeira. V.K ergueu a arma e disparou de volta — TÁ-TÁ-TÁ! Ele não atirava para assustar. Não atirava para avisar. Atirava para matar. E aquela era a parte que Catarina nunca tinha visto verdadeiramente. O lado que o morro já conhecia. O lado que a polícia temia. O lado que ele mesmo escondia dela. Mas ali, diante dos olhos dela, não havia máscara. Ele era o monstro que o morro dizia que ele era. E mesmo assim… Ela não conseguia desviar o olhar. A tropa avançou pela ladeira. O som de botas ecoou como trovão. — AVANÇA! AVANÇA! — um policial gritou. — NÃO DEIXA DESCER! — outro completou. Os escudos balísticos fizeram linha, protegendo a frente. Atrás deles, fuzis apontados para todos os lados. Era uma dança de guerra. E no meio dela, V.K parecia feito de aço. Tigrão surgiu ao lado dele. — Chefia, a tropa tá tentando cercar pela direita! — EU SEI! — Quer que a gente recue? — EU NÃO RECUEI NEM QUANDO QUASE MORRI, TU ACHA QUE VOU RECUAR HOJE?! — Sabia que tu ia falar isso… V.K olhou para cima, para a laje de Catarina. Ela ainda estava lá. Assustada. Tremendo. Viva. Ele respirou fundo. E então o rosto dele endureceu — a expressão mais fria que Catarina já viu. Tigrão percebeu. — Chefia… não faz merda. — Vou fazer o que tiver que fazer. — Tu tá pensando no capitão. — É claro que eu tô pensando no capitão. — Ele tá armado. — Eu também. — Ele tá louco. — Eu mais. E então veio o grito: — KEVIN! O capitão apareceu no fim da rua, arma em punho. O mundo congelou. Catarina levou as mãos à boca. — Pai… não… Mas nenhum dos dois ouviu. V.K virou-se devagar, encarando o homem que era o maior inimigo da sua vida. O responsável por tantas perdas. O homem que jurou destruir tudo que ele construiu. E o pai da mulher que estava mexendo com o coração dele. O capitão apontou a arma. — HOJE VOCÊ MORRE, BANDIDO! — Tenta. — V.K respondeu. A voz dele não tremeu. Não gaguejou. Não hesitou. — EU VOU TE ARREBENTAR! — o capitão gritou. — Não antes de eu te botar no chão. Tigrão tocou o braço de V.K. — Chefia… — Sai. — É suicídio. — Saí. — Ele vai atirar pra matar. — Eu sei. — Ele é pai da menina. — Isso não muda nada. E não mudava mesmo. A verdade era c***l: A guerra não era só do morro. Era deles dois. O capitão avançou mais um passo. — ENTREGA A MINHA FILHA! — Ela não é tua. — É SIM! — Não é. — O QUE VOCÊ FEZ COM ELA?! — Nada. — NÃO MENTE PRA MIM! — Ela não te pertence. — Cala a boca, bandido! O capitão atirou. BAM! Catarina gritou. — NÃO! A bala passou raspando no ombro de V.K, que se jogou para o lado e atirou de volta, acertando o chão perto dos pés do capitão. Tigrão puxou V.K. — CHEFIA, NÃO! — LARGA! — Ele quer te matar! — Eu também quero matar ele! Outro tiro. BAM! Dessa vez, a bala acertou um poste. O som ecoou pelos becos. A tropa avançou mais. O morro respondeu. TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ! Era guerra aberta. Catarina não conseguia respirar. — PARA! — ela gritou, mesmo sabendo que ninguém a ouviria. — PARA! Mas não parava. Não tinha como parar. Porque naquele momento, o capitão não enxergava mais filha. Não enxergava morro. Não enxergava nada. Ele só via o homem que odiava. E V.K só via o homem que queria destruir. Um tiro atingiu um muro ao lado de V.K, jogando poeira nele. Outro atingiu o chão perto do capitão. Eles estavam se aproximando. Uma bala de distância. Um passo até o fim. Catarina chorava. — Não mata… não mata ele… Dona Nilva segurou seu braço. — É guerra, menina. — Mas eu não quero! — Guerra não pergunta o que tu quer! Ela caiu de joelhos. — Ele não pode morrer… nenhum dos dois… O capitão gritou: — SAI DO MORRO, DESGRAÇA! — Tu quer que eu desça aí pra tu me matar? — QUERO! — Então sobe e tenta. Outro tiro. Outra resposta. Poeira subindo. Gritos ecoando. Cães latindo. Luzes piscando. E, no meio da fumaça, os dois se encararam. Olho no olho. Ódio contra ódio. Catarina sabia: Alguém ali não ia voltar inteiro. Ou talvez não voltasse vivo. Mas, de repente, algo mudou no olhar de V.K. Só por um segundo. Ele olhou para cima. Para a laje. Para ela. E aquele olhar não era de ódio. Não era de vitória. Não era de guerra. Era de medo. Medo por ela. E foi aí que Catarina entendeu o que o amor podia fazer com um homem perigoso: O amor o deixa mais violento… E mais vulnerável. O tiro seguinte cortou o ar. Foi o mais alto de todos. E ninguém sabia quem tinha atirado. Nem ainda quem tinha sido atingido. E então… O morro inteiro prendeu o fôlego. Inclusive Catarina. Incluindo ele. Incluindo o capitão.
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